Sarah é uma jovem comum que vive uma vida muito comum: trabalha em uma loja de artesanato, adora cavalos e assiste sua série sci-fy favorita em casa todas as noites. Mas quando Sarah conhece um cara que ela gosta, começa a ter estranhos sonhos lúcidos que passam a se confundir com a realidade. Com histórico familiar de esquizofrenia e depressão, Sarah é aquilo que a narratologia chama de “narradora não confiável”. Mas o problema para o espectador é que sonho e realidade começam a ter uma estrutura lógica envolvendo aliens, abduções, clones e loops temporais. Haveria algo além de supostos surtos esquizofrênicos? “Entre Realidades” (“Horse Girl”, 2020) é um quebra-cabeça paranoico da Netflix na qual o espectador terá que se defrontar com truques narrativos e pistas tanto falsas como verdadeiras para responder essa questão: será que aquilo que entendemos como realidade é apenas o resultado da nossa percepção? Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.
Tanto na literatura quanto no cinema e TV, um “narrador não confiável” é um narrador cuja credibilidade foi seriamente comprometida na narrativa.
Na narrativa cinematográfica clássica, temos uma unidade de ação espaço e tempo, em terceira pessoa na qual o filme parece saber tudo o que precisa da estória como um narrador onisciente que vai relatando ao espectador tudo aquilo que aconteceu. É, portanto, um narrador confiável em terceira pessoa.
Bem diferente são as narrativas em primeira pessoa nas quais a falta de confiabilidade fica evidente, como, por exemplo, quando protagonista sustenta afirmações delirantes, admitindo sofrer alguma severa doença mental. Ou ainda nos filmes de detetive no gênero noir, nos quais o espectador perde a onisciência narrativa e passa a saber tanto quanto o detetive, sempre cercado de dúvidas ou falsas pistas – aquilo que Hitchcock chamava de “MacGuffin”.
Mas os teóricos em narratologia cinematográfica também falam da possibilidade de narradores não confiáveis em segunda e até terceira pessoa.
É aqui que entra a atual inventividade da atual safra de filmes independentes: e se o narrador não confiável estiver enredado numa trama cuja estrutura dos eventos começa a fazer sentido real? Onde primeira e terceira pessoa (a narrativa clássica onisciente) se misturam formando um quebra-cabeças para o espectador.
Esse é o filme Entre Realidades (Horse Girl, 2020), com um enredo ambicioso (uma espécie de trans gênero, transitando livremente entre elementos sci-fi, teorias da conspiração, psicodrama e thriller) e um final ainda mais complicado. Um filme que pode ser colocado na lista de outros filmes indie classificados como “psicodramas alt-sci-fi”: Sound of My Voice, K-Pax, I Origins, Primer, Empathy Inc., Safety Not Guaranteed, entre outros numa lista já bem grande.
Esse subgênero “psicodramas alt sci-fi” no qual os elementos scfi-fi parecem “McGuffins” para discutir questões existenciais e de relacionamentos, assume um outro nível em Entre Realidades: o discurso lírico de uma protagonista em supostos surtos paranoico-esquizofrênicos ganham uma, digamos assim, consistência estrutural como loops em viagem no tempo na medida em que a narrativa avança.
Deixando o espectador em uma dúvida ainda mais radical do que no clássico Amnésia (2000) de Christopher Nolan – toda a realidade pode parecer uma ilusão criada pela percepção.
O problema em Entre Realidades é que a ilusão começa a ter lógica, que é amarrada principalmente nas sequências finais. Uma lógica que envolve intrincados loop temporais, tema muito explorado nos psicodramas alt sci-fi como O Homem Infinito, Lake Artifact ou O Culto.
Mas com uma diferença: Entre Realidades conecta com o tema da esquizo-paranoia e a doença mental. Mas a dúvida persistirá no espectador: e se os chamados “doentes mentais” forem aquelas pessoas que, pela sua natureza psíquica disfuncional, forem os únicos a perceberem a inconsistência do que entendemos por realidade? Dúvida gnóstica alimentada pelo ardil do narrador não confiável.
O Filme
Entre Realidades acompanha a atuação de Alison Brie no papel de Sarah, uma mulher na casa dos trinta, socialmente desajeitada e que divide o aluguel de um apartamento com a conhecida chamada Nikki (Debby Ryan).
Com seus olhos enormes parecendo quase chorar, Sarah leva uma rotina tranquila e ao mesmo tempo hesitante: trabalha como atendente em uma loja de produtos de artesanato, visita um estábulo onde vive o seu amado cavalo chamado Willow e passa as noites obsessivamente assistindo a uma série sci-fi chamada “Purgatory”.
Mas há alguma escuridão por trás dessa rotina: logo depois que começa o filme, o namorado de Agatha encontra Sarah sonâmbula, olhando fixamente para a parede.
A estória começa em um território bastante familiar: Sarah luta para superar sua inadaptação e tenta se conectar com suas colegas de aulas de dança e com sua colega de apartamento egoísta, Nikki, que faz uma festa de aniversário improvisada só para observar comicamente as tentativas das pessoas serem legais com Sarah.
Sua supervisora na loja de artesanatos, Joan (Molly Shannon) aparentemente é sua única amiga confidente. As coisas começam a tomar um rumo estranho quando Joan oferece a Sarah um kit de DNA doméstico, provocado pela obsessão dela com a incrível semelhança com sua avó. Somado à sua preocupação de um histórico familiar de crises de saúde mental (sua mãe cometeu suicídio), Sarah começa a alimentar fantasias paranoicas de que talvez ela seja um clone da sua avó. Talvez, fantasias alimentadas pela série “Purgatory”...
A atriz Alison Brie foi co-autora do roteiro, e baseou-se bastante no seu próprio histórico familiar envolvendo esquizofrenia e depressão paranoica – para ela, o projeto do filme é explorar “como é aterrorizante não poder confiar na sua própria mente”.
Por isso, a primeira metade do filme destila esse medo de que tudo o que você vê e lê pode não ser real. Os primeiros indícios de dúvida de Sarah são assustadores e sutis - arranhões misteriosos nas paredes, lapsos de memória, um estranho produzindo déjà vu agudo - mas capaz de ser racionalizado.
A trilha sonora às vezes evoca o ruído de insetos, além do foco de Sarah de repente se deter em objetos inócuos - relógios, maçanetas, drenos de chuveiro - aumentam uma sensação de desapego, insônia ou a armadilha da auto-ilusão.
Aos poucos, as pessoas dignas de confiança como Joan e seu doce e inesperado pretendente chamado Darren (John Reynolds) começam a ficar alarmados com o progressivo desapego lógico de Sarah com a realidade. Principalmente quando os seus sonhos lúcidos começam a contaminar a vida de vigília – por exemplo, quando um dos personagens de seus sonhos aparece na vida real como o proprietário de uma loja de encanamentos.
O terceiro ato do filme é uma verdadeira vertigem na qual o tecido da realidade se desfaz, mostrando nos bastidores uma conspiração alienígena envolvendo clones que se degeneram por doenças mentais, para serem substituídos por novos clones.
A narrativa é sempre através do ponto de vista de Sarah, o que a torna uma narradora não confiável, principalmente quando vai parar numa instituição mental.
Porém, a frase do psiquiatra Ethan (Jay Duplass) que a atende é críptica: “Acredito que esteja dizendo a verdade e que tudo seja 100% real para você, porém devo dizer que sou um pouco cético a respeito de abduções e clonagens...”.
Viagem no tempo, aliens e clones – Alerta de Spoilers à frente
O que dificulta o nosso entendimento do que aconteceu, certamente é o aspecto narrador não confiável de Sarah. Isso inevitavelmente levará a perguntas sobre se os eventos na tela. E o filme como um todo - realmente aconteceram.
Porém, as pistas espalhadas na narrativa mostram lógica e estrutura.
Às vezes, quando os alienígenas sequestram Sarah, eles a colocam de volta na hora errada, o que faz com que Sarah viaje no tempo e estabeleça um ciclo de tempo. Se isso é intencional ou se um acidente não é conhecido, e cabe a ela e ao público captarem as pistas de quando ela voltou no tempo e quando os sequestros simplesmente a deixaram confusa sobre como ela chegou de um lugar para outro.
O loop de tempo que a Entre Realidades tem não é um loop tradicional. Em vez disso, é uma cadeia contínua de eventos que começa quando Sarah encontra os alienígenas pela primeira vez até que eles a levam embora no final. Esse loop parece continuar além do final de Entre Realidades se Sarah for sua própria avó.
Quando ela está na instituição psiquiátrica e tem seu sequestro mais violento até aquele momento, Sarah volta ao mundo vários dias antes do que deveria, mais ou menos quando o filme começa. Isso faz Sarah mencionar a conversa que ela e o psiquiatra Ethan tiveram antes que ele não se lembra, porque ainda não aconteceu para ele.
Isso explica por que ele diz que foi assistente social de Sarah na semana passada, no início do filme. Sarah está voltando mais cedo do que quando saiu e é confirmado quando o cavalo Willow passa em frente à loja de artesanatos e Joan vê o cavalo passar exatamente como na abertura do filme. Claro, também há a implicação de que Sarah está prestes a viajar no tempo novamente quando o filme termina.
O filme cuidadosamente segue a linha entre fazer o público questionar o que está acontecendo e permitir que eles confiem em Sarah. Mas, se havia alguma dúvida de que os eventos de Entre Realidades ocorreram no mundo real, o maior indicador disso parece estar mais uma vez ligado a Joan. O fato de ver o cavalo Willow passando em frente a sua loja não apenas ajuda a esclarecer o uso das viagens no tempo, mas também confirma que o clímax do filme - e toda a estória de Sarah - aconteceu de alguma maneira.
Ficha Técnica
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Título: Entre Realidades (Horse Girl)
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Diretor: Jeff Baena
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Roteiro: Jeff Baena, Alison Brie
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Elenco: Alison Brie, Molly Shannon, Debby Ryan, John Reynolds
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Produção: Duplass Brothers Productions
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2020
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País: EUA
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