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terça-feira, julho 13, 2021

A incomunicabilidade da condição humana de estrangeiro em 'Paris,Texas'


Um homem caminha pelo deserto sem lembrar de nada da sua vida recente. É resgatado pelo irmão e lentamente reconstruirá suas memórias sobre porque abandonou esposa e filho. Para depois embarcar num road movie tentando reunir sua família. Ou para mais uma vez abandoná-los, paradoxalmente por amor a eles? Tudo dentro de um cenário de incomunicabilidade, ironicamente numa sociedade cercada pelos meios de comunicação e outdoors de publicidade em highways e aeroportos que salientam a condição humana de estrangeiro: alienação e estranhamento. Obcecado pela mitologia norte-americana dos desertos, highways solitárias e grandes cidades, em “Paris,Texas” (1984) o cineasta alemão Wim Wenders tenta encontrar o sublime numa cultura marcada pela saturação e banalização através dos temas do sacrifício e da empatia.

Junto com Werner Herzog e Rainer Fassbinder, o diretor Wim Wenders compôs nos anos 1970 a chamada “Nova Onda” do cinema alemão.  Apesar das diferenças temáticas (Herzog e seus heróis com sonhos impossíveis, Fassbinder e o cinema identitário e a paixão de Wenders pelos road movies), todos eles são fascinados pelo rock, a moda e a mitologia norte-americanas.

Porém, Wenders ia além: era fascinado pela América, pelo tamanho das cidades, pela beleza hipnótica dos desertos, pelas estradas solitárias do Texas e as gigantescas highways do Oeste. Nesse cenário de horizontes infinitos e selvagens, bem diferente do velho continente europeu, o diretor alemão via a oportunidade do “olhar da primeira vez”: na pureza das linhas e formas dos desertos e autoestradas, Wenders procurava um olhar que fugisse dos simulacros das imagens saturadas por décadas de cultura pop. 

Seus road movies buscavam isso: Alice nas Cidades (1974), Meu Amigo Americano (1977), Hammett(1982), dramas realistas e narrativas de suspense que giravam em torno disso. Principalmente, porque além de cineasta, Wenders era fotógrafo.

Depois do fracasso de Hammett, o cineasta alcança o sucesso de críticas com Paris, Texas (1984) no qual finalmente consegue sintetizar em um filme o resultado da sua busca: somente o olhar do estrangeiro será capaz de romper a banalização das imagens. Somente um estrangeiro conseguirá ver e alcançar a pureza e o sublime de propósitos e sentimentos num mundo de ilusões criadas pela saturação das imagens bombardeadas pelas mídias que nos cercam.

Paris, Texas é um filme sobre estrangeiros e a incomunicabilidade, paradoxalmente numa cultura baseada na centralidade dos meios de comunicação na sua forma mais ampla: das mídias a auto-estradas, aviões, aeroportos que nos conectam de forma veloz.



Este é o cenário de todas as cenas do filme: estradas, aeroportos, drive thru de bancos, aeroportos, automóveis e outdoors às margens das highways. Apesar de vivemos numa sociedade onde a comunicação impera, padecemos da incomunicabilidade, isolamento e solidão.

Por isso, Paris, Texas trata de perdas, solidão e excentricidades. Consequência desse paradoxo que produz a alienação, estranhamento e a sensação de “estrangeiro”: como ficamos incomunicáveis cercados de meios de comunicação?

Wenders nos conta uma história de perda após perda. Este homem, cujo nome é Travis, já foi casado e teve um filho. Então tudo deu errado, e ele perdeu sua esposa e filho, e por anos vagou. Agora ele vai encontrar sua família para perdê-la novamente, desta vez não por loucura, mas por sacrifício. Ele os abandonará por amor a eles.

Diante da condição da incomunicabilidade, a última coisa que nos resta é o sacrifício e a empatia.




O Filme

No começo, pouco sabemos sobre Travis (Harry Dean Staton), um homem que vem caminhando do deserto como uma figura bíblica, um penitente que renunciou ao mundo. Ele usa jeans e um boné de beisebol, o traje universal da América, mas a barba desgrenhada, as órbitas profundas e o passo incansável de sua caminhada contam uma história de peregrinação no deserto. O que ele está procurando? Nem ele próprio se lembra mais.

Sob um sol abrasador Travis (Harry Dean Stanton) pede água em um posto de gasolina, desmaia e é atendido no hospital local. Seu irmão Walt Henderson (Dean Stockwell) vem buscá-lo, mas quando eles param na estrada, ele começa a se afastar novamente, descendo os trilhos da ferrovia. Ele não vai falar. E quando ele finalmente começa a falar, é como se estivesse remontando, hesitante, um eu do qual perdeu a noção. 

Walt e sua esposa Anne ( Aurore Clement ) vivem em Los Angeles com Hunter (Hunter Carson), que é filho de Travis. Gradualmente aprendemos partes da história: Hunter foi deixado com os Hendersons pela esposa de Travis, Jane ( Nastassja Kinski), que não poderia mais cuidar dele, mas que envia um cheque todo mês de um banco em Houston.

Travis não é louco. Está simplesmente perdido na dor, desesperado com a maneira como seu casamento foi alegre por um breve período e depois foi destruído por sua própria bebida e ciúme. 




Ele fica um tempo com os Hendersons, aos poucos ganha a confiança de Hunter, caminha para casa com ele da escola em uma cena doce onde eles copiam os passos um do outro. Em seguida, ele tem uma conversa séria com Hunter que os leva a entrar na velha picape Ford de Travis e dirigir até Houston para encontrar Jane.

Jane é descoberta trabalhando em um clube de sexo (mais precisamente, um peep show para voyeuristas), onde sua especialidade é sentar-se atrás de um vidro espelhado e conversar com seus clientes ao telefone enquanto performa fantasias sexuais solicitadas. O tema implícito é a necessidade de salvar a mulher do que é percebido como escravidão sexual.

A incomunicabilidade está presente em todos os relacionamentos no filme: a começar de Travis com seu próprio passado, que aos poucos tenta reconstituir os pedaços de memórias; de Travis com seu filho Hunter, que decide acompanhá-lo até Houston por achá-lo “radical” e pelo controle da NASA estar naquela cidade; de Walt com sua esposa Anne, angustiada com a perspectiva de perder Hunter e o casamento com Walt perder totalmente o sentido – numa espécie de síndrome do ninho vazio.




Incomunicabilidade de estrangeiros

Duas cenas reforçam simbolicamente essa condição: a primeira, a caminho de Houston,  Travis e Hunter falam indiretamente sobre a esposa e a mãe desaparecidas, mas também abordam o Big Bang e a teoria da relatividade. Embora compartilhem o banco da frente do caminhão, às vezes falam por walkie-talkies. 

Essa conversa mediada se reflete mais tarde, quando Travis fala com sua esposa através de telefones nas cabines do peep show. Jane apenas ouve sua voz, enquanto Travis consegue ver Jane. Até virar de costas para ela para, finalmente, conseguir descrever a tragédia que se abateu sobre eles levando à separação, a fuga de Jane e a peregrinação de Travis através do deserto.

Tal como numa sessão de psicanálise, Travis somente consegue descrever a cena traumática virando de costas à “analista” Jane.

E o cenário de incomunicabilidade geral se fecha com os outdoors que o irmão Walt instala ao longo das highways de Los Angeles: fotos publicitárias com modelos que lançam olhares sedutores e de desejos para todos e, ao mesmo tempo, para ninguém.

Para Wim Wenders a única forma de redenção está na renúncia e empatia de Travis. Nas sequências do peep show, Wenders foge da narrativa clichê do resgate de Jane de uma suposta escravidão sexual por um cafetão. Travis unicamente quer que mãe e filho se reencontrem. Ele os abandonará justamente por amor a eles.

Pra Wenders essa é a única forma de resgatar o olhar da primeira vez num mundo de saturação e incomunicabilidade. Tema que em 1987 retornará com Asas do Desejo – um anjo que deverá renunciar à própria imortalidade por amor.  


 

Ficha Técnica 

Título: Paris, Texas

Diretor: Wim Wenders

Roteiro: Sam Shepard, Walter Donohue

Elenco: Harry Dean Straton, Natassia Kinski, Dean Stockwell, Aurore Clément

Produção: Road Movies Filmproduktion, Argos Films

Distribuição:  The Criterion Collection

Ano: 1984

País: Alemanha/França

 

 

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