Pages

quinta-feira, julho 25, 2019

Como as pós-verdades e deepfakes normalizam a tragédia cotidiana na série "Years and Years"


Percebemos a realidade por indução: fatos e tragédias mundiais ou nacionais nos apresentam através da mídia como fossem panos de fundo, cenários para os nossos dramas pessoais e familiares. E se a tecnologia reforçarem ainda mais essa percepção indutiva, ao ponto de que a realidade se torne apenas uma alegoria? Apesar de sentirmos os impactos nas nossas vidas, achamos que tudo passa e pode ser normalizado com “jeitinhos” cotidianos. Esse é o tema da série britânica da BBC, em parceria com a HBO, “Years and Years” (2019-): acompanhamos uma típica família de classe média, os Lyons, durante a ascensão de um governo de extrema-direita no Reino Unido, enquanto o mundo cai aos pedaços por causa do conflito nuclear dos EUA de Donald Trump com a China. Mas diante de tudo isso, o cotidiano tecnologizado fornece as bolhas necessárias (pós-verdades, deep fakes etc.) para tudo ser normalizado. Mesmo que tenha que ter 11 empregos uberizados para sobreviver e perdido um milhão de libras num crash bancário. Quer saber o que nos aguarda nos próximos 15 anos? Assista “Years and Years”.

Se a série britânica Black Mirror nos apresenta o lado sombrio do desenvolvimento tecnológico, a série também britânica Years and Years (2019-) examina o lado igualmente sombrio das tendências políticas e culturais que atualmente tomam conta do mundo: como impactam o cotidiano de uma família comum – seus amores, trabalho e amizades.  
A co-produção HBO com a TV BBC aborda todos os fenômenos atuais que assaltam o mundo, desde a vitória do Brexit em 2016: fake news, deep fake, pós-verdade, nacionalismo, populismo de extrema-direita. E como essas tendências culturais e políticas coincidem com tendências tecnológicas como o crescimento das redes sociais, dispositivos móveis e a crise da TV, pós-humano etc.
São temas já batidos e debatidos em muitos filmes e documentários recentes como Brexit, The Cleaners, HyperNormalisation ou mesmo a série Black Mirror.
                  Mas o que torna mesmo a série Years and Years interessante e inovadora ao entrar nessa temática, é a sua narrativa indutiva – seu movimento não é do universal ao particular: como um grande evento vai impactar a vida de protagonistas que terão que lidar com suas consequências. Essa é a clássica narrativa dedutiva.



Pelo contrário, Years and Years inicia do particular (o cotidiano da família Lyons), enquanto os grandes eventos são sentidos de forma fragmentada como um cenário ou pano de fundo. E, como nos informa o título da série, as consequências serão sentidas ao logo do tempo, no qual cada episódio salta alguns anos à frente. Até alcançarmos 2034 e vermos as sombrias projeções das rápidas transformações políticas, tecnológicas e culturais.
Filmes como Guerra dos Mundos (2005) ou mesmo a série Handmaid’s Tale apresentam essa interessante forma de narrativa indutiva: como uma invasão extraterrestre é transformada em pano de fundo de um drama de pais separados e a complicada relação com os filhos; ou como um golpe político religioso fundamentalista não foi percebido pelos protagonistas, imersos que estavam em seus cotidianos de amores e trabalhos – os eventos mais decisivos foram sempre percebidos de forma fragmentada e confusa.
Esse é o truque de Years and Years: acompanhamos os dramas cotidianos e prosaicos do clã Lyons (uma típica família de classe média britânica) enquanto permanecem alheios às rápidas transformações do país e do planeta. Ou até percebem de forma fragmentada, em rápidas olhadas na tela da TV ou em vídeos postados em redes sociais.


Paradoxo alienação e comunicação
“Ei, está acontecendo agora uma crise de imigrantes?” “Eu podia jurar que a TV do bar dizia alguma coisa sobre colapso financeiro!” “Aquilo foi uma bomba que explodiu na China?” “Ou foi apenas um episódio de Chernobyl?”. 
De forma sagaz, a série mostra as grandes questões políticas e culturais atuais sem o tom professoral de um documentário ou em irritante tom “lunático-conspiratório”. Primeiro, pelo paradoxo de que, apesar de estamos imersos nas redes de comunicação, o mundo ou a realidade se transformaram em mero pano de fundo para o qual estamos alheios – no mais, serve apenas para temas de rápidas conversas à mesa de jantar ou no sofá diante da TV.
Segundo, a série mostra como cada membro da família Lyons representa uma determinada questão: um irmão homo afetivo se apaixona por um imigrante; o outro é consultor financeiro; a outra é defensora ambiental e assim por diante. 
Ao longo dos anos, cada membro da família sentirá os impactos brutais do mundo louco lá fora. O que muitas vezes resulta em uma espécie de humor negro: veem pela TV a ascensão política de uma espécie de Trump de saias com uma conversa franca recheada de palavrões e preconceitos, inclinações populistas com extremo moralismo conservador. E o próprio Donald Trump acaba lançando um míssil nuclear contra a China. E os Lyons tocam suas vidas, como se nada estivesse acontecendo. 
Apesar de cercados por redes de comunicação e Inteligência Artificial, que os mantêm unidos on line em chats e vídeo-conferências, a realidade ao redor permanece uma coisa vaga. São alheios, fleumáticos, enquanto o mundo ao redor cai em pedaços – tudo parece se normalizar, e as reuniões da família à mesa permanecem, apesar dos empregos e qualidade de vida irem embora ao longo dos anos.


Cada emprego que se perde, cada infortúnio ou tragédia que se abate sobre os Lyons, é visto por eles como surpresa. Simplesmente, não conseguem estabelecer uma relação de causa e efeito entre a realidade ao redor e os dramas privados e familiares.
 Dessa maneira, Years and Years consegue humanizar questões áridas e abstratas atuais que estremecem o cenário político de todo o planeta.

A Série

Years and Years começa em 2019 com as complicações geracionais da família Lyons: Muriel (Anne Reid) e seus netos, a ativista ambiental Edith (Jessica Hynes), o consultor financeiro Stephen (Rory Kinnear), o oficial de imigração gay Daniel (Russel Tovey), a cadeirante Rosie (Ruth Madeley) e seus cônjuges e filhos, incluindo a contabilista hipster Celeste (T’Nia Miller) e sua filha tecnologicamente antenada (e com aspirações pós-humanas) Bethany (Lydia West).
A história começa para essa típica família de classe média bretã com o nascimento do segundo filho de Rosie, enquanto na TV acompanham a primeira aparição pública de uma política de extrema-direita em ascensão: Vivian Rook (Emma Thompson), em um debate em que se apresenta sincera e desbocada, arrancando gargalhadas – ela parece dizer em público aquilo que sempre dizemos em conversas privadas e familiares.
Acompanhamos os dramas pessoais dos Lyons, enquanto Vivian Rook arranca numa carreira meteórica até chegar a primeiro-ministro; a crise com a China chegar ao extremo de Donald Trump lançando um míssil nuclear; e o separatismo da Grã-Bretanha levar a um crash bancário e financeiro - junto com uma grave crise sobre refugiados no Reino Unido.


Os Lyons parecem funcionar como uma lupa para os problemas atuais. Ao longo dos seis episódios se acumulam os horrores sobre tudo aquilo que nos pode esperar nos próximos quinze anos. Um retrato ao mesmo tempo humano e sombrio sobre do que a humanidade é capaz diante de reveses sucessivos: a perda do emprego e a sobrevivência em trabalhos precarizados e sub-empregos; toda a poupança de uma vida inteira que desaparece numa crise bancária sistêmica; os horrores de uma crise de refugiados que evolui num governo de extrema-direita como uma oportunidade de privatização por empresas que lucram com extermínios em modernos campos de concentração.
Dois episódios são emblemáticos em como a série nos levam indutivamente às questões mais amplas. Stephen vende sua casa para enfrentar a crise econômica. Ali estava todas as suas economias. Mas as bolsas asiáticas entram em colapso durante a madrugada (muito por conta do conflito nuclear China-EUA), fazendo, no dia seguinte, bolsas e bancos quebrarem no Ocidente.
Filas de correntistas desesperados batem às portas dos bancos em Londres. Mas Stephen acredita que a sua amizade com o gerente salvará o dia... Para descobrir que está tudo perdido.
Ou a filha Bethany em sua bolha tecnológica e pós-humana – ela aspira a imortalidade sonhando em fazer um upload da sua consciência para a nuvem. Esse é o momento Black Mirror da série: acompanhamos a evolução das interfaces de mobiles e desktops até entrarem numa terceira geração, tornando-se incorporáveis ao cérebro – olhos e mãos se convertem em câmeras fotográficas e teclados periféricos dos velhos celulares e desktops.
Mas a utopia de Bethany a conduzirá a uma distopia: com seu corpo e mente incorporados à rede e banco de dados mundiais, ela própria se transformará em propriedade do governo privatizado.


A realidade é uma alegoria

Acompanhamos o longo calvário de Stephen, “o homem que perdeu um milhão de libras”: sem mais trabalho com o crash financeiro, se transforma num bike currierde aplicativos. Um trabalhador precarizado e uberizado, chegando a acumular até onze “empregos” para sobreviver, sem nenhuma garantia trabalhista.
Emma Thompson faz aparições pontuais como uma figura política cuja vida anterior permanece um mistério. Uma política de extrema-direita, centrada nas mesmas estratégias de Donald Trump: suas poucas aparições em debates são polarizadoras e sequestra a atenção das mídias para ser o centro das atenções. Prefere ter seu próprio canal de TV (“minha casa”, diz ela) para ser a estrela, inunda as redes com seus próprios vídeos e foge dos debates públicos.
Chega ao poder com forte política nacionalista, isolacionista (“O Reino Unido nunca foi europeu”) e privatizante – escondendo o fato de que suas próprias empresas tecnológicas e de Big Data estão comprando o Estado.
O que torna Years and Years cativante é que todos esses eventos políticos mundiais são alegóricos – pano de fundo para mostrar como uma classe média pode normalizar o cotidiano, mesmo em situações extremas, com fantasias escapistas. Bethany e os seus sonhos pós-humanos. E Stephen, entre uma entrega e outra de bike, trair a esposa Celeste – que aliás, como contadora, vê seu emprego ir para o espaço: a ciência contábil foi automatizada por algoritmos.  
Years and Years é uma oportuna série para ser assistida e refletida no atual cenário econômico e político brasileiro: não só como projeção para o futuro, mas também por revelar como os perversos cenários políticos são hipernormalizados pelo cotidiano, principalmente pela classe média, que vê nos gadgets tecnológicos uma forma de inclusão no mundo moderno. E como os dramas privados e familiares acabam absorvendo o mundo externo.
Talvez nesses insights da série, estejam os fundamentos sociais e psicológicas do crescimento da pós-verdade no cenário político: se a realidade é apenas uma alegoria para os nossos dramas pessoais, então a mentira estará livre de quaisquer restrições e a verdade se misturará com a ficção. 


Ficha Técnica 



Título: Years and Years (série)
Criador: Russell T. Davies
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: Rory Kinnear, T’Nia Miller, Emma Thompson, Anne Reid, Ruth Madeley, Jessica Haynes
Produção: Red Productins Company
Distribuição: BBC First, HBO
Ano: 2019
País: Reino Unido

Postagens Relacionadas