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sexta-feira, agosto 16, 2024

Série 'Sunny': incomunicabilidade e solidão na sociedade das tecnologias da informação



Como explicar o paradoxo de vivermos na sociedade das tecnologias da comunicação e informação na qual solidão, solipsismo e incomunicabilidade são problemas endêmicos? E para acrescentar mais uma variável nessa equação, temos agora a Inteligência Artificial, capaz de mascarar a experiência do luto e da finitude nas nossas vidas. De forma inusitada e divertida, a série Apple TV+ “Sunny” (2024 - ) aborda essas questões, no melhor lugar: o Japão, um país combinação entre tradições feudais com o dinamismo cultural e econômico do Capitalismo Tardio. Num futuro próximo no Japão, uma mulher tenta resolver o enigma do desaparecimento do marido e filho num acidente aéreo. Com a ajuda de um pequeno robô, cuja IA foi codificada pelo próprio marido para diluir o luto da futura perda. Uma descida para o submundo dominado por uma máfia Yakuza hightech.

A certa altura do filme Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, o protagonista Harrison Ford comenta com seu amigo, o professor universitário Charles, que todo estavam passando por momentos difíceis naquele momento da vida. E Charles comenta em resposta: “parece que chegou o momento em que a vida parou de nos dar, e começou a nos tirar...”.

Esse é o desafio que atravessamos em nossa existência. Quando começamos a perder tudo aquilo que a vida nos deu (para começar, a própria juventude; para depois, os amigos, amores e tudo aquilo que é bem-quisto no nosso entorno) é que estamos envelhecendo e nos aproximando da finitude. A vida é composta por alegrias, conquistas e prazeres; mas perpassados por sucessivos processos de perdas e luto.

É claro que a humanidade lança mão de uma série de muletas para racionalizar ou mascarar essa realidade ontológica – para começar, a religião e a promessa da imortalidade no outro mundo. E nas sociedades seculares-ecumênicas atuais, a religião é substituída pela tecnologia.

Se não, como interpretar a verdadeira prótese do processo psíquico de luto que são os chamados “ghost-bots” (robôs fantasmas): ressuscitar de um ente querido através de uma Inteligência Artificial -  seja por holograma ou através de um chat, interagir com ele como uma forma de consolo ao ser reconfortado com diálogos que emulam o falecido como se conversasse com ele do além – clique aqui.   

A coisa começa a ficar mais complicada numa sociedade que apesar da alta tecnologização, é marcada pelo solipsismo, solidão e incomunicabilidade – como é possível criar formas que mascaram o luto como os ghost-bots se jamais conhecemos de verdade quem é realmente a pessoa com a qual convivemos? A IA certamente não irá revelar quem o falecido foi, mas como nós imaginamos como ele era.

A série Apple TV +, com a produção da A24 (a produtora que nos últimos anos vem trazendo os mais notáveis filmes e audiovisuais), Sunny (2024- ) é uma comédia dramática ambientada em um país que é o melhor lugar para tematizar essas relações entre luto, solidão e Inteligência Artificial: o Japão.



Desde o pós-guerra, a sociedade japonesa conseguiu combinar muitos hábitos e instituições feudais com o moderno dinamismo cultural e econômico do Capitalismo Tardio. Mas com um preço alto: fragilização dos laços familiares e uma conduta de boa parte da sociedade japonesa de evitar qualquer tipo de situação que possa incomodar outra pessoa. Chamam essa atitude de “meiwaku”.

Isso criou uma sociedade de solitários cujas vidas podem terminar em um triste desfecho: o “kodokushi” (“morte solitária”) – a cada ano milhares de japoneses são encontrados mortos em suas casas e só são descobertos depois de semanas. 

Esses solitários, misto de reclusão e sociopatia, que passam a vida com medo de provocar “meiwaku” no outros, são chamados de hikikomori – estima-se um número de 1 milhão de pessoas, principalmente homens, que se retiraram da sociedade japonesa. Mas isso não quer dizer que esse mal-estar gere improdutividade ou prejuízos econômicos: eles podem e tornar ainda mais produtivos e focados – esse parece ser o gênio de uma sociedade que combina traço culturais feudais com o futurismo.

A série Sunny (composta de dez episódios com pouco mais de meia hora) no apresenta uma sinopse aparentemente clichê: “mulher aflita no futuro próximo do Japão une forças com o robô para desvendar o mistério do desaparecimento de filho e marido em um acidente de avião aparentemente fatal”.

A série foge das atmosferas típicas dos sci-fi distópicos para descompactar ao longo do episódio uma série de temas, todo eles perpassados pela alta tecnologia e o mais perigoso resquício do submundo japonês: a máfia Yakuza. 

Solidão, incomunicabilidade, luto, tecnologia e tecnofobia são os assuntos centrais, tratados de forma inusitada e divertida. Com uma protagonista que, com a ajuda de um homebot, desce pela toca do coelho para descobrir que jamais conheceu quem era seu marido, mesmo depois de dez anos de vida conjugal.  



A Série

Situado em um Japão semi-futurista, “Sunny” segue Suzie Sakamoto (Rashida Jones), cuja vida é destruída quando seu marido Masa (Hidetoshi Nishijima) e seu filho de dez ano aparentemente morrem em um misterioso acidente de avião. 

Como estratégia de acolhimento aos familiares das vítimas, um psicólogo convida-o a ligar para os telefones de seus entes queridos para ouvir seu correio de voz como um meio de ouvir sua voz pela última vez, auxiliando no processo de luto. No entanto, quando Suzie liga para o marido, em vez de ir para o correio de voz, o aparelho continua tocando. Isso a coloca em uma missão para descobrir a verdade por trás do desaparecimento de seu marido e filho.

Porém, uma inusitada peça é colocada em seu caminho para resolver o quebra-cabeças, enquanto luta para se recuperar de sua dor.

Um colega de trabalho de Masa aparece na porta de Suzie com um robô doméstico chamado Sunny (dublado por Joanna Sotomura) como um presente de consolo que o próprio marido construiu – Masa trabalhava numa big tech chamada Imatech. Porém, ao invés de consolo, as coisas começam a tomar um rumo ainda mais estranho ao suscitar novas quetões: Masa sabia que ele ia morrer no acidente de avião e sabia que o robô Sunny ajudaria Suzie em sua dor?

Ou há outra coisa, uma força externa que uniu os dois? A questão é que seu relacionamento com uma IA robótica é improvável: Suzie é tecnofóbica, odeia robôs ou qualquer coisa mais hightech. E Masa sabia disso.

Pouco sabemos sobre a espécie de autoexílio de Suzie: ela é norte-americana e veio ao Japão em busca de uma vida solitária no qual pudesse nutrir sua espécie de raiva silenciosa. Acabou conhecendo Masa e formou uma família.



Porém, após dez ano de vida conjugal, Suzie descobriu que não conhecia bem seu marido: ela achava que Masa era apenas um engenheiro elétrico que projetava geladeiras e freezers. Descobre que na verdade ela era um gênio dos algoritmos e IA, envolvido com um submundo que envolve a máfia Yakuza e apostas de lutas entre robôs. E um misterioso “Dark Manual”, um manual de códigos que pode revolucionar a IA. Obra escrita por Masa em seu momento de “hikikomori”, isto é, de recusa a qualquer convívio social. Até conhecer Suzie.

E aparentemente o submundo está atrás desse “Dark Manual”. Será que a morte de Masa está ligada à Yakuza? Ou o acidente foi forjado para Masa ocultar uma verdade ainda maior?

Para Suzie, a chave do mistério só pode estar entre os algoritmos da IA de Sunny – possíveis memórias perdidas de Masa.

A grande atração da série é mesmo o homebot Sunny – uma espécie de cruzamento entre WALL-E e o design translúcido dos gadgets da Apple. Ele é o personagem propulsor dos episódios: além de se tornar um aliado na descida pela toca do coelho no submundo da cidade de Kyoto, Sunny torna-se uma espécie de instrumento para a reconexão de Suzie com as pessoas. Sunny assume essa responsabilidade na vida de Suzie durante um período de luto inconsolável – o robô é o único “ser” com o qual Suzie pode desabafar descaradamente. 

Porém, uma ambiguidade sinistra envolve esses robozinhos: de um lado servem de muleta psicológica ou serviçal doméstico capaz se envolver em atividades humanas: misturar uma bebida, cozinhar uma omelete e jogar um jogo de shogi. Mas, por outro lado, podem se tornar assassinos – daí o interesse da Yakuza na busca desse “Dark Manual”.



A própria condição de Suzie põe em primeiro plano a questão da incomunicabilidade numa sociedade organizada em torno de tecnologias da informação: tecnofóbica e com forte tendência sociopata, Suzie terá que encontrar alguma maneira para se comunicar (ele é dependente de um gadget tradutor colocado em seu ouvido) com pessoas fora de sua família nuclear, apesar de seu afeto mal-humorado e da barreira linguística que ela culpa por sua dislexia. 

Ela também tem que confiar em seus novos amigos—uma amiga e um robô, cada um desconfiado dos motivos do outro—para ajudá-la a obter as respostas de que precisa. A questão de saber se o robô Sunny realmente tem o bem-estar de Suzie como preocupação em sua programação algorítmica permanece especialmente ambígua e tensa à luz da misteriosa cena de abertura do episódio de estreia, em que um robô parecido com Sunny bate em um homem até a morte com uma cadeira.

Na medida em que os episódios avançam, diversos temas vão sendo descompactados: começa com a solidão (Masa e Suzie eram dois solitários que acidentalmente se encontram), incomunicabilidade (na verdade Suzie jamais soube na verdade quem era seu marido) e solipsismo – quem é o robô Sunny, criação do engenheiro computacional Masa? Ele realmente tem a chave para conhecermos o verdadeiro Masa? Ou apenas um consolo solipsista através de uma IA que emula as peculiaridades do seu criador? 

Sunny é mais uma série que tematiza esse que talvez seja o paradoxo central da nossa civilização: como foi possível o problema endêmico da solidão e da incomunicabilidade numa sociedade estruturada em torno de tecnologia da informação e da comunicação.


 

Ficha Técnica

 

Título: Sunny (série)

Criação:  Katie Robbins

Roteiro: Katie Robbins, Colin O’ Sullivan, Kimi Lee

Elenco: Rashida Jones, Hidetoshi Nishijima, Joanna Sotomura

Produção: A24, Eureka Row

Distribuição: Apple TV +

Ano: 2024

País: EUA

 

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