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terça-feira, março 09, 2021

Narrativa e Imaginário no ardil da bomba semiótica de Fachin contra Lula



“Mandela libertado!” Muitos reagiram dessa maneira diante da decisão do ministro Fachin de anular os três processos contra Lula, produzindo como efeito prático o retorna da elegibilidade do líder petista. Antes dos espíritos mais ingênuos comemorarem, é necessário entender a decisão do ministro no xadrez da guerra híbrida: foi uma decisão calculada como uma bomba semiótica – deu a deixa para a grande mídia construir a NARRATIVA e o IMAGINÁRIO, para as quais toda bomba semiótica faz a ligação. Narrativa: jogar os pobres apresentadores e analistas na fogueira, ao vivo, nos canais fechados durante a tarde para construir, na base do acerto e erro, a narrativa para os líderes de opinião. E à noite, na TV aberta, irradiar para o povão o imaginário: a notícia costura com muitas imagens de arquivo com Lula colérico e trajando vermelho. 

As placas tectônicas se movem... o chão vai tremer! Assim que esse humilde blogueiro soube da decisão do ministro Fachin de anular os três processos contra Lula ao declarar a 13a Vara Federal de Curitiba e torná-lo elegível, de imediato sintonizei a TV no grande sócio da Lava Jato e claque das operações psicológicas dos militares (guerra híbrida): o canal Globo News.

 Claro, Fachin detonou uma bomba semiótica e o modus operandi da operação foi imediatamente disparada: jornalistas e apresentadores do canal noticioso são jogados ao vivo na fogueira, com a missão de construir uma narrativa em tempo real. Para mais tarde, na TV aberta, o Jornal Nacional irradiar o imaginário para o povão.

Afinal, essa é a função de toda bomba semiótica: criar uma conexão física (como acontecimento noticioso) entre a narrativa e o imaginário. A narrativa destinada aos líderes de opinião de um canal fechado, e o imaginário, para as massas que assistem à TV aberta.

O que acompanhamos na tarde de ontem da Globo News somente pode ser comparado à explosão das delações-bomba das gravações que os donos do frigorífico JBS entregaram à Polícia Federal mostrando como o então presidente desinterino Michel Temer deu aval à compra do silêncio de Eduardo Cunha e como o senador Aécio Neves pediu propina de R$ 2 milhões.

Apresentadores e repórteres gaguejando, engolindo seco, trocando nomes, fazendo trocadilhos involuntários. Gafes e mais gafes em profusão. Depois de diariamente martelar a narrativa da governabilidade do governo Temer e do “momento positivo da economia”, o ponto eletrônico na orelha de apresentadores e analistas ordenava jogar Temer ao mar e criar o clima da “inevitabilidade do impeachment” – clique aqui.



Ontem foi a mesma coisa. Tudo ia bem no programa “Estúdio I” com a apresentadora Maria Beltrão batendo na incompetência do Governo em gerir a pandemia e as gafes da viagem da comitiva a Israel em busca da solução mágica do “spray nasal anti-covid”. Até que o chão tremeu! Gaguejando, leu a íntegra da decisão de Fachin. Chama no telão Valdo Cruz e Flávia Oliveira... ela rindo sem parar para algo que lia no celular (o quê seria?...). Passa a bola para o pobre Waldo, enquanto o link de Flávia desaparece para nunca mais voltar.

Tenso e gaguejando, Valdo Cruz, como sempre, tenta passar o pano dizendo que tudo era “processual” e não julgamento do “mérito” – tudo seria apenas mera filigrana jurídica. Rodeia, até aparecer um professor de Direito da FGV pego às pressas, para dizer que ainda tentava entender a decisão do magistrado... volta para Waldo que, de repente, fica às escuras e a imagem congela – fico imaginando alguém desligando a chave geral da sua casa para tentar fugir da saia justa.


Lá como cá: como em 2017, colocar jornalistas ao vivo na fogueira para montar a narrativa


Fios soltos

Logo depois, a apresentadora Christiane Pelajo tentou engrenar a narrativa do “era previsível”. Não colou... Miriam Leitão entra em cena, igualmente tensa e tropeçando nas palavras. Não consegue dizer nada, a não ser tentar salvar a barra do amigo ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro... formula uma pergunta em torno disso a um professor da FGV-RJ que até então estava no link. Mas ele tinha ido embora. De imediato, Leitão faz a mesma coisa.

Porém, a mais consternada era Natuza Nery, ao admitir os “erros processuais” que a Lava Jato cometeu ao longo do tempo: “Quando se combate inimigos tão poderosos, não se pode deixar fios soltos...”, lamentou.

Até que entrou a porta-voz dos “mercados” (financeiros, exclusivamente), Juliana Rosa, e dar a notícia que cimentou a nova narrativa: Dólar disparou! Bolsa caiu! Pronto! A narrativa passou a ser construída a partir desse ponto: até então tudo parecia indo bem, com a economia tentando se recuperar da pandemia, mas entra o fator Lula. A expressão “tempestade perfeita” passou, então, a ser repetida: Pandemia + Lula...

Tempestade perfeita que criaria a “polarização”... que beneficia Bolsonaro... que não sabe gerir a pandemia... que assusta investidores com sua imprevisibilidade... assim como Lula... O nome do “apresentador Luciano Huck” passou a ser citado diversas vezes, sempre de forma elíptica, quase subliminar. Por exemplo: “Perde o Centrão que até aqui não conseguiu definir um nome eleitoralmente competitivo... Doria? Ciro Gomes? O apresentador Luciano Huck?”.


Imaginário recorrente: Lula raivoso trajando vermelho


Jornal Nacional e o imaginário

Criada a narrativa à tarde, entra o Jornal Nacional para conectá-la ao imaginário: 25 minutos do telejornal para dizer que a decisão de Fachin não inocenta Lula e que os processos só saíram da Vara Federal de Curitiba não porque seria incompetente, mas “porque a extensão da corrupção é muito maior, indo além da Petrobrás, chegando a outros órgãos da administração pública”. Para tentar neutralizar o termo “incompetência” e salvar a barra de Moro.

Enquanto isso, a narração das notícias era recheada com muitas imagens de arquivo de Lula colérico, gesticulando muito, bravo e invariavelmente vestindo vermelho... ou prostrado, conduzido por policiais à prisão. Nunca uma imagem neutra, mas sempre carregada de sentido retórico.

Assim desenvolve-se o imaginário (a volta da ameaça vermelha) que torna a narrativa (Pandemia + Lula = polarização) palatável para as massas. 

Para entender por que a decisão “monocrática” (essa expressão foi repetida desde o início pelos analistas para tentar minimizar o impacto) de Fachin é uma bomba semiótica, temos que compreender que a Política e a Economia se tornaram subsistemas tautistas (tautologia + autismo midiático), fechados operacionalmente, tornando-se cego aos acontecimentos externos. Porém, filtrando-os de forma pragmática para manter o equilíbrio interno através de retroalimentação.

Para os mercados (financeiros), acontecimento e notícias externas ao seu sistema nada mais são do que oportunidades especulativas, reagindo de forma automática: não tem vacina? A bolsa cai. Aí vem Pazuello e diz que fechou contrato com a Pfizer Biontech... Bolsa sobe. Bolsonaro coloca um general na presidência da Petrobrás? Insegurança!... Bolsa cai e dólar dispara. No dia seguinte, o presidente sinaliza acelerar a privatização da Eletrobrás... dólar cai, Bolsa dispara... Lula torna-se elegível?... e assim por diante. 

Analistas da mídia tentam criar uma hermenêutica para “ler” as mensagens do “mercado”, que é absolutamente non sense: os agentes financeiros buscam apenas álibis (uma delas, o “espantalho” Lula) para criar janelas de oportunidades. Assim como é a pandemia.

Com o subsistema Político temos a mesma coisa: o fenômeno non sense do tautismo. 

Grau zero da política

O pensador francês Jean Baudrillard referia-se a um suposto “grau zero da política”: e se todo o sistema político se tornou autônomo e fechado em si mesmo em relação à sociedade e a economia? Um sistema cujos signos tornaram-se intransitivos, onde suas distinções (Direita/Esquerda, Oposição/Situação) não são dadas como representação de algo externo, referencial, ao sistema (ideologias, História, Classes Sociais etc.), mas como simples distinções binárias em um sistema fechado em si mesmo.




Partindo desse marco teórico de Baudrillard, em postagem anterior discutíamos que o impeachment de Dilma aconteceu não por suas virtudes ou defeitos, mas por um imperativo simbólico do sistema: Se governos supostamente de esquerda deixaram a banca financeira satisfeita e ajudaram a modernizar as formas de exploração capitalista (a precarização do trabalho iniciada, paradoxalmente, pela políticas neodesenvolvimentistas), por que a urgência do golpe? Dilma não foi derrubada por colocar em perigo a ótima reprodução do capitalismo mas, ao contrário, por paradoxalmente ajudar a implementar uma agenda neoliberal roubando essa pauta da “Direita” – clique aqui.

Perigo simbólico: sem polaridades, o grau zero (o non sense) poderia se tornar explícito, ameaçando o equilíbrio e retroalimentação do subsistema da Política.

O mesmo estava ocorrendo com o governo Bolsonaro. Sem o Centrão ou Centro-Esquerda conseguir emplacar uma polaridade, a bomba semiótica do general na presidência da Petrobrás surgiu como a criação de um falso dilema liberal: intervenção ou autonomia da estatal? Bolsonaro quer uma intervenção populista? Bate-pronto, figuras midiáticas pró-mercado bradaram a narrativa da insegurança e fuga de investidores numa país economicamente castigado pela pandemia.

Inventou-se, então, uma suposta “ala nacionalista” militar nesse novo thriller político para “criptografar” o colapso econômico. A primeira “criptografia” foi a própria pandemia: jogar na conta da COVID-19 o fracasso da agenda neoliberal de Paulo Guedes -  “tudo estava indo bem, mas daí apareceu o coronavírus...”.

Agora, com a bomba semiótica de Fachin, temos Lula: “tudo estava indo bem, a agenda de reformas e privatizações, daí ‘soltam’ o Lula...”.

narrativa da insegurança jurídico-econômica somado ao imaginário do Lula colérico vestido de vermelho criam o álibi perfeito para o sistema político ser eletrizado com uma nova simulação de polaridade: o discurso do crescimento exponencial do populismo dos “extremos”, que supostamente levará o país ao abismo na “tempestade perfeita”.

Como a esquerda pode sair dessa arapuca que transforma Lula num elemento funcional para retroalimentação do sistema? Somente uma guerrilha anti-mídia somada a tomada das ruas poderá criar uma contra bomba semiótica incapaz dos tautismos dos sistemas político e econômico incorporarem como elemento funcional.

P.S.: sincronicamente, explode no dia seguinte nos telejornais a pauta-clichê “policiais nas ruas!”: imagens de policiais civis prendendo, com toda pompa e circunstância do imaginário da meganhagem iniciada pela Lava Jato, cinco suspeitos de envolvimento em um esquema que falsificava alvarás para soltar presos no Rio de Janeiro. Destaque para um dos beneficiados pelo esquema: João Felipe Barbieri, “um dos maiores traficantes de armas do mundo”. Jornalismo metonímico: Esquema ilegal de soltura... Lula também “solto”... assim se constrói o imaginário em uma guerra híbrida.

 

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