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quinta-feira, agosto 01, 2024

Bomba semiótica wokeísta e guinada na propaganda política nos Jogos de Paris



Que os Jogos Olímpicos são uma arma de propaganda política, não é novidade para ninguém. Porém, os Jogos Olímpicos de Paris apresentaram duas novidades: um sintoma que reflete o atual zeitgeist geopolítico europeu e uma guinada na propaganda política - uma cerimônia de abertura que abandonou os princípios da propaganda tradicional nesses eventos (nacionalismo, doutrinação ideológica, retórica e sedução) para detonar uma bomba semiótica wokeísta às margens do Rio Sena, com uma paródia de diversidade numa estilização da “Última Ceia”. Enquanto a propaganda clássica visava a esfera pública, a bomba semiótica cria ondas de impacto no contínuo midiático atmosférico: calculadamente “irritar” bolhas de extrema-direita e a “maioria silenciosa” para criar cismogênese – destruir aquilo que havia de civilizatório na democracia liberal burguesa: o ideal de uma tolerância em uma perspectiva cosmopolita, o equilíbrio entre tolerância e a aspiração à universalidade. 

Da afirmação da superioridade racial ariana dos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, sob o julgo do nazismo, aos boicotes cruzados entre EUA e URSS aos Jogos Olímpicos de Moscou (1980) e Los Angeles (1984), sabemos que as Olimpíadas são muito mais do um evento esportivo: têm estreita relação com a política como arma de propaganda.

A politização do esporte olímpico não é nenhuma novidade, desde que o fundador dos jogos a era moderna, Pierre de Coubertein, em 1894, desejou que os jogos fossem usados para um objetivo político: promover a paz.

Embora o nascente movimento olímpico quisesse buscar a união das nações fazendo-as disputarem jogos dentro de regras comuns (“o importante não é vencer, mas competir”), na verdade cada ocasião de jogos era a oportunidade de cada anfitrião demonstrar o seu “softpower” – a propaganda dos seus valores culturais, a força da sua organização, suas realizações tecnológicas, o da união e disciplina de um Estado etc.

Do mascote ursinho Misha derramando lágrimas na cerimônia de encerramento em 1980, formada por placas em movimentadas por participantes na arquibancada do estádio, ao voo do homem-foguete na abertura no estádio olímpico de Los Angeles em 1984, sempre testemunhamos a propaganda política na sua forma clássica: ideológica, doutrinária; a retórica que pretende seduzir as massas pela performance ótima da manipulação dos signos.

Porém, a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 deu uma guinada de 180 graus dentro do campo da propaganda. Sim, o elemento político continua presente. Contudo, abandonou totalmente as estratégias de doutrinação ideológica e sequer a pretensão de seduzir as massas.

Pelo contrário, a narrativa proposta pela festa de abertura no entorno do Rio Sena parecia ter um único objetivo: impactar, provocar e até ofender. Nem mesmo os idealizadores do argumento da cerimônia de abertura buscaram promover o conhecido softpower da França: sua história, arte e cultura, historicamente impactantes na era moderna do Ocidente.




Minons e sintoma geopolítico

No máximo, uma paródia de Marias Antonietas guilhotinadas, segurando as próprias cabeças. Enquanto toda a interessante história dos filmes de animação da França (a inventora do cinema) foi deixada de lado para colocar os personagens dos Mínions (da franquia Meu Malvado Favorito, do estúdio norte-americano da Universal) como pequenos protagonistas.

Na história contada durante a abertura, o personagem que conduz a tocha olímpica vai ao Museu do Louvre, um dos pontos turísticos mais famosos de Paris e do mundo, local no qual se encontra exposta a Mona Lisa, e percebe que o quadro foi roubado. Os responsáveis pelo ato foram os Minions.



Apesar de sabermos que os pequenos ajudantes do vilão Gru tenham sido idealizados por uma dupla de franceses (Pierre Coffin e Chris Renaud), é surpreendente que o notório nacionalismo francês permita que um produto da indústria de entretenimento norte-americana protagonize um evento supostamente com a marca do softpower francês.

Essa foi a primeira característica da abertura olímpica: um sintoma. Sintoma da atual submissão geopolítica aos EUA, no momento quando a OTAN mobiliza todos os aliados europeus (ao custo de atritos políticos internos, como na própria França) a se unirem ao império norte-americano a fazerem frente à Rússia guerra da Ucrânia. Apoiando histericamente uma Guerra Fria 2.0. 

Bomba semiótica wokeísta

Mas a cerimônia de abertura também mostrou que essa submissão vai além, quando a França abre mão dos jogos olímpicos serem, como de costume, a oportunidade de promoção do softpower da propaganda nacionalista do país anfitrião, para se transformar numa outra coisa: numa bomba semiótica.

Como este humilde blogueiro desenvolve no livro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016): Por que Aquilo Deu Nisso?” (clique aqui), este conceito não se refere mais ao cenário da propaganda política clássica do século XX – doutrinação ideológica e sedução. Mas ao cenário das guerras híbridas do século XXI: criar ondas de impacto no contínuo midiático atmosférico para através delas criar cismogêneses. E, no limite, tornar qualquer debate público irracional, corroendo a esfera pública de opinião. Colocando perigosamente em xeque a própria democracia liberal burguesa.

Em outras palavras: uma calculada ação do império para essas ondas do contínuo midiático atingirem as bolhas de extrema-direita. Para provocar reações deliberadas que provoquem o acirramento das polarizações. 

Essa ação calculada tem como fundo um momento bem particular do Capitalismo: o grande reset global, projeto do Fórum Econômico Mundial, pelas radicais reformas sociais e econômicas com o avanço da financeirização conjugada com a Revolução Industrial 4.0. O que exige um tipo de Capitalismo em um modo desastre ou choque. 




Somente uma extrema-direita “libertária” ou “anarcocapitalista” pode passar por cima de todos os pruridos morais e éticos de uma democracia liberal clássica para entregar aquilo que a Banca espera: privatizações selvagens, desmonte do Estado de bem-estar social e uberização das relações trabalhistas pelo capitalismo de plataforma.

Se não, vejamos.

A bomba semiótica wolkeísta da abertura olímpica, cujo ápice foi a paródia LGBTQI+ do quadro da Última Ceia de Leonardo Da Vinci – por mais que queiram tergiversar que, na verdade, tudo foi inspirado em quadros mais mundanos: “O Banquete dos Deuses”, do holandês Jan van Bijlert e “A Festa dos Deuses”, do italiano Giovanni Bellini. 

Mas a auréola em torno da personagem central à mesa dá o toque polissêmico necessário para uma bomba semiótica – a ambiguidade é o fator que gera a propagação viral.

A reação de extrema-direita francesa foi imediata: uma avalanche de comentários homofóbicos e racistas. O que Macron e as Olimpíadas fizeram foi impulsionar a agenda não a da diversidade, mas a de alimentar os verdadeiros Mínions da extrema-direita e criar reações contrárias da maioria silenciosa.

Tolerância e cosmopolitismo

No seu centro, essa bomba semiótica tem um elemento altamente radioativo, cujo efeito é de longo prazo: a implacável corrosão daquilo que tornou o iluminismo ou o pensamento liberal burguês que foi civilizatório em sua fase áurea: a dialética entre tolerância e a aspiração ao universalismo – o ideal de uma tolerância liberal em uma perspectiva cosmopolita. A busca de uma ética ou moral universalista e cosmopolita, tolerando diferenças religiosas, culturais e políticas.

Em outras palavras, principalmente em uma transmissão para todo o planeta em sua variedade de culturas, valores e crenças, a aspiração a um denominador comum que permita uma ação comunicativa entre o não-idêntico. 

No fundo essa é a contradição da ideologia wokeísta: prega a diversidade, mas ao se transformar em discurso apologético quer tornar universal valores de uma comunidade particular: a LGBTQI+. 

Mas toda essa discussão é filosófica. A calculada detonação da bomba semiótica da abertura dos Jogos Olímpicos quer exatamente pulverizar qualquer resquício civilizatório que ainda exista na democracia liberal. 

Hoje a clássica esfera pública de opinião burguesa transformou-se num contínuo midiático atmosférico, médium para espalhar as ondas concêntricas de impacto: criar cismogênese ou polarizações até tornar o debate público irracional e impossível.

E o elemento religioso na paródia olímpica é o material físsil para permitir a reação nuclear em cadeia nessa bomba semiótica. A religião deixa de ser uma confissão de foro íntimo como, por exemplo, uma oração para Deus, para se transformar numa profissão pública de fé.

Ascetismo mundano

Aquilo que o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett chamava de ascetismo mundano: se na religião tradicional o impulso confessional é realizado solitariamente diante de Deus (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. 

Sennett define como “ascetismo mundano” um traço derivado da ética protestante: um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus, mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas.

Esse tipo de bomba semiótica wokeísta estimula calculadamente esse tipo de ascetismo religioso ao tornar os temas da religião, valores e costumes como temas pertinentes que aspirariam supostamente à universalidade. Mas apenas tornam o debate público irracional, polarizado.



Corroendo a esfera pública, reduzida a ações e reações das bolhas contra essas bombas semióticas que as “irritam”.

Um exemplo flagrante disso está no “crentismo” da delegação olímpica brasileira e de alguns atletas – sentem à necessidade de demonstrar publicamente o fervor da sua fé religiosa pessoal.

Para começar, a postagem no X do Comitê Olímpico Brasileiro: “Time completo! Devidamente trajados para atrair muitas bençãos na abertura de #Paris2024. Vem, Senhor, trazendo a dádiva da medalha”.

“Devidamente trajados” referia-se ao criticado traje olímpico da delegação brasileira criado pela Riachuelo (rede de lojas do bolsonarista Flávio Rocha), que mais parece o traje de obreiras de igrejas evangélicas – isso num país marcado pelo sincretismo religioso.

Reações individuais de atletas brasileiros refletem reações dos efeitos da bomba semiótica wokeísta. Como a da jovem skatista Rayssa Leal que usou a linguagem de libras para comunicar que "Jesus é o caminho, a verdade e a vida" ou a da “catequizada” atleta de judô italiana Odette Giufridda que deu um incentivo à medalha de bronze no judô, a brasileira Larissa Pimenta, que chorava de emoção: “Levanta porque toda a glória você tem que dar a Ele". Larissa depois explicou que ela havia convertido a italiana. Disse que havia “apresentado Jesus a ela”, durante passagem da italiana pelo Brasil. E que as duas conversam bastante e tinham chegado à conclusão que “tudo o que conquistassem no esporte seria tudo em honra e glória a Deus”.




“Cismogênese” é um conceito criado pelo antropólogo Grégory Bateson que significa “criação de divisão”. Esse conceito surgiu de estudos do antropólogo sobre os Iatmul, povo das terras baixas do rio Sepik, Nova Guiné, nos anos 1929 a 1932. Bateson estudou os rituais dos Iatmul que justamente permitiam a correção das divisões, garantindo que a sociedade perdurasse.

A ironia é que esse conceito de Grégory Bateson é aplicado na atualidade como o objetivo central de uma guerra híbrida para poder desestabilizar governos e sociedades, através de guerras por procuração e/ou Revoluções Populares Híbridas. 

Ou seja, fazer exatamente o inverso daquilo que os rituais Iatmul procuravam evitar.

 

 

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