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quarta-feira, abril 22, 2020

Curta da Semana: "Apocalypse Norway": o vírus nos expulsará desse mundo


Continuamente, desde o pós-guerra no século XX, o mundo flerta com o apocalipse: a Guerra Fria e o holocausto nuclear, o crash tecnológico, o terrorismo e, agora, o apocalipse viral. Inadvertidamente, o curta-metragem norueguês Apocalypse Norway (2020) do cineasta Jakob Rørvik acabou se sintonizado com o atual cenário da pandemia – o filme deveria estrear em festivais nesse ano, não fosse o COVID-19. Um curta sobre um grupo de adolescentes em férias, escondido em uma área costeira remota da Noruega numa casa enorme quando um vírus apocalíptico domina o mundo e chega no coração da Europa. Aparentemente seguros, assistem a tudo pela TV enquanto vivem suas vidas nas mídias sociais. Mas o mal sorrateiramente invadirá aquele paraíso. Desconstruindo a cena pós-moderna de uma sociedade jovem e tecnológica marcada pelo niilismo e hedonismo. Estrangeiros em seu próprio mundo, em um planeta que nos expulsará.

Em postagem anterior discutíamos que três eventos foram inaugurais no século XX como centro espiritual da cultura contemporânea: Las Vegas, Área 51 e a Bomba Atômica. O centro espiritual do qual seria irradiado para todo o planeta, através da indústria do entretenimento, os três protagonistas que sintetizam a condição humana contemporânea: o Viajante, o Detetive e o Estrangeiro – clique aqui.
Todos esses eventos emoldurados pelas desoladas paisagens do Deserto de Nevada. Las Vegas e os hotéis-cassinos, OVNIs e as teorias conspiratórias em torno da Área 51 (mítica área de testes da força aérea dos EUA onde supostamente estão escondidos desde tecnologia alienígena até cadáveres extraterrestres), a bomba atômica e, finalmente, o deserto. Esse conjunto forma a matriz da imagerie pop, o centro espiritual da civilização norte-americana, os novos arquétipos irradiados pela indústria do entretenimento.
O arquétipo do Estrangeiro está estreitamente ligado com o imaginário apocalíptico - Passa a maior parte do tempo em silêncio, fechado no seu drama, tenso, crispado. Quieto observa o mundo cair em pedaços. A experiência apocalíptica da bomba atômica vai incendiar esse imaginário apocalíptico de fim de um mundo que, afinal, não nos pertence.



Um exemplo desse inconsciente coletivo contemporâneo é o curta Apocalypse Norway (2019). É um curta-metragem feito pelo cineasta norueguês Jakob Rørvik sobre um grupo de adolescentes em férias, escondido em uma área remota da Noruega em uma casa enorme quando um vírus apocalíptico domina o mundo.
O emblemático nessa produção é o diálogo inconsciente com o livro "On The Beach", escrito em 1957 por Nevil Shut – com uma adaptação no cinema em 1959 com o filme A Hora Final – no livro após uma Guerra Mundial Nuclear a radiação mortal espalha-se por todo o planeta e, na Austrália, um grupo espera a morte chegar, lidando com a situação cada um a sua maneira.


Em Apocalypse Norway, a radiação nuclear é substituída pelo vírus. E o lugar distante de refúgio deixa de ser o litoral australiano para ser num refúgio costeiro ao sul da Noruega. O curioso é que o pôster e a mais icônica sequência do curta replicam a capa da edição de 1974 do livro On The Beach: jovens em contra luz na beira do mar vendo o por do Sol... e esperando a morte.
Desde o pós-guerra no século XX, a condição existencial de estrangeiro (de não pertencermos a esse mundo e do qual, irremediavelmente, seremos arrancados) acompanha o persistente imaginário do fim do mundo: a Guerra Fria e o holocausto nuclear por três décadas; com a queda do Muro de Berlim, entramos nos anos 1990 com a expectativa do apocalipse de um crash financeiro mundial e o crash tecnológico do “bug do milênio” (cujo filme O Clube da Luta foi o símbolo dessa década); no pós atentados de 2001 nos EUA, a ameaça do terrorismo global, seja por bombas ou armas biológicas; e por fim, iniciamos o apocalipse viral com a pandemia COVID-19.
O curta-metragem norueguês foi filmado em 2018 e a pós-produção em 2019. Apocalypse Norway estrearia esse ano em festivais pelo mundo, não fosse a crise da pandemia. Ironicamente, o curta foi vítima de uma pandemia global que também é representada na sua narrativa.


O Curta

Segundo o diretor Jakob Rørvik, o enredo básico do filme é uma variação dos pesadelos reais que os noruegueses partilham. Porém, haveria uma ilusão de segurança por um ponto de vista nórdico: os países escandinavos se sentiriam seguros por estarem nos confins do mundo. Mas essa ilusão é simplesmente dilacerada pelo curta.
"Fiz este filme em 2018, então eu não tinha ideia de que este projeto estaria de repente tão alinhado com o que está acontecendo no mundo agora", diz o cineasta Jakob Rørvik sobre a nova pandemia de coronavírus. Descrevendo seu projeto como “Parte ensaio, parte horror existencial”, os adolescentes continuam a viver suas vidas nas mídias sociais à sombra de um apocalipse iminente.
"Eu queria colocar o privilégio econômico norueguês e a sensação de segurança contra um perigo que não discrimina em termos de classe ou geografia", diz Rørvik, que constrói e mantém um humor pesado ao longo do filme com a bela fotografia de Andreas Bjørseth e ritmo sonoros, a cargo do produtor de música eletrônica André Bratten.
Narrado por magníficos visuais que mesclam imagens portáteis de smartphones com belos planos de câmeras de um recôndito costeiro na Noruega, acompanhamos um grupo de adolescentes em férias numa imensa casa em estilo modernista (com amplas áreas envidraçadas tendo o mar como cenário). 
Oda (Billie Barker) percebe, através do seu celular, que uma pandemia apocalíptica viral chega ao coração da Europa: imagens de mortos nas ruas, pânico e correria de multidões tomam os portais de notícias. O restante do grupo confirma as informações com imagens dos telejornais na TV


Mas o fato é que tanto Oda como o restante do grupo composto por Vilde (Lotte Nenningsen), Petter (Kjetil Jore), Mariann (Lea Meyer), Daniel (Håkon Stubberud) e Einar (Lars Tafjord), são muito jovens. A princípio, continuam suas rotinas de festas, bebidas, entretenimento e passeios.
Eles são privilegiados, despreocupados, lembrando aquele célebre quadro considerado o símbolo da cena pós-moderna: “The Old Man Boat and The Old Man Dog” (1982), do pintor norte-americano Eric Fischl - vemos na tela jovens nus refastelados no convés de uma embarcação em pleno alto mar. Estão bebendo, deitados, relaxados como se estivessem em um calmo dia de sol, enquanto o oceano está agitado e o céu escuro prenuncia uma tormenta. Um enigmático dálmata passeia por entre os corpos nus de pessoas completamente alheias ao seu futuro: o naufrágio. Onde está o “velho homem” do título? Vemos somente jovens sem futuro convivendo com a ausência do passado. Hedonismo e niilismo.
É como se o vírus fosse o anjo vingador contra uma sociedade moralmente corroída pelo niilismo e hedonismo. Uma sociedade que encontra o seu acerto final
E a jovem Oda parece representar a única jovem do quadro de Fischl, que está com um colete salva-vidas, aparentemente consciente do que acontecerá, tentando avisar os demais levantando um dedo para chamar a atenção.
Sorrateiramente, a ameaça invisível que destrói o planeta entrará naquele paraíso aparentemente seguro. Levando a um desfecho muito parecido com o clássico literário da Guerra Fria “On The Beach”.
Jovens que muito cedo, da pior forma possível, descobrem a condição existencial básica humana: somos estrangeiros, em um mundo que não nos pertence e parece querer nos expulsar.

  

Ficha Técnica 

Título: Apocalypse Norway
Diretor: Jakob Rørvik
Roteiro: Jakob Rørvik
Elenco: Billie Barker, Lotte Henningsen, Kjetil Jore, Lea Meyer, Håkon Stubberud, Lars Tafjord
Produção: Ape&Bjorn
Distribuição:  Vimeo
Ano: 2019
País: Noruega


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