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sexta-feira, maio 03, 2019

O inferno sempre ficará cheio de boas intenções em "O Homem nas Trevas"


Mais um filme ambientado na Detroit decadente habitada por jovens sem futuro cujo único sonho é cair fora dali. Três jovens marginalizados vivem de pequenos roubos em subúrbios de classe média. Até que surge a chance da fazerem o grande assalto que mude a vida de todos para sempre: o casarão de um solitário veterano de guerra cego, cujo cofre guarda milhares de dólares, fruto de uma indenização. O que poderia dar errado em um assalto aparentemente tão fácil? No filme “O Homem nas Trevas” (“Don’t Breathe, 2016) vemos os dilemas morais envolvendo culpa e racionalizações. Uma batalha entre vontades de pessoas que tomaram decisões muito ruins, mas que encontraram justificativas a si mesmos para seguir em frente convivendo com a culpa. Um filme que aborda dois temas de fundo sucessivamente freudiano e existencial: o homem não é racional, ele apenas racionaliza; e que, por isso mesmo, o inferno sempre ficará cheio de boas intenções. Filme sugerido pelo leitor Felipe Resende.

O homem não é um ser racional, ele é um ser que racionaliza. Apesar do seu conservadorismo ideológico e epistemológico, Freud virou o racionalismo do avesso ao descobrir que o homem age a maior parte do tempo de forma impulsiva, inconscientemente, para depois racionalizar as suas ações – procurar algum pretexto, álibi, justificativa e, muitas vezes, um discurso moral que dê fundamento “racional” aos atos que acabou de cometer.
O filme O Homem nas Trevas (Don’t Breathe, 2016) do escrito/diretor uruguaio Fede Alvarez (sob a produção e proteção do diretor e roteirista Sam Raimi – Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio, 1981 e diretor da série de filmes sobre o Homem Aranha) trata exatamente disso: os dilemas morais envolvendo culpa e racionalizações. Uma batalha de vontades entre pessoas que tomaram decisões muito ruins, mas que encontraram justificativas para si mesmas para poderem conviver com o sentimento de culpa.
E, mais uma vez, O Homem nas Trevas coloca esse drama/terror no cenário de uma cidade de Detroit, outrora dinâmico centro da indústria automobilística, hoje abandonada com uma população sem expectativas vivendo o buraco negro do sonho americano. O filme se alinha a outros diversos que escolhem Detroit como cenário privilegiado do terror como O Mistério da Rua 7 (2010), Amantes Eternos (2013), Corrente do Mal (2014) ou Lost River (2014) – todos filmes já discutidos pelo Cinegnose, veja links ao final dessa postagem.


Desemprego, decadência, falta de perspectivas e a atmosfera dominante de “no future” com relações familiares de deteriorando é o cenário perfeito para espíritos ancestrais buscarem vingança (O Mistério da Rua 7) ou, então, jovens desalentados e sem futuro tentarem medidas impulsivas para fugirem de si mesmos ou de suas relações familiares que caem em pedaços, como em O Homem nas Trevas.
E mais: Fede Alvarez nos mostra com os dilemas éticos e morais propostos pela narrativa como é compreensível a máxima de que “de bem-intencionados, o inferno anda cheio” – se a ética deixa de ter um fundamento racional para se transformar em racionalização, as ações tornam-se ou imorais ou amorais.
Um grupo de jovens veem no assalto a uma casa de um homem cego com milhares de dólares no cofre como a grande chance de mudarem de vida e caírem fora de um mundo que desmorona. Mas por mais éticas ou bem-intencionadas suas finalidades, suas ações tornam-se condenáveis e voltam-se contra si mesmos quando descobrem que a vítima também esconde uma sombria imoralidade também racionalizada pela melhor suposta boa intenção.
Eles assaltaram o homem cego errado...

O Filme

Rocky (Jane Levy), seu namorado Money (Daniel Zovatto) e o pretendente a ser também namorado de Rocky, Alex (Dylan Minnette) roubam casas nos subúrbios de classe média de Detroit. O pai de Alex administra uma empresa de segurança residencial, o que permite ao grupo ter acesso a chaves que quebram os sistemas de monitoramento e alarme das casas.


Rocky vive uma relação familiar que desmorona: uma mãe divorciada horrível com um novo padrasto disfuncional e perigoso. Ela e sua pequena irmã têm fantasias escapistas de fugirem para as praias da Califórnia. Rocky participa dos roubos na tentativa de juntar alguma soma de dinheiro que permite realizar esse sonho.
Mas o grupo está cansado de roubos rápidos que amealham apenas algumas joias e relógios, vendidas depois a baixos preços no mercado negro de uma Detroit em ruínas com mato crescendo por toda parte e casas e ruas vazias.
Mas Money tropeça nas informações de um possível crime que realmente mudaria a vida de todos: nas profundezas do desolado centro de Detroit (em um dos muitos quarteirões vazios com casas abandonadas) vive um homem cego (Stephen Lang), ex combatente da guerra da Guerra do Golfo que perdeu a visão em uma explosão de granada.
Alguns anos antes, sua filha foi atropelada e morta por uma garota, filha de uma família rica. Por isso, para indenizá-lo e livrar a motorista da Justiça, o veterano militar recebeu uma grande quantia em dinheiro que, acreditam, está guardada em algum lugar no velho casarão em que o velho mora.


Um veterano cego que mora sozinho. Quão difícil poderia ser esse roubo que mudaria a vida de todos? Qual o problema moral de assaltar um cego, já que seria o último assalto que fariam na vida?
O problema é que toda a perícia e técnicas de um veterano militar foram potencializadas pela cegueira. Ainda mais, que a geografia do território de batalha é bem conhecida por ele, nos mínimos detalhes. Ao contrário do trio de assustados ladrões, o homem cego conhece de forma tátil cada meandro de uma casa labiríntica com corredores e porões sem saída.

Uma grande ratoeira

Tanto os protagonistas como nós espectadores nos sentimos claustrofóbicos nesse jogo de caça gato e rato. Nos seus longos planos de câmera em sequência (principalmente do início da invasão, na qual morbidamente nos aliamos ao cego veterano – só nós, os espectadores, e ele conhecem mais o interior daquele casarão do que os pobres protagonistas com os planos-sequência iniciais) toda a ação de desenrola em tempo real, criando uma geografia cênica única.


A casa se transforma numa grande ratoeira, principalmente quando Rocky e Alex descobrem um terrível segredo daquele combatente cego. Sem revelar um spoiler, podemos dizer que tanto ele quanto os jovens ladrões na verdade estão confrontando suas vontades e racionalizações. Escolhas moralmente erradas a partir de dilemas de valores – os jovens que querem fugir de qualquer maneira daquela cidade decadente e o militar que de alguma forma pretende fazer justiça pela morte da sua filha.
Em muitos aspectos O Homem nas Trevas lembra o tragicômico das escolhas erradas dos protagonistas dos irmãos Ethan e Joel Cohen, como, por exemplo, no filme Fargo (1996).
São protagonistas imbuídos das melhores intenções, como as de Rocky: levar a sua irmãzinha para conhecer as praias californianas para crescer de uma maneira sadia, longe daquela família tóxica.
Mas as decisões erradas e impulsivas são escamoteadas pela incrível capacidade humana em racionalizar. Mesmo Alex, talvez o centro da racionalidade dos equívocos em série, também acaba procurando uma justificativa racionalizadora para embarcar naquela furada: ficar próxima de Rocky, seu secreto amor, e protege-la do macho-alfa impulsivo Money.


Quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem

Como última reflexão, para além da discussão da racionalização humana e da distinção entre as boas intenções éticas e as ações moralmente erradas, há um componente clichê hollywoodiano nesse filme: a fantasia-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”.
É um cânone do gênero terror a díade culpa-punição. Os protagonistas têm sonhos: mudar de vida, recomeçar do zero, fugir pobreza e da condição de classe marginalizada pelos efeitos do capitalismo globalizado. Para realizar esses sonhos, têm que lidar com a culpa, toneladas de racionalizações para, depois, serem torturados e punidos. Para a ordem moral retornar.
Seja nos protagonistas drugs de Laranja Mecânica de Kubrick, seja na selvageria do mestre da violência Sam Peckimpah, seus personagens não experimentam culpa e tudo explode sem a marca da punição moral. Afinal, todos são amorais, ninguém sente culpa.
Ao contrário, filmes como O Homem nas Trevas nos mostra que quem tem sonhos deve ser punido. Jogo subliminar hollywoodiano para gerar conformismo na vida cotidiana dos espectadores depois que as luzes do cinema se acendem.
São personagens punidos não pela amoralidade, mas exatamente pelos dilemas morais racionalizados por finalidades éticas: segunda chance, recomeço etc.


Ficha Técnica 

Título: O Homem nas Trevas (Don’t Breathe)
Diretor: Fede Alvarez
Roteiro:  Fede Alvarez e Rodo Sayagues
Elenco:  Stephen Lang, Jane Levy, Dylan Minnette, Daniel Zovatto
Produção: Screen Gems, Stage 6 Films, Ghost House Pictures
Distribuição: Sony Pictures Releasing
Ano: 2016
País: EUA

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