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sábado, fevereiro 02, 2019

A ameaça simbólica de Lula e a Síndrome de Brian da esquerda

“Covardia!”, “desumanidade!”, “barbárie!”. Assim reagiu a esquerda, chocada com a proibição de Lula (prisioneiro há nove meses) participar do velório do seu irmão em São Bernardo do Campo/SP. Até a ditadura militar autorizou que Lula fosse ao velório da mãe, em 1980!, acusa inconformada a esquerda. A Polícia Federal apresentou seis motivos para não conceder o benefício. Em cada um deles, está a evidência de que o atual oponente da esquerda não são mais os toscos militares da ditadura que, ironicamente, permitiam até gestos humanitários. Agora há um atento e utilitarista cálculo dos riscos na guerra semiótica: as repercussões simbólicas de Lula repentinamente aparecer em público, diante das lentes das câmeras. PF e Judiciário são mais zelosos com a ameaça simbólica de Lula do que a esquerda jamais foi – entregou de bandeja sua maior arma semiótica, agora condenada à invisibilidade. Enquanto isso, convive com a sua autoindulgente “síndrome de Brian” (relativo ao filme "A Vida de Brian" do grupo de humor Monty Python), imaginando ainda estar enfrentando os velhos inimigos toscos do passado.  

Desde que os nazistas atrelaram uma sirene nos aviões bombardeiros de mergulho chamados Stuka, a guerra convencional tornou-se uma batalha semiótica. Enquanto davam voos rasantes e soltavam bombas, o indefectível uivo dos Stukas assombrava toda a Europa. 
O projeto Stuka (criado pelo ás da Primeira Guerra Mundial, Ernst Udet, que trabalhou como assessor cinematográfico em Hollywood) foi uma evidência da transformação da guerra tradicional em guerra total (“blitzkrieg”): apenas bombas explosivas que causam morte e destruição não eram suficientes. Era necessário que sobreviventes carregassem para o resto das suas vidas o trauma e o horror em suas mentes – bombas simbólicas de efeito eterno. Assim como o cinema e o audiovisual.
Esse caráter semiótico de todas as guerras (desde a bélica militar até as batalhas jurídicas, midiáticas ou de propaganda) também está evidente nos seis pontos alegados pela Polícia Federal contra a autorização de Lula (prisioneiro na PF de Curitiba desde o ano passado) ir ao velório do seu irmão em São Bernardo do Campo/SP.
Estes foram os motivos alegados: fuga ou resgate de Lula; atentado contra a vida; atentado contra agentes públicos; comprometimento da ordem pública; protestos de apoiadores de Lula; protestos de grupos contrários a Lula.
Estariam preocupados com a integridade física do prisioneiro e agentes públicos? Estaria a PF tensa com a possibilidade de uma fuga espetacular do prisioneiro? Entretanto, esses seis motivos apresentados são meros álibis. A verdade está em uma outra cena: a simbólica.
Guerra semiótica: o mergulho do Stuka sob o uivo das sirenes que assombraram a Europa

O risco Lula

Em cada um desses seis motivos alegados está presente o cálculo dos riscos simbólicos de um personagem como Lula (preso há nove meses, proibido de conceder entrevistas e com visitas restritas) repentinamente aparecer em público, diante do foco das câmeras.
Principalmente nesse momento de comoção com o genocídio provocado pela Companhia Vale em Brumadinho/MG, enquanto o staff do Governo Bolsonaro bate cabeça e o próprio líder está internado no hospital Albert Einstein. Paralelo, a grande mídia cada vez se mostra mais interessada em dar destaque às opiniões do vice General Mourão do que aos arroubos do presidente.
Em todos esses últimos anos de Lava Jato, com os sucessivos nomes criativos das operações da PF para batizar cada  show de meganhagem ao vivo na TV, é evidente que o Judiciário está muito consciente da natureza semiótica da atual guerra política brasileira. E, por isso, tem em mente que o simbolismo de Lula se tornou maior do que o próprio PT, partido que ajudou a fundar.
Enquanto, quase diariamente, algum ministro do atual Governo vem nas redes sociais para colocar a culpa de qualquer mazela no PT, no comunismo ou no socialismo (o chefe da casa civil, Onix Lorenzoni, chegou a colocar a culpa pela tragédia de Brumadinho no PT, apesar da Vale ter sido privatizada na Era FHC), o nome Lula é mantido em silêncio. Como se o líder político tivesse desaparecido da face da Terra.
Lembrando a velha máxima: “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Razão pela qual o conjunto PF e Judiciário se mostra muito zeloso com a posse da grande arma simbólica chamada Lula.


Muito mais zeloso do que o PT, que entregou de graça a sua mais poderosa arma na guerra semiótica – com Lula protegido no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, o PT virou às costas para qualquer possibilidade tática de empate ou desobediência civil (ou até mesmo pedido de asilo político), que acabaria por gerar uma grande incidente de repercussão global (era tudo o que a PF não queria), e entregou sua maior arma de bandeja – conscienciosos, meses antes já haviam entregue até o passaporte de Lula na PF... – clique aqui.

A reação “Síndrome de Brian”

“Negaram a Lula o direito mais sagrado!”, “violência jurídica”, “cinismo da juíza Carolina Lebbos”, “covardia do STF”, protesta a esquerda revelando, mais uma vez, aquilo que em postagem anterior esse humilde blogueiro chamou de “Síndrome de Brian”. 
Principalmente os fãs da trupe inglesa de humor Monty Python devem lembrar do filme A Vida de Brian (1979) onde o pobre protagonista (confundido com Jesus) vive às voltas com a “Frente Popular da Judéia” que pretende livrar o povo do imperialismo romano, mas tudo o que faz é tentar elevar o moral da própria tropa com incansáveis e burocráticas auto-avaliações e planos que jamais saem do papel.
Mas os atuais protestos contra a “barbárie e falta de humanidade dos carrascos do presidente” lembram também a agressividade passiva da Frente da Judéia, cujos membros se auto-vitimizavam, deixando serem presos pelos soldados romanos e gritavam: “VEJAM! VEJAM! Mais um ato violento do imperialismo romano...".
E apontam espantados que mesmo na ditadura militar, em 1980, Lula teve a autorização para comparecer ao velório da mãe. 
A questão é que enquanto a esquerda pensa numa perspectiva ética kantiana ou iluminista (a crença na boa vontade e o senso de obrigação moral em relação a direitos universais) a PF e o Judiciário se orientam por uma ética utilitarista de David Hume ou Jeremy Bentham – o moralmente Bom será sempre aquilo que é útil. O princípio utilitarista da guerra semiótica.

"A Vida de Brian": VEJAM! VEJAM! A violência do imperialismo romano... 

Durante a ditadura, os militares eram tão “toscos” que até se permitiam a concessões “humanitárias” como a concedida ao prisioneiro Lula em 1980. “Toscos”, porque limitavam-se à guerra convencional – eram como um Stuka jogando apenas bombas, sem sirenes. 

Um inimigo muito diferente

Hoje, a esquerda tem diante de si um inimigo muito diferente, porque consciente da importância das armas simbólicas em uma guerra política – principalmente porque foi parido pela guerra híbrida arquitetada pela geopolítica dos EUA. Não é à toa que Bolsonaro volta toda a carga contra a TV Globo: afinal, sabe que a mesma emissora que involuntariamente o criou, pode também defenestrá-lo. 
Ao contrário da esquerda, que rifa sua principal arma semiótica (o alto valor político agregado de toda a trajetória de Lula), para depois se auto-vitimizar assim como os impagáveis militantes da Frente de Libertação da Judéia, denunciando a “barbárie” e a “desumanidade” dos algozes.
Talvez a PF e o Judiciário jamais tenham lido Umberto Eco, mas têm faro suficiente para entender, e colocam em prática, a natureza da TV atual que o pesquisador italiano chamou de “neotevê”: “se eu estou transmitindo, então é verdade”, diz a TV. Se a TV não mostrou, logo não existiu – sobre isso, clique aqui.
Se Lula não aparece na tela, logo não mais existe. 

Condenado à invisibilidade

Os inimigos da esquerda realizam de forma inversa a tese de Umberto Eco sobre a natureza da atual realidade televisiva. Fala-se que não há vácuo na Política: sempre uma força ocupará o espaço vazio de Poder. Se a esquerda foi negligente com o seu próprio capital simbólico e não aproveitou a oportunidade de transformar a prisão de Lula num acontecimento comunicacional (como as sirenes dos Stukas), o inimigo ocupou o espaço transformando Lula em uma não-evento. 

"O Homem da Máscara de Ferro", 1998

Ironicamente, no discurso em frente ao sindicato em São Bernardo diante de sindicalistas e a militância, Lula disse: “não sou mais um ser humano, sou uma ideia”. Mas parece que a direita compreendeu melhor essa tese do que a própria esquerda.
Portanto, Lula deve se tornar a versão brasileira do filme O Homem da Máscara de Ferro (1998) – o prisioneiro que não poderia ser visto porque era o verdadeiro herdeiro do trono da França – o rei Luís XIV mantinha um prisioneiro condenado a esconder para sempre o rosto atrás de uma máscara metálica.
Exatamente por isso, para a PF e o Judiciário, Lula jamais deverá sair da prisão, apesar dos hercúleos esforços do exército Brancaleone kantiano e iluminista formado pelos advogados de defesa. 
Os treze anos em que o PT ficou no poder parecem ter afrouxado a perspicácia das esquerdas. Preferem replicar a familiar narrativa da “luta e resistência”, surgida nos tempos em que tinham como oponente uma ditadura militar bruta, sem qualquer familiaridade com firulas semióticas. No máximo, raciocinavam nos termos da propaganda política clássica binária: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. 
Hoje, simplesmente a esquerda não consegue compreender que seu inimigo se sofisticou: rege-se pela ética do utilitarismo e pelas operações psicológicas e simbólicas – estratégias de criptografia, conjunto de informações dissonantes, controle de categorias etc. Guerra total, análoga ao mergulho atemorizante dos Stuka.
Por trás da “insensibilidade” da juíza de custódia Carolina Lebbos, da “covardia” do STF e da “barbárie” da PF, há um cuidadoso cálculo dos riscos simbólicos de, simplesmente, Lula novamente aparecer para a lentes das câmeras depois de tanto tempo de reclusão. 
Além da prisão, Lula foi condenado à invisibilidade. 
A esquerda perdeu o timing, e agora se protege na autoindulgente “Síndrome de Brian”. 

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