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sexta-feira, junho 14, 2024

Por que a extrema-direita cresce? Assista ao filme 'Não Espere Muito do Fim do Mundo'


Se no passado era a religião, hoje quem cria as imagens do Apocalipse é Hollywood. Com um ponto em comum em suas variações: um fato marcante como guerra nuclear, uma pandemia etc. Mas e se o apocalipse for uma fato tão banal e cotidiano que não percebemos, fruto da nossa capacidade hercúlea de normalizar e racionalizar? Essa é a visão diretor romeno Radu Jude em “Não Espere Muito do Fim do Mundo” (Nu astepta prea mult de la sfârsitul lumii, 2023,  disponível na MUBI): a luz se apagará tão sutilmente que não perceberemos até que tudo esteja escuro como breu. O filme acompanha um dia de trabalho da produtora de vídeo corporativo precarizada, condenada a horas extras mal remuneradas e que desconta todo o seu ódio e resentimento no seu alterego obsceno ultra-macho no TikTok, com um humor duvidoso em torno de estupro, xenofobia, misoginia e ódio. Quer saber por que a extrema-direita internacional está crescendo? Assista a este filme.

Como discutíamos sobre a série Fallout em texto anterior (clique aqui), o fim do mundo está se tornando um produto cada vez mais estranho em suas variações. No entanto, apesar da aparente variedade de apocalipses e pós-apocalipses, todos os finais do mundo no cinema e audiovisual têm um ponto comum: o fim do mundo sempre é marcado por um evento definidor: uma guerra nuclear, catástrofe climática, uma pandemia etc., ou seja, um marco pelo qual podemos falar em um antes e o depois.

Mas a sátira cínica e seca do diretor romeno Radu Jude no filme Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu astepta prea mult de la sfârsitul lumii, 2023)  nos aponta para um processo apocalíptico menos hollywoodiano que não exige efeitos especiais ou tempo extra na pós-produção em computação gráfica: e se já estivermos passando por um processo apocalíptico e ainda não percebemos isso graças à nossa capacidade hercúlea de normalizarmos ou racionalizarmos situações absurdas. 

Usando uma assistente de produção exausta como veículo, o filme de Jude explora as maneiras pelas quais o capitalismo do século 21 está cada vez mais apertando as cordas que nos prendem e sufocam a vida das pessoas comuns. Os estão sendo constantemente limados; os trabalhadores estão constantemente sendo solicitados a fazer mais por menos. 

Na versão de Jude do apocalipse, a luz se apagará tão sutilmente que não perceberemos até que tudo esteja escuro como breu. E tudo será culpa de algum bilionário que desparafuzou a lâmpada para economizar alguns centavos em eletricidade.

Assistir a esse filme é muito oportuno nesse momento. Um momento em que o mundo olha atônito para os resultados eleitorais para o parlamento da União Europeia: o marcante crescimento da extrema-direita,levando a crises políticas nacionais. Como na França, por exemplo, que levou o presidente Macron a dissolver o parlamento e antecipar novas eleições.

Quer saber por que a extrema-direita cresce no Ocidente, colocando em risco as democracias liberais? Então assista a Não Espere Muito do Fim do Mundo e terá uma fotografia desse lento processo apocalíptico, representado pelo dia de trabalho de Angela Raducani (Illinca Manolache) que consiste basicamente sentar no carro e enfrentar o trânsito caótico de Bucareste, entre os intermináveis compromissos. Horas extras parcamente remuneradas, já que a empresa espera “pensamento positivo”, “devoção” e “paixão” pelo que faz: vídeos corporativos.



Uma Romênia cuja paisagem é tomada por outdoors que invadem cemitérios, inúmeras placas informando “Propriedade Privada” e contra-cheques dos pagamentos dos jobs que sempre atrasam. Tudo entre litros de bebidas energéticas para Angela se manter acordada ao volante – entre muitas músicas “turbofolk”: músicas romenas tradicionais em arranjo techno, com letras misógenas, xenofóbicas e agressivas – “ganhe dinheiro”, “foda-se vadias”, sexo e festas...

Não Espere Muito do Fim do Mundo lembra em alguns aspectos o novo clássico Corra, Lola, Corra (1998) – para começar a semelhança da atriz protagonista romena com a do filme alemão. Se Lola corria a pé para salvar a vida do seu namorado, em três versões, das garras de gângsters, aqui na Romênia a heroina vai de lá para cá de carro. Só que o tom épico do clássico desaparece. Em Não Espere Muito do Fim do Mundo, Angela tenta apenas salvar a si mesma das mãos do capitalismo selvagem que substituiu o regime comunista do ditador Ceausescu.

Mas tudo isso que o diretor Radu Jude narra é apenas um instantâneo do processo apocalíptico no qual o Ocidente se afunda: entre um compromisso e outro no dia, Angela grava para o Tik Tok vídeos do seu alterego ultrajante – o “Bobiță”, nos quais, através de um filtro de um rosto tosco masculino, destila toda sua raiva e ressentimento da condição sua e de seu país com muita misoginia, racismo, xenofobia e ódio, fazendo piadas de humor duvidoso sobre estupro, sexo, violência, fazendo traços caricatos de estrangeiros.



O Filme

Como dissemos acima, Não Espere Muito do Fim do Mundo acompanha um dia na vida de Angela, desde quando o seu celular a desperta às 5h50 da manhã. E que só vai terminar muito tempo depois de escurecer.

Sua produtora de vídeo está prestando um serviço a uma corporação austríaca que encomenda um vídeo sobre segurança no trabalho. Como produtora, o trabalho de Angela é correr a capital da Romênia atrás de ex-operários vítimas de acidentes de trabalho que se tornaram deficientes físicos incapacitados para o trabalho.

Ela está coletando suas histórias tristes e compilando as imagens para seus chefes, que decidirão naquela tarde qual deles é patético o suficiente para fazer um bom conto motivacional de advertência sobre segurança no trabalho. 

Em uma cena brutal, uma executiva de marketing austríaca Doris Goethe, interpretada por Nina Hoss, rejeitará um dos candidatos, dizendo que olhar para ele a deixa muito triste. Angela foi escolhida para este papel porque ela é “uma delas”. Eles confiam nela. Principalmente por que sabem que, quando chegar a hora, será o trabalho dela torcer a faca. 

Porém, o mais trágico é o que faz aceitarem serem entrevistados, mesmo que isso complique os processos legais que os familiares movem contra os patrões – nesses contos motivacionais, a vítima confessa a culpa de não ter usado itens de segurança.

Porém, os mil euros prometidos para cada entrevistado chega num momento desesperador: a Guerra da Ucrânia elevou abruptamente o custo de vida e muitos deles tiveram a energia cortada por falta de pagamento. Como suportar o inverno romeno sem energia?



Em sua maior parte, o filme é em preto e branco, com o contraponto colorido de sequências do filme romeno de 1981 (em plena era comunista) Angela Drives On, no qual Angela (Dorina Lazar) de uma geração anterior vive uma vida menos estressante, se não necessariamente melhor, como motorista de táxi na Bucareste de Ceaușescu.

Por exemplo, Não Espere Muito do Fim do Mundo faz o contraponto entre um bairro de Bucareste chamado Urano e o mostrado no filme de 1981. No passado era um bairro bucólico de ruas pacatas cercadas por casas baixas com jardins. Depois da queda do comunismo, foi desapropriado e, no lugar, construído uma gigantesca estrutura hoteleira. Na qual se hospeda a executiva austríaca Doris Goethe.

Cínica, no carro dirigido por Angela que a pega no aeroporto, ela justifica a exploração da Romênia por corporações estrangeiras: “vocês deixam”, diz, fundamentando filosoficamente no Taoísmo: “a vida é fluxo, tudo flui...” assim como os fluxos dos capitais, poderia acrescentar.

A válvula de escape de Angela para tanto estresse, revolta e litros de bebida energética ao longo do dia é o seu alterego, a obscenidade ultra-macho “Bobiță”. Enquanto os vídeos de Bobiță no TikTok são coloridos, a vida de Angela é mostrada em fotografia P&B.



Em primeiro lugar, é a questão implicitamente colocada por Radu Jude na montagem dialética entre o filme de 1981 e o atual: será que a Romênia capitalista dos dias atuais, tomada pelo tráfego caótico, masculinidade tóxica e desespero flutuante, é melhor?

Segundo: o título Não Espere Muito do Fim do Mundo significa nada mais do que a realidade de um final de mundo em processo, normalizado e, por isso, imperceptível. 

Os empregadores de Angela pedem para ela “pensamento positivo” e “muito café”. Enquanto Angela descarrega seu desespero no ultra-macho “Bobiță”. Acumulando visualizações e engajamento. Monetizando seus vídeos ultrajantes para compensar os pagamentos atrasados dos seus empregos precarizados.

Vídeos que apenas fornecem dois tipos de mais-valia para o sistema que Angela acredita estar confrontando: a mais-valia política (o crescimento internacional da extrema-direita que e alimenta desse caldo de resentimento e desespero) e a mais-valia econômica - como os algoritmos impulsionam esses lucrativos vídeos para as Big Techs. Afinal, o ódio engaja.

O que lembra as reflexões do filósofo Slavoj Zizek no último episódio da série documental O Guia Pervertido da Ideologia (2012) ao discutir a noção hegeliana de “conciência infeliz”: os homens se engajam em movimentos emancipatórios ou levantes revolucionários como o Occupy Wall Street, a mobilização das massas acompanhadas por greves gerais na Grécia contra as medidas de austeridade e os protestos na praça Tahrir no Egito em 2011. Em todos eles, Slajov vê o potencial oculto da humanidade por um futuro diferente. Porém, por algum motivo a energia desses sonhos utópicos parecem explodir... e são absorvidos pela “vida comercializada diária”. Para ele, essa energia que se perde persiste não na realidade, mas “no sonho que nos atormenta à espera de uma redenção”

Para o diretor Radu Jude esse é precisamente o apocalipse que foi normalizado: a ausência de redenção. Como a revolta e desespero são monetizados e transformados em energia que retroalimenta o sistema político e econômico.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Não Espere Muito do Fim do Mundo

Diretor:  Radu Jude

Roteiro:  Radu Jude

Elenco: Illinca Manolache, Nina Hoss, Ovidiu Pirsan, Dorina Lazar

Produção: 4 Proof Film, Bord Card Films

Distribuição: MUBI

Ano: 2023

País: Romênia

 

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