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domingo, dezembro 10, 2017

Curta da Semana: "Where Are They Now?" - uma cilada destruiu Roger e Jessica Rabbit


Onde estão os ícones da animação dos anos 1980 como He-Man, Roger e Jéssica Rabbit (do filme "Uma Cilada Para Roger Rabbit"), o Esqueleto, Garfield, Popeye, Mumm-Rá, muito tempo depois do auge? Como seria a realidade das suas vidas atuais? O animador inglês Steve Cutts (conhecido por narrativas críticas sobre a vida moderna) os imagina viciados, obesos, compulsivos, desempregados ou subempregados em call-centers e caixas de supermercados. Esse é o argumento do pequeno curta “Where Are They Now?” (2014): heróis que perderam a batalha final contra inimigos mais poderosos do que vilões desse ou do outro mundo: o mundo corporativo, o trabalho precarizado e o desemprego crônico. E terminaram esquecidos porque acabaram ficando parecidos demais com os espectadores.

Steve Cutts é um ilustrador e animador que diante da escolha entre trabalhar no McDonald’s ou estudar Belas Artes, escolheu o último. Trabalhou na agência de publicidade digital Isobar UK como o principal artista do conceito de storyboard para depois dar um salto como freelancer. E iniciar uma série de vídeos e imagens com uma visão crítica da vida moderna, criando paisagens tristes e melancólicas.

Cutts costuma dizer que “a insanidade da humanidade é um conjunto infinito de inspiração”. Este Cinegnose já atestou esta inspiração de Cutts em dois curtas de animação: Are You Lost in the World Like Me? (vídeo-clip criado para o DJ Moby – clique aqui) e o recente Happinessclique aqui.

Com Where Are They Now? (2014), Steve Cutts agora tenta imaginar o que aconteceu com os protagonistas animados Jéssica e Roger Rabbit depois do filme de sucesso Uma Cilada para Roger Rabbit (1988). Partindo da premissa do filme no qual desenhos animados da Toontown (a cidade dos desenhos animados) interagiam com seres humanos e estavam empregados em grandes estúdios de cinema, Cutts tenta imaginá-los agora no presente. E certamente os bons tempos terminaram.

Ela ficou obesa, comendo sem parar salgadinhos e frango frito diante da TV. E o coelho, um viciado em jogos de azar e com problemas de saúde pelo tratamento de reposição hormonal. Estão desempregados e passam o tempo vendo TV e se lamentando.

Roger querendo que alguém o mate para acabar com o sofrimento. E Jéssica narra as dificuldades de viver com um viciado, dizendo que nos anos 1980 fazia todo sentido ter uma aventura romântica com um coelho. Mas agora...


O roteiro de Robert Zemeckis recusado pela Disney


Certamente Steve Cutts se inspirou nas dificuldades de Robert Zemeckis em fazer uma sequência de Uma Cilada Para Roger Rabbit. Numa entrevista ao The Telegraph, Zemeckis falou sobre o roteiro que escreveu para a sequência, na qual mostraria Roger e Jéssica nos anos seguintes ao original, bem distante do estilo noir dos anos 1940. Para ele, “a atual cultura corporativa da Disney não tem interesse no Roger, muito menos na Jessica”.

No filme de 1988 um detetive de carne osso chamado Eddie Valiant (Bob Hoskins) é contratado pelo coelho para investigar uma suposta infidelidade da sua esposa Jéssica. Para piorar, Roger se torna suspeito do assassinato do parceiro de Valiant e um vilão está empenhado em acabar com todos os desenhos animados de Toontwn (onde moram personagens icônicos como Mickey Mouse e Betty Boop) – o vilão estaria envolvido numa conspiração para acabar com os transportes públicos para a indústria impor os automóveis como o único meio de transporte. E a cidade dos desenhos animados deveria ser apagada para a passagem das futuras autoestradas.

Para Cutts, é exatamente esse mundo corporativo e privatizante que se volta contra os desenhos animados, trazendo o desemprego ou submetendo personagens famosos no passado a subempregos precarizados.


Também no curta encontramos os tristes destinos de outras celebridades dos desenhos animados: Popeye arrasta-se como um idoso sem-teto em um estacionamento de supermercado, Mumm-Rá e Lion-O trabalham como caixa e serviços de limpeza em um supermercado de descontos. Enquanto isso Esqueleto, o vilão de He-Man, trabalha entediado em um call-center e Optimus Prime serve gordurosos pedaços de frangos fritos.

Sem falar em Garfield, ainda mais gordo tendo que ser levantado por uma empilhadeira para seu dono, o agora idoso Jon, limpar a caixinha de areia do gato e o lixo das bandejas de lasanhas congeladas.

Mas nem todos se deram assim tão mal: He-Man ficou rico como estilista de lingerie e vive uma vida luxuosa no Castelo de Grayskull junto com o guerreiro Man-At-Arms.

Solitários espelhos de nós mesmos


O argumento talvez lembre um pouco a animação da Pixar Os Incríveis: como os super-heróis do passado terminaram no ostracismo e condenados a trabalhos burocráticos, barrigudos passando seus dias aborrecidos em mesas de escritórios. Mas, ainda assim, o Sr. Incrível tem uma linda família para se apegar como boia salva-vidas e conseguir dar a volta por cima.

Mas Where Are They Now? é mais ácido: não só todos são solitários ou com uma infeliz vida conjugal como as ex-celebridades das animações são espelhos de nós mesmos nos tempos atuais de subempregos, precarização do trabalho e neoliberalismo selvagem.



Destino irônico já que os heróis (sejam super ou apenas lutadores) sempre encarnaram os arquétipos da Grande Meta, do Líder Visionário, do Guerreiro. Isto é, de toda uma dimensão lúdica e espiritual que transcende o cotidiano de leitores e espectadores que lutam apenas pela sobrevivência cotidiana.

Ver o Esqueleto entediado num call-center, o engraçado Roger Rabbit deprimido tentando roubar o controle remoto da TV da gorda e compulsiva Jéssica e o He-Man como um self made man sem mais nenhum propósito pelo qual lutar significa que os heróis das animações foram derrotados por um inimigo mais ardiloso e poderoso do que vilão do outro mundo ou conspirações cósmicas: os insidiosos poderes corporativos precarizadores do trabalho e dos nossos sonhos.

De certa forma esta reviravolta no universo das HQs e animações já estava sendo ensaiada desde o anti-herói Pato Donald de Walt Disney: neurótico, humilhado pelos sobrinhos e pelo galã sortudo Gastão que sempre rouba sua namorada, a volúvel Margarida. Além de ser constantemente demitido com um ponta pé no traseiro pelo Tio Patinhas.

Como observava Theodor Adorno: “Pato Donald nos desenhos animados, tal como os indivíduos na realidade, recebem pontapés para que os espectadores se habituem aos que eles mesmos recebem”.

Até chegarmos ao gato Garfield, o perfeito espelho para rirmos de nós mesmos: preguiçoso, comilão, odeia segundas-feiras e individualista.

Mas Steve Cutts consegue ainda ser mais radical: o atual paradigma da precarização e desemprego é tão esmagador que até os próprios personagens dos desenhos animados perderam o emprego de serem espelhos de nós mesmos.

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