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sexta-feira, julho 09, 2021

Trepanação craniana e jornada alquímica de transformação em 'Homunculus'



Do viés esotérico da trepanação craniana (abrir um buraco no crânio como “portal para iluminação”) ao enigmático simbolismo do “homúnculo” na Alquimia – a criação do humano artificial a partir de matéria inanimada. Desse estranho mix resulta no filme japonês “Homunculus” (2021, disponível na Netflix), baseado no mangá homônimo de Hideo Yamamoto. Um sem-teto que perdeu a memória desperta de um experimento de trepanação com poder extrassensorial de visualizar o “homúnculo” de cada um: seus traumas e defesas do ego representadas por surreais imagens do psiquismo. O filme segue a interpretação junguiana do homúnculo alquímico, seguindo a clássica jornada da transmutação da Alquimia. Enfrentando as ameaças da máfia Yakuza e o experimento demiúrgico da trepanação.  
 

Uma técnica bizarra acompanha a humanidade desde tempos imemoriais, talvez desde o período neolítico: a trepanação craniana. Consiste em enfiar uma broca na cabeça ou raspagem do crânio com pedra ou vidro para abrir um ou mais buracos na cabeça como se o crânio fosse uma parede a ser consertada – isto é, retirar “energias ruins” ou curar doenças mentais, enxaquecas e crises epiléticas. 

Ou a extração da “pedra da loucura”, como registrada em famosa pintura de Bosch (1488-1516). Há registros dessa crença desde as pinturas rupestres.

Mas há também um viés esotérico para essa prática milenar: a trepanação permitiria abrir uma espécie de “portal para a iluminação”. Segundo essa tradição oculta, na infância ocorre o fechamento da caixa craniana, inibindo as pulsações cerebrais, sonhos, a percepção extrassensorial e a imaginação. Dessa maneira, a trepanação acabou sendo incluída em rituais de iniciação mágica ou religiosa.

O filme japonês Homunculus (2021), de Takashi Shimuzi, baseado no mangá homônimo de Hideo Yamamoto parte dessa obscura conexão esotérica da trepanação craniana. E para tornar o filme ainda mais estranho, como o próprio título da produção indica, a narrativa ainda associação com a tradição igualmente oculta do “homúnculo” na Aquimia.

Seguindo a tradição judaica do golem na Cabala (a possibilidade de dar vida a um ser artificial), a Alquimia perseguia a ideia da criação da vida humana artificial a partir de materiais inanimados – uma pequena criatura que tinha cerca de 12 polegadas de altura criada a partir de sêmen humano num frasco hermeticamente fechada com esterco de cavalo e aquecida por 40 dias, como descreveu o conhecido alquimista Paracelso.



“Imitar Deus criando vida”, era o princípio alquímico divino da transmutação. O que significaria a transmutação da própria alma. Dessa forma os verdadeiros herdeiros da Alquimia não seriam os químicos, mas os psicólogos. Como acreditava a psicologia profunda de Carl Jung. Para ele, o conceito de “homúnculo” estava carregado de equívocos, sendo muito mais um processo simbólico – esse humano artificial seria o próprio ego, a personalidade, constructo artificial resultante da educação, cultura e ambiente. E o frasco, a própria mente na qual se cria o homúnculo que, pelo seu artificialismo, esconde o Self, o verdadeiro ser

Para Jung, essa seria a verdadeira transmutação: a revelação do verdadeiro ser. É nesse sentido junguiano que o filme Homunculus aborda o drama da jornada de transmutação do protagonista, um sem-teto desmemoriado que dorme todas as noites dentro de um velho e pequeno carro Mazda dos anos 1960 em uma avenida de Tóquio.

Após uma trepanação craniana, ele irá adquirir um poder extrassensorial especializado em visualizar o “homúnculo” existente em cada um de nós: os traumas mais íntimos e os mecanismos de defesa do ego representado por imagens surreais – ele vê alguns com o íntimo feito de areia, outros de água, seres vazios coberto por óculos de sol etc. 

Na melhor tradição do personagem gnóstico do Detetive, na medida em que ele desvenda o Self dos outros, aos poucos se auto transmutará, seguindo as etapas clássicas da jornada alquímica de transmutação: Nigredo, Albedo e Rubedo.




O Filme

A história gira em torno de Susumu Nokoshi (Go Ayano), um homem de 34 anos que já trabalhou em uma grande empresa seguradora, mas agora se encontra sem esperança e sem a memória da sua vida anterior, vagando por um parque em Shinjuku com outros sem-teto. Tudo que possui está num velho Mazda estacionado em uma avenida, no qual passa as noites.

Em uma noite fatídica, ele conhece o estudante de medicina chamado Manabu Ito (Ryo Narita), que eventualmente se revela ser o filho de um médico proprietário de um hospital. Ele procura voluntários para se submeter a um procedimento cirúrgico conhecido como trepanação, que poderia potencialmente desencadear o potencial restrito do cérebro. Ito que comprovar através da ciência a hipótese esotérica das liberações dos poderes extrassensoriais através da abertura de um orifício próximo a área frontal conhecida como “terceiro olho”.

 Nokoshi reluta no início, mas acaba concordando com o procedimento por 700.000 ienes. Após a cirurgia, ele percebe que, quando fecha o olho direito, pode ver o interior das pessoas através de uma espécie de prisma distorcido, semelhante ao mostrado pelo mangá original, que geralmente tem a ver com pensamentos e memórias íntimas – seus traumas e os mecanismos de defesa através dos quais o ego tenta fugir de cenas do passado. Nokoshi começa a se comunicar com as pessoas, a fim de salvá-las de seus homúnculos.

O filme de quase duas horas tenta condensar os 15 volumes do mangá completo, com impressionantes efeitos visuais e fotografia em contra-luz e uma atmosfera tech-noir com colorido intenso ostentando seu grande orçamento.




Porém, a transposição de imagens do mangá para o filme nem sempre dá bons resultados. Os homúnculos robô-yakuza, a garota da areia e, eventualmente, o eu interior de mais dois protagonistas parecem piadas do que qualquer outra coisa, talvez com exceção do momento em que Susumu se machuca na frente do espelho, em uma memorável cena do filme. 

Além disso, o conceito de fechar um olho para ver o interior das pessoas soa algo infantil, apesar dos esforços da música e efeitos visuais para fazer com que pareça algo intrigante. Os flashbacks parecem completamente deslocados, os comentários sobre a identidade e a forma como os traumas do passado moldam as pessoas são melodramáticos, enquanto a cena de estupro com a garota da areia emerge como uma das piores do filme.

O Viajante e Alquimia

Porém, tanto no mangá como no filme, estão desenvolvidas as mitologias gnóstico-alquímicas. De início, na construção do protagonista: Nokoshi é o basilidiano (do pensador gnóstico do início da Era Cristã, Basilides) o Viajante – bem-sucedido financeira e profissionalmente, aparentemente é feliz. Porém falta algo, como acusa Nanako, a mulher amada que o acusa de ser “vazio”. Lembrando os protagonistas Viajantes como Michael Douglas no filme Vidas em Jogo (The Game, 1997) ou Keanu Reeves em Matrix (1999) – protagonistas bem-sucedidos financeiramente e profissionalmente, mas que devem passar por uma “viagem” para descobrirem as potencialidades esquecidas do Self.




Como propõe a gnose de Basilides, para encontrar esse “algo” que falta é necessário a consciência entrar em estado de suspensão – não só Nokoshi perde a memória, como entra num estado intermediário entre a vida bem-sucedida e a de um sem-teto com um cartão de crédito sem limite no bolso.

Além disso, a transmutação intima de Nokoshi segue o roteiro alquímico clássico: Nigredo(enegrecimento), o caos primário de indiferenciação. Seus símbolos são o oceano, a serpente ouroboros e o caduceu de Mercúrio. O estado psicológico é a melancolia, associada à influência de Saturno. Nokoshi está “vazio” em uma vida hedonista e bem-sucedida. O vazio é o caos indiferenciado, uma realidade sem forma- refletida no impactante rosto vazio do objeto do desejo, Nanako.

Albedo (embranquecimento): sob a influência da Lua o caos é estabilizado, imobilizado em um estado abstrato. É a liberação dos poderes extrassensoriais após a trepanação: o caos é estabilizado e ganha sentido através da revelação das imagens abstratas dos homúnculos de cada um e de si mesmo.

E, finalmente, Rubedo (enrubescimento): a essas imagens abstratas é literalmente injetado sangue: o sangue que jorra do rosto de Nokoshi após a outra trepanação final, revelando a cena traumática trágica que o fez perder a memória – a própria perda, um mecanismo de defesa do ego pós-traumático.


 

Ficha Técnica 

Título: Homunculus

Diretor: Takashi Shimizu

Roteiro: Takashi Shimizu, Naruki Matsuhisa, Eisuke Naitô

Elenco: Go Ayano, Ryo Narita

Produção: Booster Project

Distribuição:  Netflix

Ano: 2021

País: Japão

 

 

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