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terça-feira, setembro 03, 2024

O candidato coach, a Sociedade do Cansaço e o Capitólio Tabajara


O ex-coordenador da campanha de Trump, Steve Bannon, disse certa vez a jornalistas: “vocês ainda terão saudades de Trump”. Nada é surpreendente no candidato coach Pablo Marçal: ele é apenas a evolução natural da estratégia alt-right de comunicação: forçar os limites de regras, legislações e instituições que supostamente defenderiam a Democracia. O que surpreende é observar como a sociedade não consegue oferecer nenhuma resistência: por todos os lados ou há omissão e negação ou, no caso da grande mídia, hipernormalização. De um lado, o candidato coach é o sintoma daquilo que o filósofo Byung-Chul Han chama de “Sociedade do Cansaço” – uma sociabilidade limítrofe e no espectro do déficit de atenção na qual o excesso de positividade normaliza a própria disfunção; e do outro, Marçal é personagem necessário para reforçar a narrativa do “Capitólio Tabajara” – que a suposta tentativa do golpe de Estado no 08/01 falhou porque “as instituições estão funcionando”.

O que menos surpreende no candidato coach à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal, é a sua performance histriônica e beligerante, a alopragem política (sobre esse conceito, clique aqui) que reduz a cena dos debates televisivos à mera criação de matéria-prima dos canais de cortes do candidato. 

Afinal, Marçal é o paroxismo de todas as estratégias alt-right de comunicação, como bem alertou Steve Bannon: "vocês ainda terão saudades de Trump" - a correspondência com o Brasil é automática, quando Bolsonaro vê o seu aprendiz de feiticeiro Marçal ameaçar seu candidato Ricardo Nunes e ganhar luz própria. 

O que mais surpreende não é a boçalidade do candidato coach. Mas a hipernormalizaçao da cobertura do jornalismo corporativo. Quanto mais Pablo Marçal força os limites de qualquer regra determinada pelos organizadores dos debates ou qualquer princípio civilizatório, ainda mais apresentadores e "colonistas" vão buscar eufemismos no já vasto léxico do repertório semiótico jornalístico. 

Quando vemos uma Julia Dualib, na Globo News, falando sobre a "metodologia" de Marçal e como o culpado são os concorrentes por "caírem nas suas provocações";  

Ou a desesperada jornalista mediadora do debate na TV Gazeta comportando-se como uma professora do primário repreendendo a "turma do fundão";  

Ou ainda um analista como Otávio Guedes, da Globo News, considerando que "os eleitores que gostam de Marçal" nada mais fazem do que refletir a "decepção com a política";  

Ou ainda mais, ver um candidato de um partido sem qualquer representatividade (não tem representante na Câmara dos Deputados) desfilando nas telas e microfones da mídia corporativa - não obstante a Lei 9504/1997 desobrigar veículos de comunicação incluírem em debates candidatos de partidos que não tenham pelo menos cinco deputados eleitorais. 

Tudo isso demonstra que estamos testemunhando uma situação ainda mais surpreendente do que o comportamento anômico de Marçal - a hipernormalização midiática que reduziu a Democracia aos seus aspectos mais formais: tem partido? Tem! Tem candidatos? Tem! Tem votação? Tem! Tem resultado? Tem!... Então, é Democracia! 



O candidato coach não surgiu do nada. Como resultado da aliança infernal do ideário do empreendedorismo com as promessas dos workshops imersivos coach de final de semana, Pablo Marçal é um produto daquilo que o filósofo coreano Byung-Chul Han chama de "Sociedade do Cansaço" - Leia Sociedade do Cansaço, Editora Vozes, 2024, . 

E, por outro lado, a hipernormalizaçao midiática é a linha narrativa necessária após a suposta tentativa de golpe de Estado do 08/01 - a invasão do Capitólio Tabajara que a grande mídia deu pernas a não-notícia como "golpe de Estado" - sobre isso, clique aqui. 

Se não, vejamos. 


Pablo Marçal é a Sociedade do Cansaço  


Para Byung-Chul Han, cada época é marcada por uma enfermidade fundamental. O século XX foi uma época imunológica, na qual as crises bacteriológicas e virais criaram o paradigma do inimigo externo da Guerra Fria – tal qual um sistema imunológico, a sociedade deveria se proteger da alteridade, do inimigo externo, do comunismo da Guerra Fria etc. 

Ao contrário, o século XXI é marcado pela enfermidade neurológica: a depressão, déficit de atenção, síndrome de hiperatividade, transtorno de personalidade limítrofe, síndrome de Burnout. Para o filósofo, não são mais infecções, mas enfartos determinados não pela alteridade, a negatividade. Mas pelo excesso de positividade – o estranho já foi afastado. Agora, vivemos uma hipernormalização pelo igual. 

zeitgeist do século XXI é de sociedades sem mais um sistema imunológico. Apesar de convivermos com o fenômeno da xenofobia e a intolerância, não é mais uma reação contra o estranho: o estrangeiro somente é aquele que pode tirar o meu emprego; e diferenças identitárias ou raciais apenas ruídos ("mimimi") de gente que não suporta a meritocracia. 



Pelo excesso de positividade, são sociedades marcadas pelo bombardeio neuronal: redes sociais, smartphones, home office, o trabalho precarizado mediado por plataformas digitais, o trabalho corporativo fragmentado por "jobs" etc. 

O cansaço, o hiper foco e dispersão cognitiva convivem em uma combinação paradoxal. As mensagens de audio aceleradas no WhatsApp e o sucesso da linguagem dos cortes na Internet são sintomas dessa Sociedade do Cansaço. 

Dispersos, as pessoas têm cada vez menos disposição para se concentrar em debates de propostas ou plataformas de governo em debates televisivos.  

Os organizadores sabem disso. Por isso, com o passar dos anos os debates televisivos foram se tornando cada vez mais engessados: debates entre candidatos com poucos segundos para se fazer perguntas, réplicas e tréplicas.  

Sem paciência ou capacidade cognitiva para acompanhar debates, o efeito zapping é uma tentação com o controle remoto à mão - o próprio efeito zapping já seria um sintoma dessa Sociedade de Cansaço. 

Por isso, as arruaças de Pablo Marçal fazem todo sentido: numa audiência na qual o déficit de atenção já existe em diferentes graus (já estamos todos no espectro TDA), o ponto alto são os trocadilhos como "Chatábata" ou "Boules" ou quando se comporta como cosplay de meme ao fazer a toda hora o gesto do "M" de Marçal. 



De um lado, a TV engessa os debates e a comunicação alt-right explora isso, criando performances que atingem o propósito desse "engessamento"; e do outro, o efeito bolha da Internet e redes sociais dissolveram a esfera pública através da irracionalidade do debate público que levou à polarização. 

Diante desse quadro, a democracia liberal burguesa foi reduzida a sua estrutura mais formal: candidatos, votos e resultados. Nesse excesso da positividade, a mídia não consegue compreender a alteridade (a estratégia fascista que coloca em xeque a Democracia), tratando de hipernormalizá-la. 

Cansaço cognitivo e hipernormalização andam juntos. E Pablo Marçal é o sintoma. 


Pablo Marçal e a narrativa do "Capitólio Tabajara" 


Além disso, sobreposto e esse, por assim dizer, paradigma do espírito de época do século XXI discutido por Byung-Chul Han, temos um fenômeno da consequência da guerra híbrida brasileira: a hipernormalizaçao de Pablo Marçal é necessária para manter a narrativa do "Capitólio Tabajara" - de que verdadeiramente houve uma tentativa de golpe de Estado em 08/01/2023. 

Em diversas postagens desse humilde blogueiro vem desenvolvendo a tese de que as depredações em Brasília foram uma não-acontecimento - a simulação de um golpe de Estado que irrompeu em uma preguiçosa tarde de domingo ensolarada e transmitida ao vivo pela TV com os seguintes objetivos: 

(a) O temido fantasma do golpe militar, invocado por todo o governo Bolsonaro (“a corda está esticando!”, ameaçava), cujo ápice foram os ataques em Brasília em 08/01, na verdade nunca passou de uma fantasia de Halloween – na verdade, a ocupação militar do Estado já aconteceu e ninguém percebeu, porque foi um golpe militar híbrido. A realização da promessa de Bolsonaro aos formandos da Aman em 2014, prometendo que seria o presidente em 2018 para “endireitar” o Brasil; 

(b) O fantasma do golpe e a “questão militar” criam uma paralisia estratégica na esquerda, sempre temerosa em “esticar a corda” de um suposto “núcleo golpista” das FA, supostamente seduzidos pelo aventureiro Bolsonaro. Cheia de dedos e pisando em ovos, colocam sua esperança na judicialização – que o STF defenda a democracia, colocando os “golpistas” na cadeia. É o que chamamos de "pedagogia do medo"; 

(c) A operação psicológica militar (sempre partindo da ideia de que a guerra é a arte do engano) consiste em apagar as suas digitais desse golpe híbrido, criando uma estratégia de comunicação diversionista – criar um teatro para as mídias (jornalistas e “colonistas”) cujo script consiste em contar a história de aloprados que tentaram dar um golpe. Para nossa sorte, quem nos salvou foram os EUA (Biden não apoiou o golpe) e Alexandre Moraes transformou-se num intransigente defensor da Democracia, abrindo uma frente de inquéritos: atos antidemocráticos, milícia digitais e fake news. 



Para criar o efeito de realidade dessa invasão do Capitólio Tabajara, a grande mídia precisa sustentar a narrativa de que "as instituições estão funcionando". De que vivemos numa Democracia sólida. Afinal, conseguiu reagir a uma tentativa de golpe. 

A questão é que a própria candidatura de Pablo Marçal é a prova do contrário: a candidatura permanece a despeito do cometimento de crimes eleitorais em série e da desobediência continuada de ordens judiciais.  

E a área cinza que ele ocupou (como sempre, estratégia alt-right de comunicação explora as lacunas e ausências nas legislações) utilizando-se de redes sociais para viralizar seus "cortes negativos", é simplesmente visto pelo jornalismo corporativo como uma "metodologia" e não a erosão de todos os princípios de racionalidade de um debate – de resto, o clássico espírito da democracia liberal que não resiste ao tempo real das mídias de convergência. 

A questão é que, além de tudo, Pablo Marçal torna-se palatável porque ele tem aquilo que faltava em Bolsonaro - se o capitão da reserva era um meme do "tiozão do churrasco", Pablo Marçal é a evolução: une a ideologia do empreendedorismo com as técnicas imersivas motivacionais coach – ele fala em ensinar o "mindset" da prosperidade nas escolas municipais... 

Ele é o elo que faltava entre hardcore bolsonarista com o "mindset" da Faria Lima. 

O candidato coach é o próximo passo para o desmonte do Estado: a desmoralização da política na direção do Estado Mínimo governado por gestores. Para reduzir o Estado a sua função mínima: a repressiva. 

Não por acaso, Marçal fala que vai triplicar a Guarda Metropolitana, cada um armado com fuzil. 

Isso soa como música para a Faria Lima. 


PS.: A entrevista de Pablo Marçal ao programa Roda Viva, na TV Cultura, na segunda-feira (02/09) foi mais um descarado exemplo da hipernormalização midiática. Logicamente vindo da “colonista” de O Globo, Malu Gaspar. Sob a aparência de questionar o candidato, a jornalista cita declaração dada por Marçal no Flow Podcast afirmando de que “No processo eleitoral preciso ser um idiota, infelizmente temos um povo que gosta disso, então preciso ter um comportamento que chame a atenção”. Gaspar então questionou que os “político tradicionais” já fariam isso: “fingem o que não é para conquistar votos”.

Sob a aparência de colocar contra a parede o candidato, a “colonista” faz o mesmo jogo alt-right de Marçal: a desmoralização da política. Para a “colonista”, o único problema é que Marçal fingiria não ser político tradicional... Mas para Malu Gaspar, ele é!

Ou seja, ao colocar no mesmo pé o teatro da política com a economia da atenção das redes sociais, Malu Gaspar não só confunde dois fenômenos sociais completamente diferentes como, principalmente, alimenta o próprio argumento de Marçal: “sou o outsider, o antissistema”. E a jornalista que pergunta não passaria de uma “militante”.  

 

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