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terça-feira, maio 07, 2019

Um dia as meninas serão devoradoras de homens em "Grave"



“Uma história de amadurecimento de uma personagem desgarrada em uma hora e meia manchada de sangue”, dessa maneira a diretora francesa Julia Ducournau define seu filme "Grave"(Raw, 2016), co-produção França/Bélgica. Se “Corra” (“Get Out”, 2017) foi um filme de terror racial, aqui em “Grave” encontramos uma espécie de terror de gênero: como se a protagonista descobrisse a sensação de poder no cruzamento da linha de um tabu. Ducournau parece querer dizer às espectadoras: meninas, um dia vocês serão devoradoras de homens! Uma brilhante e inocente adolescente entra num curso superior de veterinária e se defronta com um sistemático trote de humilhação e doutrinação dos veteranos. Até despertar algo de primitivo nela – uma fome insaciável que nunca percebeu estar lá. Uma violenta narrativa de auto-afirmação e descoberta de identidade através de sangue, canibalismo e luxúria.

Termo popularizado pelo antropólogo alemão Arnold van Gennep, “ritos de passagem” são celebrações da mudança de status de um indivíduo no seio de uma comunidade. Ritos ligados a nascimento, morte, casamento. Já em nossa sociedade moderna, os ritos como os “trotes”, comemorando a entrada dos novos egressos na universidade, e as celebrações de formatura são ritos de passagem à vida adulta.
Em sociedades ditas “primitivas” eram cerimônias especiais que representavam a progressiva aceitação e participação na sociedade – nascimento, puberdade, menstruação, o abate do primeiro animal etc.
Embora ritos de passagem ainda permaneçam na atualidade, perderam sua natureza mítica ou religiosa – assumiram uma natureza ao mesmo tempo performática e de resignação ao grupo, à corporação ou à sociedade como um todo. Primeiro lugar, não importa mais o evento em si, mas a sua eficácia, performance, eficiência ou desempenho – colocação no vestibular, processos competitivos etc.
E segundo, a resignação diante da autoridade – humilhação, bullying e violência como a quebra das últimas resistências que o indivíduo poderia esboçar contra a sociedade – visível desde trotes universitários até ritos de passagem televisivos para conquista de prêmios nos inúmeros formatos de reality shows.
O filme Grave (Raw, 2016), sobre a estória de uma brilhante e inocente adolescente que entra num curso superior de veterinária e se defronta com um sistemático trote de humilhação e doutrinação dos veteranos, é uma abordagem surpreendente desse tema tão revisitado pelo cinema: Código de Silêncio (2017), a franquia American Pie, Dias Incríveis (2003), Universidade Monstros (2013), Superbad (2007), entre outros inúmeros.


Em Grave não há resignação ou, pelo menos, a subserviente internalização das regras do jogo para ser aceita no novo mundo adulto que se abre. Ao contrário, há progressiva afirmação da sua verdadeira identidade como fosse a celebração do poder feminino. Mas com resultados brutalmente sangrentos, combinando o horror corporal de David Cronenberg com o surrealismo berrante de David Lynch.
Em muitos aspectos, lembra a gnose selvagem de Dente Canino (2009 – clique aqui) do grego Yorgos Lanthimos: filhos submissos de um pai que os mantém isolados do mundo exterior, descobrem suas naturezas selvagens e se voltam contra a ordem familiar como um cão que morde a mão do próprio dono.

O Filme

Grave acompanha Justine (Garance Marillier – o nome da personagem tem uma evidente alusão ao clássico das histórias eróticas escrito por Marquês de Sade em 1791) viaja, acompanhada pelos seus pais, para uma faculdade de veterinária na qual foi recentemente aceita. Seus pais também são veterinários e formados naquela escola, seguindo uma longa tradição familiar. Além de manterem uma linhagem de vegetarianismo e de militância pelos direitos dos animais.


Lá na faculdade encontrará sua irmã Alexia (Ella Rumpf), a ousada líder veterana que receberá os calouros com uma série de rituais ruidosos e sádicos.
O próprio campus da faculdade parece sempre ser sombrio e hostil. Durante os raros momentos em que os aspirantes a veterinários saem dos prédios sujos e desorganizados, o céu sempre parece estar nublado e ameaçador.
Depois de um ritual de trote em que os novatos foram cobertos de sangue animal despencado do alto direto para suas cabeças (evidente repaginação do clássico Carrie: a Estranha), Justine é forçada a comer um rim de pato cru. Ela resiste, alegando ser vegetariana. Mas Alexia é ambiciosa e obriga a irmã a comê-lo, para ser aceita no grupo.
A náusea instantânea leva, mais tarde, a erupções cutâneas por todo o corpo. Mas, aos poucos, ela descobre que a minúscula mordida despertou algo de primitivo nela – uma fome insaciável que nunca percebeu estar lá.
Em pouco tempo, Justine se vê sentada diante da geladeira de seu dormitório, no meio da noite, rasgando com os dentes um pedaço de peito de frango cru. Sob o olhar perplexo do seu companheiro de quarto, o seu único amigo, um estudante gay chamado Adrien (Rabah Nait Oufella). Mas isso não será suficiente para satisfazê-la.


O ápice, a descoberta da sua verdadeira obsessão alimentar, é quando sua irmã perde um dedo em um acidente. Enquanto aguarda a chegada dos paramédicos, Justine degusta a bizarra iguaria como se o dedo da própria irmã fosse, literalmente, um finger food.

Violento despertar sexual

Diz uma das lendas que envolve o filme Grave, que espectadores chegaram a passar mal durante exibição no Festival de Toronto, com vômitos e corridas ao banheiro. Mas claramente as cenas de sangue e carne humana não são gratuitas: o apetite da vegetariana Justine por carne humana  é uma metáfora para o seu violento despertar sexual e o fascínio pela luxúria recém-descoberta.
Principalmente na cena da primeira transa de Justine na qual ela, extasiada, morde seu próprio braço durante o sexo.
Acompanhamos durante a narrativa cada passo do lento, e chocante, despertar carnívoro de Justine: de garota tímida (acuada pelos veteranos, desajeitada quando se masturba ou flerta com garotos em festas) para uma maliciosa caçadora.


A diretora, Julia Ducournau, definiu o seu filme como uma história de amadurecimento de uma personagem desgarrada em uma hora e meia machada de sangue. Como se Justine descobrisse a sensação de poder no cruzamento da linha de um tabu. E também como se Ducournau quisesse dizer às espectadoras: meninas, um dia vocês serão devoradoras de homens!
Se tradicionalmente vemos nos “high school/college movies” protagonistas que sentem-se acuados (ressentidos, procuram algum tipo de vingança ou apenas tentam aprender as regras do jogo para tirar o melhor proveito), em Grave temos uma violenta narrativa de auto-afirmação e descoberta de identidade através de sangue e luxúria.
Além de tudo isso, Ducournau nunca julga Justine, mesmo que suas escolhas tenham as consequências mais danosas. Ao invés disso, parece haver o fascínio de observar a radical transformação da personagem.
Grave eleva esse subgênero “college movie” ao nível de uma pequena antropologia do rito de passagem moderno. Grave parece também uma metáfora da universidade como a oportunidade, talvez única, para alguém experimentar novas identidades e inúmeras ideias – a personalidade em fluxo, ate que se calcifique na entrada da vida adulta.


Ficha Técnica 

Título: Grave
Diretor: Julia Ducournau
Roteiro:  Julia Ducournau
Elenco:  Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufella, Laurent Lucas
Produção: Petit Film, Rouge International
Distribuição: Focus World
Ano: 2016
País: França/Bélgica

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