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quarta-feira, agosto 11, 2021

Bomba semiótica e 'apito de cachorro' no blefe do golpe militar do desfile dos tanques fumegantes


“Baionetas e sirenes jamais nos calarão!”, grita histericamente esquerdas e oposição diante do pífio desfile de velharias blindadas fumegantes diante do Palácio do Planalto. Tudo simulação ou blefe porque o golpe militar que já aconteceu - híbrido e, por isso, ninguém viu. Blefe que sequestra a pauta pela exploração do imaginário “old school” do golpe, timing e polissemia – cada posição no espectro político criou sua própria interpretação, induzido pela guerra semiótica criptografada que objetiva criar caos e enxame cognitivo. É o “piloto automático”, o “efeito borboleta” da Teoria do Caos que fundamenta a ação de guerra híbrida: dado um pequeno empurrão, cria-se um sistema dinâmico não linear e exponencial. Para quê? Enquanto todos pagavam o blefe da psyOp militar da iminência do golpe no dia da votação da PEC do voto impresso, a mesma Câmara deixava passar tranquilamente a boiada neoliberal: uma minirreforma trabalhista que provocará mais precarização e desregulamentação do trabalho. E um “apito de cachorro” nos Jogos Olímpicos contagiava metonicamente essa simulação de “crise institucional”.

Que a Política sempre foi um jogo tributário do Teatro nunca foi novidade nem para a Ciência Política e nem para ninguém. A Política descende diretamente do jogo de cena do palco – a chamada “cena italiana”. Tal como um ator, o político interpreta personagens, dissimula a si mesmo jogando com os protocolos, ritos e papéis públicos. É o espaço das máscaras, por trás das quais tenta se manter em segredo a realidade, a ideologia ou as verdadeiras intenções.

Guy Debord (“Sociedade do Espetáculo”), Georges Balandier (“O Poder em Cena”) e Roger-Gérard Schwartzenberg (“O Estado Espetáculo”), em todos esses autores está essa tese das imagens (midiáticas ou da cena política) como uma imensa fantasmagoria que não nos deixaria encontrar a verdade por trás da mentira, da falsa-consciência e da manipulação.

O problema é querer aplicar essa abordagem tradicional sobre mídia e política (imagem/referente, verdade/mentira, real/ilusão) no cenário atual de bombas semióticas e guerra híbrida, no qual essas distinções clássicas simplesmente desaparecem.

Debord, Balandier e Schwartzenberg ainda estão pensando no paradigma da dissimulação – através da imagem, esconder algo que existe. A questão é que o cenário das bombas semióticas é o da hegemonia da simulação, do blefe – dizer que tem algo que na verdade não existe.

Esse erro é o que incorre muitos analistas e políticos (erro, aliás, desejado e induzido pela guerra criptografada de informações) diante do efeito-pânico provocado pelo desfile de blindados como tanques, anfíbios e outros veículos militares diante do Palácio do Planalto. O álibi era a entrega ao presidente de um convite para que Bolsonaro comparecesse a um treinamento das Forças Armadas em Formosa, Goiás, na região do entorno do DF.


Espectro político eletrizado

Porém, o timing do “convite” acontecer no dia em que a PEC do voto impresso estava sendo votada no Plenário da Câmara dos Deputados, sob a ameaça de Bolsonaro melar as eleições, eletrizou todo o espectro político: 

(a) Para a extrema-direita e núcleo duro do bolsonarismo, foi um momento de epifania: depois do encerramento dos jogos olímpicos de Tóquio e ver medalhistas brasileiros batendo continência para a bandeira (um verdadeiro “apito de cachorro” – voltaremos a esse ponto adiante) para, pouco depois, ver o desfile de blindados e um militar com roupa de camuflagem subindo a rampa do Palácio para entregar o convite ao presidente, certamente foi um momento de epifania cívico-religiosa...




(b) Para os analistas da grande mídia, ou Bolsonaro está “assediando” as Forças Armadas para uma aventura golpista (para “vergonha” de uma suposta “ala legalista” militar), ou faz jogo de cena para esconder a própria impotência: Bolsonaro não passaria de um “cadáver político” e cada vez mais “isolado”.

(c) Para a esquerda é o sino do cão de Pavlov para, como sempre, agir reativamente: moções de repúdio, o pânico da perspectiva de um golpe militar old school – lembrando até que aqueles tanques fumegantes, queimando óleo, provavelmente foram os mesmos que cercaram o Congresso em 1964. “Baionetas e sirenes não irão nos calar!”, conclama a esquerda em redes sociais.

(d) Enquanto a esquerda namastê digital simplesmente se divertia criando memes ridicularizando o “desfile fumegante”, o “fumacê” de combate à dengue de tanques caindo aos pedaços e Bolsonaro, o cara que dormiu como Kim Jong-un e acordou como “Kim Be-Cil”... 

É o “piloto automático”, o “efeito borboleta” da Teoria do Caos que fundamenta a ação de guerra híbrida: dado um pequeno empurrão, cria-se um sistema dinâmico não linear e exponencial. Por isso, a incrível polissemia da figura do personagem Bolsonaro: de herói que salvará o país, passa por perigoso golpista, corruptor do legalismo militar, cadáver político, para terminar como Kim Be-Cil.

Aprisionados nesse sequestro de pauta de constitui a guerra semiótica criptografada, todo o espectro político não consegue compreender a simulação ou blefe de toda essa cena que não é mais italiana, mas pós-moderna.

Bomba semiótica

Como bomba semiótica, a força (polissemia) das imagens do desfile de blindados alimenta-se de uma das feridas abertas do imaginário brasileiro: o militarismo. Como na clássica descrição freudiana da neurose, ficamos presos na cena do trauma, repetindo ad infinitum o processo que conduziu ao trauma. Blindados e milicos subindo a rampa do Planalto remetem à cena do principal trauma, o de 1964.




Fosse resolvido ou acertada as contas com esse trauma na história brasileira, a esquerda conseguiria vislumbrar a novidade pós-moderna da psyOp militar (com know-how importado diretamente do Departamento de Estado dos EUA):

(a) Reencenando a cena do trauma nacional, as Forças Armadas apagam o rastro do golpe militar híbrido que já ocorreu (e ninguém viu). Golpe realizado através de um duplo movimento: primeiro, da aliança Forças Armadas/grande mídia/Judiciário que conduziu ao impeachment e a prisão de Lula sob a égide do lava-jatismo; e segundo, a construção lenta e gradual do “candidato manchuriano” (clique aqui) Bolsonaro – do baixo clero da Câmara, para as telas de TV do CQC e do Pânico na Band ao herói trágico da facada que o catapultou à presidência.

(b) Como toda bomba semiótica que tem timing (ameaçadores tanques e blindados no mesmo momento da votação da PEC do voto impresso no Congresso) consegue criar o controle total de espectro pela ambiguidade ou polissemia do acontecimento. Imaginário, timing e ambiguidade formam o tripé que dá a letalidade para essas bombas cognitivas. Efeito-pânico ou “enxame cognitivo” é o esperado efeito de um cenário caótico de guerra criptografada – aquele cenário que produz diariamente “breaking news” na mídia, deixando tudo fragmentado e incompreensível. O que gera medo.

Cena italiana versus cena pós-moderna

Mas por que a estratégia de simulação da bomba semiótica se difere da dissimulação da cena política clássica? Como vimos em postagem anterior, a guerra criptografada cria um labirinto de espelhos que se refletem mutuamente, até o momento em que não sabemos mais o que é reflexo e o que foi refletido – clique aqui.




Bolsonaro simula a iminência de um golpe militar (mas este já ocorreu!) com a escalada de seus coices e provocações, o que gera ações e sincronismos reais e exponenciais na sociedade – o incêndio da estátua do Borba Gato como protesto na guerra cultural anti-fascista, as prisões dos militantes Paulo Galo e Rodrigo Pilha, o sincronismo com o incêndio do galpão da Cinemateca etc. são ações reativas que instigam, de um lado, o acirramento do autoritarismo policial (certamente, empoderados pela iminência do suposto golpe militar) e, do outro, a mesmerização de todo espectro político, abduzidos pelo fascínio daquela pessoa que é atraída pelo abismo.

A cena italiana presumia uma plateia passiva, sentada, observando o espetáculo que ocorre em um palco. Ao contrário, na cena das bombas semióticas de simulação, palco e plateia estão participando, reagindo, dando feed back à cena e alimentando exponencialmente a confusão cognitiva.

De quem se esperava que viesse o contraponto, a esquerda, é de onde nada vem. Acomodada em seu papel de cão de Pavlov, sempre atuando de forma reativa, alimenta exponencialmente esse cenário criado pela guerra híbrida. Guerra que sabe onde está o “calo que vai ser pisado”.

Por isso, a sugestão do jornalista Julian Rodrigues em seu excelente texto “Podemos derrotar a desgraceira; não se irrite com Lira, STF e grande mídia, nem se iluda com a direita”, soa, até aqui, uma distante utopia.

Para Rodrigues, “não se irritem com Lira, STF. Não se apeguem às baboseiras da grande mídia. Não considerem tais instituições. O que vale é a bruta luta de classes, situação econômica e social, conjuntura internacional, mobilização do povo, a disputa de ideias na sociedade. Ganhar eleição de Bolsonaro não é o mesmo que derrotar o bolsonarismo. Preste atenção. Não vai haver estabilidade ou “normalidade”. É tiro, porrada e bomba” – clique aqui.

O que simplesmente Rodrigues sugere é que a esquerda deixe de ser abduzida pela pauta imposta pelas psyOps militares e da grande mídia. Abandone o campo da simulação e deixe os simuladores falando entre eles mesmos, e a esquerda volte-se para o campo infra-estrutural: a economia política e a luta de classes. 

Escapar do script que a guerra híbrida incumbiu à esquerda: ser o militante da guerra cultural contra todos os “fascismos”: o negacionismo, a intolerância, o autoritarismo, o machismo, os feminicidas, os misóginos, os racistas e demais sinos que toquem para a reação pavloviana.

Enquanto todas as atenções do dia estavam voltadas para a tanqueciata (é golpe? É bravata? É fraqueza?) e para o telecatch da PEC do voto impresso, tranquilamente, no mesmo dia, a Câmara aprovou a MP de redução de jornada e salário que acabou se transformando em minirreforma trabalhista.

Na prática, o que era uma medida emergencial para a manutenção de emprego e renda durante a pandemia, agora se transformou em alteração permanente. Como sempre, no sentido da precarização e desregulamentação do trabalho.

Enquanto a boiada neoliberal passa tranquilamente, a esquerda dá as costas ao povo atuando no script dessa cena de simulações. Sempre pronta para dar o feed-back perfeito às operações de guerra híbrida.

Apito de cachorro em Tóquio?

Em política, apito de cachorro (dog whistle) significa uma sinalização cuja mensagem codificada é destinada a um sub-grupo alvo, passando despercebida para a população em geral. Prática disseminada entre grupos da direita alternativa (alt-right) é uma estratégia semiótica de apropriação de palavras, símbolos, expressões para ressignificá-los num contexto restrito para estabelecer reconhecimento. Forma direta para arregimentação de tropa, de um alt-right para outro, como forma de sinalização: “veja, nós estamos aqui!”.

Stricto sensu, as continências que alguns atletas medalhistas brasileiros (Entre eles, estão Ana Marcela - medalhista de ouro na maratona aquática - Alison, Abner Teixeira - bronze no boxe - Beatriz Ferreira, Darlan Romani etc.) não seriam “apitos de cachorro”, já que foram vistas e compreendidas por todos. Um gesto militar de saudação à bandeira nacional e à hierarquia.

Esses atletas fazem parte do Programa de Atletas de Alto Rendimento (PAAR), uma parceria entre o Ministério da Defesa e o Ministério do Esporte, então comandado pelo comunista Orlando Silva, em 2008. Os atletas se alistam de forma voluntária nas Forças Armadas, recebem soldo e demais direitos. Além de terem à disposição as instalações militares para treinamento.

A condição é que, em caso de premiação, façam o gesto militar da continência em respeito ao hino e à bandeira.

Mais um exemplo do republicanismo que tornou os governos petistas presas fáceis da “revolução de veludo” da guerra híbrida. Programa oportunista (pega atletas já formados ao invés de investir na criação de novos atletas), seu evidente objetivo é propagandístico e ideológico: propagar o gesto da eficiência do Brasil que “dá certo”: o Brasil militar.

A psyOp militar investiu no futuro: agora, em plena “crise institucional”, mostrar ao vivo, pela TV, atletas brasileiros batendo continência enquanto a grande mídia bate o bumbo da “potência olímpica”, contamina metonicamente a cena pós-moderna da simulação da aproximação do golpe militar.

Uma espécie de “apito de cachorro”, como fosse um recall do lema positivista-militar “Ordem e Progresso”, paradoxalmente, através da gestão do caos cognitivo.

 

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