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quinta-feira, junho 17, 2021

Como pular fora da cultura meme dos influenciadores digitais no filme 'Mainstream'


A mídia está para nós assim como o peixe está para a água. Sem nossos dispositivos nos sentimos como peixes fora da água. Não vivemos mais COM as mídias, mas vivemos NAS mídias. É a “media life”. Então, como é possível fazer uma sátira da cultura meme, streamer e dos influenciadores digitais se na “media life” não existe a diferença fora/dentro? Como é possível criar um ponto de vista de fora para fazer uma crítica da era digital se vivemos dentro dela? “Mainstream” (2020), de Gia Coppola, tenta responder a essa questão acompanhando “No One Special”, um personagem cujos vídeos anti-Internet e anti-celulares viralizam: um influenciador contra as próprias redes sociais e dispositivos móveis? Um sistema que torna rentável a sua própria oposição. Porém, em “Mainstream” há duas coisas que podem ser disfuncionais a esse sistema: o mal-estar psíquico e a morte.

Era uma vez um mundo em que havia pessoas famosas. Regido pela ética protestante do trabalho (cujas conexões com as origens do capitalismo foram tão bem analisadas pelo sociólogo Max Weber), eram pessoas que se tornaram conhecidas por suas obras. 

Henry Ford ficou famoso como empreendedor por produzir o primeiro carro popular, transformando a cultura e a sociedade para receber os automóveis; Albert Einstein virou sinônimo de gênio com a Teoria da Relatividade e a sua confirmação com a fotografia do eclipse total do Sol tirada em Sobral, Ceará; e o ator Charlie Chaplin, famoso por definir a estética do cinema mudo com seu humor corporal e mímicas.

   Mas a propaganda política nazifascista descobriu um novo fenômeno para atrair a atenção das massas: Hitler e Mussolini (amantes do cinema) traduziram a fama do ator através da ideia da celebridade: expor as suas vidas privadas (Mussolini, suas conquistas amorosas e masculinidade com passeios de motos; Hitler, suas frugais refeições com a esposa Eva Braun enquanto beijava crianças no colo). A celebridade era uma nova forma de fama paradoxal: sem ética e moral, apenas tornar-se conhecido pela mera exposição midiática da vida privada. Exemplo seguido por outros ditadores como General Franco (Espanha) e Salazar (Portugal). Ditadores que não se apresentavam como tal, mas como celebridades.

A cultura das celebridades virou um ponto de inflexão no século XX: elas não são admiradas, mas invejadas. No íntimo sabemos que elas são tão verdadeiras quanto uma nota de três reais. Porém, invejamos o seu senso de oportunismo e timing. Sua “sorte”. Ressentidos, as amamos. Mas isso pode se tornar ódio, como foi o caso do assassinato de John Lennon pelo próprio fã, Mark Chapman – ele não admirava o artista, mas invejava apenas sua fama.

 O filme Mainstream (2020), de Gia-Carla Coppola (neta do cineasta Francis Ford Coppola), trata de um novo ponto de inflexão nesta história da cultura: a cultura meme, streamer, dos influenciadores digitais na era das redes sociais.

Se as celebridades pertenciam ao mundo dos meios de comunicação de massas que irradiavam seus supostos carismas, agora os influenciadores pertencem à era da “media life”. Esse conceito de Mark Deuze é importante para entendermos a questão do filme Mainstream: Gia Coppola procura fazer uma sátira da cultura dos influenciadores digitais. Porém, a sátira parte do princípio de que existe um ponto de referência de fora do sistema para que consigamos fazer uma caricatura crítica.



O problema é que para o pesquisador Mark Deuze a mídia está para nós assim como o peixe está para a água. Sem nossos dispositivos nos sentimos como peixes fora da água. Para Deuze, não vivemos mais comas mídias (como era na cultura das celebridades do século XX), mas vivemos nas mídias – nossas relações com as mídias se tornaram onipresentes, universais, quase codificando os nossos genes.

“Gostemos ou não, todos os aspectos de nossas vidas têm lugar nos meios de comunicação”, afirma Deuze.

Ou seja, pelo ponto de vista da media life não existe fora/dentro porque “nós somos zumbis no sentido em que sucumbimos acéfalos ao chamados dos nossos aparelhos; somos zumbis porque usamos as mídias que apagam nossas distinções como indivíduos; gravamos e remixamos a nós mesmos e uns aos outros com as novas tecnologias” – DEUZE, Mark, “Viver Como um Zumbi na Mídia”, MATRIzes, n. 2, jul/dez, 2013.

Como fazer uma sátira de um meio no qual estamos imersos, apesar de toda culpa e má consciência? Em Mainstream talvez a única coisa que possa confrontar de fora esse sistema sejam o mal-estar psíquico e a morte.




O Filme

 A inocente e tímida Frankie (Maya Hawke) abandonou a escola após a morte de seu pai (cuja cicatriz do acidente tenta esconder sob o cabelo no seu rosto) e trabalha como bartender em um pequeno bar com shows de anônimos off-Hollywood Boulevard, junto com seu amigo sensível Jake (Nat Wolff), que além de bartender escreve e toca músicas ao piano nos intervalos no turno de trabalho.

  Sem rumo, nas horas vagas Frankie vaga nas ruas de Los Angeles gravando vídeos para o seu canal do YouTube, lutando para conseguir passar de 100 visualizações. Ela está filmando em um estacionamento de um shopping onde transeuntes passam diante de um pôster de Kandinsky, sem ninguém se dar o trabalho de notar. Talvez uma declaração de Frankie sobre uma sociedade perpetuamente distraída. Ou algo nesse sentido.

Até que captura as imagens de alguém com uma fantasia de rato, oferecendo amostras grátis de queijo para as pessoas. É Link (Andy Garfield), um rebelde anti-Internet, sem celular e com confiança de sobra. Sabendo que está sendo filmado, Link tira a fantasia e começa a apontar para as pessoas, a obra de Kandinsky na parede: “Ao invés de comer queigo, coma arte!”, repete o slogan diante das pessoas que se reúnem para acompanhar a performance.

Logo Frankie intui que o carisma neurótico de Link é o passaporte para a viralização nas redes sociais. De imediato, junto com Link criam o apelido “No One Special” e passam a produzir vídeos para o Youtube exaltando as pessoas a se rebelarem contra as redes sociais e viverem desconectados. Frankie e Jake pedem demissão para se dedicarem em tempo integral aos vídeos de No One Special.




A partir desse ponto, o Mainstream continua como sua narrativa de ascensão e queda do showbiz, só que está repleta de pessoas que constantemente o lembram de curtir, comentar e se inscrever no final de seus vídeos. 

Adotando uma abordagem contrária com o slogan “celulares são como cocaína e crack”, Link ordena que seus novos seguidores o encontrem depois de escurecer em um cemitério - é claro que todos eles aparecem - e coloquem seus telefones em uma lápide até que a bateria acabe. 

Mais vídeos trazem mais fama até que um experiente agente de mídia social chamado Mark (Jason Schwartzman) se interessa pelo trio. Agora o dinheiro e patrocinadores levam No One Special para o mainstream dos influenciadores digitais, junto com a necessidade de continuar aumentando o tráfego.

No One Special é convidado a apresentar um game show escrito por Jake e dirigido por Frankie chamado “Seu Celular ou Sua Dignidade”. Mas quando a câmera está ligada, ninguém consegue parar seu fluxo ultrajante de insultos e absurdos. Quando ele intimida um membro da audiência (Alexa Demie) a postar seu rosto não maquiado com uma marca de nascença para seus milhares de seguidores, a tragédia se segue. O destino daquela jovem será trágico: “O público a matou”, ele se justifica. "Eu só estava tentando acordá-los."

O ponto do alto dos ultrajes é quando No One Special é convidado a participar de uma mesa redonda na Internet com outros influenciadores. Ele logo começa a atacar o anfitrião (Johnny Knoxville) e os outros convidados, jogada na cara a hipocrisia do mainstream dos influenciadores e ameaçando jogar em todos um pedaço de coco que fez ali, na frente de todos em cima da mesa.




Media Life e Dessublimação Repressiva

O ponto central da sátira da escritora e diretora Gia Coppola é a própria hipocrisia de Link, criticando o sistema através do seu próprio sucesso no mainstream. Porém, há algo além da crítica moralista da “hipocrisia”.

A “media life” descrita por Mark Deuze parece transformar qualquer crítica (seja a sátira ou a analise acadêmica) em um simples “remix” gravado em mais uma postagem nas redes sociais ou plataformas digitais.

Lembrando o conceito de “tolerância repressiva” de Herbert Marcuse: ele alertou de que, contra as potencialidades críticas emergentes, a sociedade de consumo desenvolvia uma contrarrevolução baseada na “tolerância repressiva”, formas cada vez menos violentas, e até democráticas, de absorção dos discursos de oposição de maneira produtiva ao funcionamento do sistema. Dentro das regras impostas pelo sistema (desde o jogo democrático parlamentar até as regras de mercado) é impossível manter a virulência do discurso crítico a partir do momento em que ele é reduzido a um “ponto de vista”, uma “opinião” ou um “outro lado” a que é dado o direito de expressão assim como todos os outros discursos, pontos de vista ou ideologias manifestados no “livre” debate de opiniões.

Somente duas coisas podem se constituir em referências críticas externas à media life: o mal-estar psíquico, presente em Frankie e seu progressivo distanciamento de Link; e a morte da seguidora de No One Special. Pelo menos até ele tentar reverter a tragédia num típico reposicionamento de discurso, tradicional estratégia discursiva dos influenciadores.  


 

 

Ficha Técnica 

Título: Mainstream

Diretor: Gia-Carlo Coppola

Roteiro: Gian-Carlo Coppola e Tom Stuart

Elenco: Andrew Garfield, Maya Hawke, Nat Wolff, Jason Schwartzman

Produção: American Zoetrope, Artemis

Distribuição:  IFC Films

Ano: 2020

País: EUA

 

 

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