Pages

quarta-feira, abril 14, 2021

Experiência sensorial e anomalias telefônicas na série 'Calls'



Nove episódios constituídos por áudios de telefonemas que, pelo menos de início, não estão relacionados mas que eventualmente serão peças de um quebra-cabeças envolvendo um mistério. Áudios acompanhados de formas abstratas constituídas por ondas senoidais, oferecendo uma experiência sensorial inédita para o espectador, pelos menos em plataformas de streaming. É a série da Apple TV + chamada “Calls” (2021-). Uma espécie de podcast narrativo cuja virtude é o minimalismo e a imprecisão, instigando nossa imaginação a completar as informações que faltam. Em cada episódio acompanhamos diálogos telefônicos que são interrompidos por eventos inexplicáveis. O que quer que esteja acontecendo em um nível global tem elementos desagradáveis ​​de terror corporal com pessoas gritando sobre coisas que não podemos ver e apenas imaginar – há algum tipo de anomalia exponencial envolvendo uma estranha dessincronização entre os interlocutores das conversas telefônicas. 

Um podcast narrativo acompanhado de rabiscos. Seria injusto demais resumir a série da Appeal TV+ Calls (2021-) dessa maneira. A série de Fede Alvarez (Evil Dead e Don’t Breathe), adaptação da sensação da TV francesa de Timothée Hochet, é uma experiência sensorial inédita. Pelo menos em plataformas de produtos audiovisuais em streaming.

Colocado de forma direta, a série Calls é composta de nove episódios que  consistem em áudios de telefonemas que, pelo menos de início, não estão relacionados mas que eventualmente serão peças de um quebra-cabeças fazem parte de um mistério, narrado pelos áudios acompanhados de formas abstratas.

A série de chamadas telefônicas processadas por texto na tela são acompanhados de um oscilograma saltado ou abstrações de sintetizador de vídeo que representam o som (e muitas vezes as próprias situações) das vozes humanas que se ouve. Para os leitores mais velhos desse blog, as imagens que acompanham os áudios lembram bastantes os antigos programas de reprodução de mp3 como o WinAmp, software que gerava pequenos visuais divertidos para acompanhar as ondas senoidais.

A simplicidade ou minimalismo da narrativa é a essência de Calls: a imprecisão das informações sensoriais (ouvimos as chamadas e até o som ambiente das ligações) e a ausência de imagens compensadas pelas imagens abstratas que pontuam a tensão das conversas, ativam ainda mais a imaginação do telespectador/ouvinte – os episódios obrigam o receptor a sair da passividade, tornando-o atuante ao tentar criar imagens mentais não só do que está ocorrendo, como também dos próprios perfis dos personagens: fisionômico, psicológico etc.



Certamente o grande teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan (1911-1980) viria nessa série a confirmação de uma das suas teses sobre os chamados meios quentes e meios frios. Ao contrário dos meios quentes, como o cinema, que são muito visuais, lógicos tendendo à passividade do receptor – contêm muita informação, deixando ao espectador apenas o papel de recepção.

Ao contrário, meios frios como o telefone e a TV são meios frios – tendem a ser aurais, intuitivos e de envolvimento emocional porque exigem uma participação (não confundir com interatividade) elevada para a imaginação preencher as lacunas de entendimento ou de conhecimento. 

Calls faz a adição perfeita de dois meios frios: telefone + televisão.

A Série

Os episódios aqui duram entre 13 e 20 minutos e pelo menos por um tempo, eles são estranhamente autônomos. Uma das conexões estilísticas que unem essas histórias é o dia e a data no início de cada episódio.




Embora não seja 100% essencial para compreender o que exatamente está acontecendo, as visualizações das chamadas telefônicas enfatizam algumas das ideias temáticas que estão acontecendo dentro delas. As linhas podem se conectar, os círculos podem se conectar, as distâncias podem transmitir separação. Eles são o equivalente visual de um zumbido baixo, formas de onda que estão ao mesmo tempo respondendo ao som e sintonizando o observador com ideias maiores que ecoam deles.

Cada episódio se desenrola como em uma antologia, uma coletânea de telefonemas, cada um culminando em alguma luta terrível contra algo inexplicável. 

Começamos com um episódio intitulado "The End" (como o espectador descobrirá, a série já começa pelo fim) acompanhando o diálogo telefônico de um casal de longa distância (ele em Los Angeles e ela em Nova York) à beira de uma separação em 30 de dezembro. No decorrer da conversa, ele é interrompido por ligações de uma nova paixão e ela também é interrompida por algo muito perturbador acontecendo no jardim da sua casa. No final, ambos são parte de algo aparentemente impossível, que os próximos oito episódios começam a explicar.

Algumas das histórias, que preenchem lacunas no ano anterior ao telefonema do primeiro episódio, são semelhantes – percebemos eventos inexplicáveis e recorrentes nas chamadas. O que quer que esteja acontecendo em um nível global tem elementos desagradáveis ​​de terror corporal e as pessoas gritam nas chamadas sobre coisas que não podemos ver e apenas imaginar. Para atiçar ainda mais a nossa imaginação, as palavras muitas vezes são distorcidas por má recepção ou ruído externo – algumas vezes bizarros.




Tempo clássico X pós-moderno – Alerta de Spoilers à frente

Quando o amigo e colega de longa data de Albert Einstein, Michele Besso, morreu em 1955, Einstein escreveu uma carta à família enlutada que incluía uma passagem particularmente fascinante sobre a natureza do tempo: “Agora, ele partiu deste mundo estranho um pouco antes de mim. Isso não significa nada. Pessoas como nós, que acreditam em física, sabem que a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”. 

Existem diversos exemplos na cultura pop de filmes e séries inspirados nas implicações metafísicas sobre essa sugestão de que o tempo é uma ilusão persistente: a série alemã Dark (2017-2020) e o filme Synchronic (2019) são alguns exemplos. Calls é mais um produto audiovisual nessa lista: mergulha na toca do coelho dos conceitos de multiverso, paradoxos quânticos e anomalias no tempo-espaço que a ameaça a extinção do próprio tecido do que conhecemos como realidade. 

No oitavo episódio vem a grande revelação que dá ordem de continuidade aos episódios aparentemente desconexos: por um motivo inexplicável, pelo menos até esse episódio, ocorreu uma misteriosa anomalia que ameaça implodir o contínuo espaço-tempo – diferentes multiversos estão se conectando através de chamadas telefônicas e transmissões de rádio e TV aleatórias. O detalhe é que os acontecimentos de cada universo têm um encadeamento de eventos idênticos, porém em tempos diferentes. De repente sua mãe liga para você do passado, sem nenhum dos interlocutores terem consciência disso.

Não é necessário muito esforço para imaginar as confusões que começarão a ser criadas no planeta, com efeitos exponenciais catastróficos. O fato é que as pessoas começam a intuir que essa será a oportunidade de alterar eventos que foram capitais nas suas vidas: por exemplo, se você tivesse a chance de voltar no tempo para matar Hitler você aceitaria?

Esse é o ponto de curioso na maneira como Calls desenvolve o tema dos multiversos: as alterações forçarão o Universo a consertar a “falha” de encadeamento dos eventos. Por exemplo, fazendo uma pessoa que deveria ter morrido, simplesmente morrer em outra oportunidade de forma terrível como se estivesse derretendo ou sendo esmagada pelo contínuo do tempo-espaço. 

Uma abordagem curiosa pois Calls parece querer combinar a abordagem clássica com a pós-moderna do tempo.

Até a década de 60 temos a visão clássica da viagem no tempo na qual apenas podemos testemunhar os eventos do passado e futuro sem poder alterá-los. Podemos até ser mortos, mas jamais conseguiríamos alterar a seta do tempo. Por exemplo, na cultuada série de TV O Tunel do Tempo (The Time Tunnel, 1966-67) isso é marcante: os dois protagonistas (Phillip e Doug) tentam alterar eventos do passado, mas, no último momento, fatos providenciais impedem a mudança da História. Seria a providência divina?




A partir da clássica trilogia De Volta para o Futuro (Back to The Future, 1985) temos a definitiva mudança dessa concepção clássica do tempo. Podemos voltar ao passado, alterar os fatos para, simultaneamente, alterar o presente. Mais do que isso, em filmes como O Efeito Borboleta (The Butterfly Effect, 2004) ou O Exterminador do Futuro (The Terminator, 1984) o tempo transforma-se em um hipertexto onde cada opção cria um futuro ou um passado alternativo, configurando um complexo tempo/espaço com uma série de universos paralelos que, potencialmente, poderiam se tangenciar ou interagirem.

Essa noção pós-moderna de tempo é tanto inspirada nos hipertextos das redes computacionais como também nos paradoxos quânticos da famosa experiência imaginária do “gato de Schrödinguer” para a ilustrar a imprevisibilidade do futuro e a possibilidade de duas realidades simultâneas poderem coexistir antes do “decaimento quântico” – abrindo as hipóteses de universos paralelos, multiversos ou a Interpretação dos Muitos Mundos (MWI) proposta por Hugh Everett em 1957 – sobre isso clique aqui.

Calls tenta conciliar o enfoque clássico com o quântico do tempo imaginando universos paralelos com entropia e seta do tempo idênticas, porém dessincrônicos: alguns estão no passado e outros no futuro em relação ao nosso universo. Assim como na abordagem clássica, o encadeamento de eventos não pode ser alterado, sob o preço de o contínuo espaço-tempo anular-se a si mesmo num paradoxo. 

Não se preocupe em entender tudo isso depois de mergulhar direto na experiência sensorial de Calls, aliás. Os primeiros episódios farão você pensar que é uma coisa, quando na verdade é outra. Acompanhe a narrativa em seu próprio ritmo - porque se há uma coisa que a pandemia do coronavírus nos ensinou é que todos nós não temos nada além de “tempo”. 


 

Ficha Técnica 

Título: Calls (Série)

Diretor: Fede Alvarez

Roteiro: Fede Alvarez adaptado da série de TV francesa de Timothée Hochet

Elenco: Aubrey Plaza, Clancy Brown, Nicolas Braun, Rosario Dawson, Mark Duplass

Produção: Canal +

Distribuição:  Apple TV +

Ano: 2021

País: EUA

 

Postagens Relacionadas


A armadilha quântica do tempo no filme “Arq”



Série “Undone”: os entrelaçamentos quânticos ocultos na vida cotidiana



Filme “O Culto”: e se nossas vidas forem gigantescas anomalias temporais?



Fantasma do Gnosticismo ronda CERN: para pesquisadores Universo não deveria existir