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sexta-feira, junho 17, 2022

'O Cemitério das Almas Perdidas': matriz do terror está no fetichismo católico pela morte



O terror brasileiro “O Cemitério das Almas Perdidas” (Rodrigo Aragão, 2020) é um filme que Zé do Caixão faria com um orçamento maior. Mas também é um exemplo didático de como o gênero literário e cinematográfico é tributário da matriz imaginária católica: a obsessão fetichista pela morte, da missa (a ritualização diária do assassinato de Cristo) ao sangue e esquartejamentos do terror slasher – a obsessão pela punição da carne. Mas também, um filme com forte crítica social: do genocídio indígena colonial ao fanatismo religioso atual que motiva ódio e intolerância, o terror está na própria história brasileira. Um grupo de jesuítas faz um pacto com as trevas através do Livro de São Cipriano. Mas o pacto volta-se contra eles, vivendo para sempre em túmulos de um cemitério, à espera de vítimas do ódio no Brasil atual.

Monstros, o sobrenatural e o mágico, desde o início, estavam no campo épico das narrativas míticas da Antiguidade. Antes do horror, essas narrativas evocavam o heroísmo e virtudes para enfrentar o destino trágico que os deuses reservavam para nós. Como dramas épicos, não havia lugar para a culpa ou medo. A não ser enfrentar o destino, dando início à dicotomia que marcaria toda a história da Filosofia: a luta entre livre-arbítrio e determinismo.

Em que momento essa dimensão supranormal abandonou a dimensão épica para derivar para a dimensão do horror e do terror? Monstros, bruxas, vampiros, fantasmas e demônios etc. surgem principalmente quando as narrativas míticas são substituídas pelo folclore e tradições religiosas que começam a focar obsessivamente na morte e na figura do Mal associada ao demoníaco como princípios associados à culpa e o pecado.

Em outras palavras, quando a Natureza habitada pelos mitos é trocada pela vida assombrada pela luta do Bem contra o Mal. Principalmente quando o Estado romano adota o catolicismo como a religião oficial cujo messias foi assassinado por esse próprio Estado. Não por menos, surge uma Igreja obcecada pela ideia da morte de Cristo cuja teologia justifica o assassinato como uma fatalidade histórica para redimir a humanidade do Pecado. E a partir daí, há mais de 2000 anos, diariamente, em algum lugar do planeta, Cristo continua a ser crucificado no sádico ritual da missa: bebemos o sangue e comemos o corpo de Cristo simbolicamente através do vinho e da hóstia. O sagrado misturou-se com o profano, o Divino com o monstruoso.

E também não é por menos que, dessa liturgia sadomasoquista, somada ao pavor dos infernos que estariam à nossa espera caso não nos curvemos a essa teologia doentia, saísse todo o imaginário de bruxas, monstros e demônios que acabou criando um específico gênero literário e cinematográfico. Cujos subprodutos (trash, slasher etc.), pelo seu paroxismo, acabaram ironicamente se voltando contra a própria religião que os fez surgir.

 


É o caso das produções cinematográficas de gênero – aqueles filmes mais fiéis aos cânones do gênero, que os explora no limite entre o tributo e a ironia.

É o caso do surpreendente filme brasileiro de terror O Cemitério das Almas Perdidas (2020), produção mais recente de Rodrigo Aragão, considerado o mestre dos efeitos especiais e maquiagem no cinema nacional. Dedicado ao ícone do gênero José Mojica Marins, o filme pode ser considerado um produto que Zé do Caixão faria se tivesse o orçamento que o Cemitério das Almas Perdidas teve: R$ 2 milhões.

Ao longo dos 95 minutos, podemos sentir a alma de Zé do Caixão animando esse terror brasileiro que, como afirmamos, parece a todo momento se movimentar nas fronteiras da ironia com o tributo – um terror gótico em plena do Brasil colonial que repercutirá no presente quando um circo itinerante chega a uma pequena cidade que oculta o cemitério que dá o nome ao filme.

Todos os personagens parecem propositalmente estereotipados (o jesuíta que faz um pacto com o demônio, o pajé, a indígena que atrai sexualmente o jesuíta, a cigana traiçoeira etc.). Mas, como não poderia deixar de ser numa clássica estória que cruza terror, religião e crendices brasileiras, no centro de tudo está o lendário “Livro de São Cipriano” – a reunião de diferentes grimórios dos séculos XVII, XVIII e XIX que no Brasil acabou se transformando numa espécie de almanaque ocultista de fácil acesso e absorvido pela crendice popular: tradições orais relacionadas a adivinhação, feitiços de cura, orações etc.



O conteúdo desse livro é católico, começando com a lenda de São Cipriano de Antíoqua, um feiticeiro que teria se convertido ao Cristianismo. E no filme, acaba se encontrando com a crítica social que perpassa a formação do território brasileiro, em si uma história de terror envolvendo batalhas, extermínio e muito sangue. Desde o início, quando os colonizadores tentaram escravizar os índios, cujo requinte de crueldade psicológica completou-se com a chegada dos jesuítas (a chamada Companhia de Jesus): enquanto os colonizadores viam os indígenas como escravos a serem explorados até a morte, os jesuítas os viam como ovelhas desgarradas que deveriam ser alfabetizadas e catequizadas. No final, forma controlada de extermínio. Não tão imediatista quanto a dos colonizadores portugueses.


O Filme


Na trama, um grupo de jesuítas e colonizadores fazem um pacto sinistro com forças demoníacas ao se virem no meio do oceano em uma tormenta que está quase afundando a caravela. Sob um sacrifício de sangue e conjurando Satanás ao seguir os rituais descritos no Livro de São Cipriano, conseguem parar a tormenta e aportar em segurança numa praia brasileira. 

Desde então, o líder jesuíta (Renato Chocair) exige que todos o chamem de Cipriano. Claramente, o religioso se tornou inebriado de tanto poder dado pelo livro ocultista.



Mais tarde, após guerras e massacres contra os índios, além de submeter a mais bela indígena (Allana Lopes) aos seus caprichos sexuais, o acordo satânico acaba se voltando contra o grupo quando são cercados em uma igreja pela fúria vingativa dos índios – suas almas são amaldiçoadas e são condenadas a viverem como mortos-vivos nas ruínas do cemitério daquela igreja pela eternidade. E também, pela eternidade, se perpeturará a sanha genocida e exploradora dessas almas, à espera de incautos que se atrevam a cruzar as grades do cemitério.

A partir desse ponto, o filme cria um arco entre passado e presente, desenvolvendo comparações entre os dois períodos. Como o espectador perceberá, a montagem figura essas duas metades de forma não-linear, dando um toque clássico dos filmes do gênero dos anos 1970 como, por exemplos, A Casa da Noite Eterna (The Legend of Hell House, 1973), do diretor John Hough.

No presente, acompanhamos um circo mambembe que chega a um vilarejo que convive à distância com a igreja abandonada e seu cemitério maldito. E que favorece ainda mais o fervor religioso como medida de proteção. Porém, se o passado foi dominado pelo genocídio colonizador, o presente é marcado pelo fanatismo religioso que impulsiona intolerância e ódio. Cujo alvo será a pobre trupe de atores, um mestre de cerimônias, mágico e uma cigana vidente: depois de assistirem um espetáculo considerado como “coisa do diabo”, atacam covardemente a trupe e a arrasta inconsciente ao cemitério. Para que os mortos-vivos de Cipriano façam a “justiça” contra as “aberrações do demônio”.



Como esperado, com todos os efeitos práticos e maquiagem disponíveis, a narrativa vai desembocar em vertiginosas sequências slasher com muito sangue, vísceras e desmembramentos. Novamente, no limite entre o tributo ao gênero e a ironia.

O Cemitério das Almas Perdidas é um exemplo didático: a forma como empurra os cânones do gênero ao limite da parodia, repleto de uma simbologia que funde catolicismo com ocultismo e satanismo, pegando como gancho a crendice popular em torno do Livro de São Cipriano.

Demonstrando como o gênero do terror e o catolicismo compartilham da mesma atração fetichista pela morte: do assassinato de Cristo ritualizado a cada missa ao sangue cenográfico que espirra para todos os lados nas facadas e esquartejamentos do terror slasher, está a mesma matriz imaginária da culpa e do pecado: a obsessão da punição da carne como única forma de expiar nossos pecados. 



 

Ficha Técnica

 

Título: O Cemitério das Almas Perdidas

Diretor: Rodrigo Aragão

Roteiro: Rodrigo Aragão

Elenco:  Carol Aragão, Renato Chocair, Allana Lopes, Diego Garcias, Francisco Gaspar, Markus Konká

Produção: Fábulas Negras

Distribuição: Canal FX

Ano: 2020

País: Brasil

 

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