Pages

segunda-feira, março 05, 2018

Curta da Semana: "The Walk Home" - Gnose e Política após a morte


Um dos trunfos do blog “Cinegnose” para demonstrar as conexões que envolvem o Gnosticismo e a Política é o curta “The Walk Home” (2014) do animador e ilustrador inglês Steve Cutts. Sim! A gnose é um ato político. Principalmente após a morte quando conseguimos dissolver as ilusões que nos prendem à órbita terrestre e que nos capturam em um novo ciclo de reencarnação e esquecimento. Um jovem desperta em uma grande cidade violenta e dominada pelo crime organizado. Mas é também uma sociedade na qual a elite parece tirar vantagem dessa desordem e caos. Numa perigosa jornada noturna, o jovem tem uma revelação estarrecedora. Mas também libertadora.  

Muitos leitores desse Cinegnose ainda se surpreendem com as conexões que esse blog faz entre Gnosticismo e Política. Uma conexão historicamente natural e instantânea. Afinal, um conjunto de seitas sincréticas surgidas no início início da Era Cristã começarem a sugerir que o papa na verdade não era o porta voz de Deus na Terra, mas de um Demiurgo enlouquecido que não nos ama, nunca foi exatamente bem recebido pelo mainstream político e religioso.

O que fez o Gnosticismo habitar o underground da cultura, historicamente escondendo-se e esgueirando-se em periódicos revivals como o Romantismo no século XIX e, atualmente, reaparecendo no Cinema e cultura pop.

 O curta The Walk Home (2014) é um flagrante exemplo de como elementos da mitologia gnóstica ainda hoje combinam com a crítica política e social. Comprovando que o Gnosticismo é muito mais do que uma religião. É o próprio “jazz” das religiões: seu mix de influências esotéricas, ocultistas e filosóficas o transformam numa espécie de ponte entre a dimensão espiritual e as questões terrenas.


O Curta


Produzido em After Effects e Photoshop e em estilo graphic novels, o ilustrador e animador inglês Steve Cutts (de outros curtas já analisados como Happiness e Where Are They Now?) nos conta a estória de um jovem que desperta sobre o capô de um carro velho abandonado em uma rua escura de uma grande cidade. Machucado e cambaleando, ele vaga por ruas e becos, sempre ameaçado por gangues armados com armas e facas.

O jovem segue a sua jornada pelas ruas vendo carros ocupados por gangues e exibindo submetralhadoras, bêbados dormindo sobre mesas de bares ao lado de garrafas vazias e jovens viciados em crack largados no chão pelas calçadas. Tudo acompanhado por uma pesada e soturna trilha de hip hop.

Mas também o protagonista vê alegria, mas não nas ruas. Vê milionários em festas fechadas comemorando sua riqueza e poder. Além de políticos representados por serpentes, discursando em microfones. Tiros, assassinatos e lutas entre gangues armadas são generalizadas e parecem espalhadas por toda a cidade. Carros incendeiam e jovens jogam coquetéis molotov.

Enquanto vê tudo isso, o jovem protagonista segue em frente, trôpego e se apoiando em carros estacionados. Para ele, parece que personagens reais e fantasmas estão se misturando nas ruas, numa atmosfera surreal de realidade e alucinações.

Como o título do curta nos informa, parece que o protagonista caminha à procura da sua casa, querendo fugir de todo aquele inferno. Até que no meio da sua jornada ele terá uma surpresa estarrecedora.


Gnose e Tela Mental - spoilers à frente


Quem assistiu ao filme Enter The Void (2009, clique aqui) do diretor francês Gaspar Noé perceberá que a temática de The Walk Home é muito próxima. No longa, temos um traficante norte-americano em Tóquio assassinado por causa de uma entrega de drogas. A partir disso, acompanhamos sua jornada espiritual em uma Tóquio etérica e psicodélica pós-morte, seguindo as etapas da busca de uma consciência supramundana que o faça superar da “tela mental” do Ego que nos prende as ilusões desse mundo.

Mas o curta de Steve Cutts é diferente por acrescentar uma forte crítica social. O animador inglês nos apresenta um apartheid social no qual os ricos comemoram seu poder de um lado, enquanto do outro os miseráveis se matam nas ruas através de armas colocadas em circulação pelo crime organizado.

Ironicamente na narrativa do curta surgem até os inesquecíveis black blocs (para onde eles foram?) com seus coquetéis molotovs tendo como fundo carros incendiando, em poses que lembram as famosas fotos das quebradeiras das chamadas “Jornadas de Junho” e das manifestações brasileiras que culminaram em um golpe político e todas as consequências que acompanhamos até hoje.

Steve Cutts sugere que a anomia, caos e desordem provocada pela criminalidade organizada não ameaça o sistema. Faz parte dela na manutenção da ordem maior por meio das desordens pontuais. Para que a elite possa criar um inimigo interno (“criminosos” e “marginais”), mantendo a sociedade ao lado das mesmas forças repressivas que a reprime.


Essa ilusão produzida pelo medo continua mesmo após a morte, na medida em que o que chamamos de “morte” nada mais é do que projeção do Ego em uma tela mental (à semelhança das imersões através de óculos de realidade virtual). Medos, pesadelos, sonhos e desejos da vida continuam sendo projetado na dimensão pós-morte, perpetuando a aparência e dominação.

Imersos na ilusão pós-morte da tela mental, perpetuamos as mentiras terrestres. Prontos para sermos recapturados para uma próxima reencarnação, recomeçando do esquecimento toda uma nova escalada de ilusões.

O final de The Walk Home é totalmente gnóstico, mostrando o verdadeiro caminho de retorno para casa: a gnose pós-morte. Todos os fantasmas das vítimas da violência se unem, dão as mãos e criam uma luz tão forte (a gnose?) capaz de pulverizar armas e as máscaras dos criminosos. Uma luz capaz de dissolver as aparências, mostrando quem realmente são as pessoas, para além dos papéis e dos rostos distorcidos e machucados pela violência que mantém a ordem.

A crítica social levantada por Steve Cutts é bem sugestiva para a atual realidade brasileira de início da escalada da intervenção militar para a criação de novos inimigos internos e perpetuação da ordem pós-golpe: depois de comunistas, bolivarianos e petistas, agora teremos os favelados e o crime organizado – PCC e Comando Vermelho. Os novos inimigos internos como tática diversionista para entreter o distinto público.



Ficha Técnica 

Título:  The Walk Home
Diretor: Steve Cutts
Roteiro: Steve Cutts
Produção: Steve Cutts Production
Distribuição: Vimeo, YouTube
Ano: 2014
País: Reino Unido


Postagens Relacionadas