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sábado, dezembro 09, 2017

A batalha humana de lembrar e esquecer em "Marjorie Prime"



O que é a memória? Um poço profundo no qual resgatamos lembranças? Ou apenas lembramos da últimas vez que lembramos? Cópias de cópias de lembranças cada vez mais inexatas. E se uma Inteligência Artificial fosse programada com nossas memórias? Seria um poço de lembranças ou uma máquina que cobre a lacuna das nossas memórias apenas com simulacros? Esse é o tema de “Marjorie Prime (2017) – num futuro indeterminado foi introduzido um serviço que permite “ressuscitar” a pessoa amada de forma holográfica, “primes” programados pelas memórias do usuário e familiares. Mas essas próteses de memórias não serão nem humanizadas e muito menos pretenderão nos subjugar. Serão apenas testemunhas passivas da nossa desumanização. Filme sugerido pelo nosso infalível leitor Felipe Resende.

No cinema podemos encontrar quatro grupos de filmes de ficção científica: as space operas voltadas para os cinemas multiplex com muito dinheiro para gastar em robôs, espaçonaves, efeitos especiais e um protagonista bonitão ao estilo Tom Cruise; o chamado “alt-sci fi” que utiliza a iconografia e temas do gênero como pretexto para discutir as questões do “demasiado humano” – relacionamentos, insatisfações e grandes temas existenciais da humanidade.

Ainda temos o grupo que tenta conciliar essas duas vertentes, tentando tornar mais palatável questões metafísicas como Prometheus de Ridley Scott.

Mas nos últimos anos consolidou-se um quarto grupo cuja abordagem gira em torno do tema da Inteligência Artificial (IA) e neurociência como Ela, Ex-Machina ou Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Filmes com orçamentos mais comedidos nos quais efeitos especiais e máquinas que fazem o cânone do gênero são apenas sugeridos – a principal preocupação está na relação humana com suas próteses tecnológicas e o perigo das máquinas se tornarem o espelho da nossa própria desumanização.

Marjorie Prime (2017) de Michael Almereyda é mais um exemplar dessa quarta abordagem de uma narrativa sci fi focada no humano – protagonistas com relacionamentos ricos e complexos onde, aos poucos, a tecnologia IA torna-se mediadora.


Uma atmosfera Black Mirror


Assim como os humanos, a identidade de um IA é definida pela memória. Nas máquinas, a sua capacidade e velocidade como um HD vazio que é formatado e depois preenchido com informações acessáveis a qualquer momento.

Por isso nos últimos tempos toda a indústria dos softwares e hardware da computação faz uma constante analogia entre computadores como algo que emula e supera o cérebro humano em velocidade e capacidade de armazenamento.

Mas como Marjorie Prime demonstra de forma progressivamente sombria (lembrando em muitos aspectos as atmosferas criadas pela série Black Mirror), a memória humana é de natureza bem diferente daquela em funcionamento num software.  E os problemas que podem ser trazidos ao serem equiparadas.

Principalmente quando a IA converte-se em prótese ou mediação humana. Muitos filmes abordaram esse tema narrando um processo de inversão entre homem e máquinas (replicantes amando muito mais a vida do que os humanos em Blade Runner) ou quando as máquinas subjugam o homem (Matrix). Mas Marjorie Prime trás uma nova abordagem: menos épica ou distopica, e muito mais intimista, cotidiana e silenciosa: a máquina como testemunha da própria desumanização quando deixam nas mãos da IA a esperança da salvação humana.

O Filme


Logo a primeira cena nos mostra o porquê de Marjorie Prime ser uma adaptação de uma aclamada peça de teatro de Jordan Harrison de 2015: numa confortável sala de uma casa com vista para a praia de Long Island um mulher com mais de 80 anos e um elegante homem quarentão estão sentados nas poltronas travando uma longa conversa. Acompanhamos Marjorie (Lois Smith), uma mulher agradável e nostálgica conversando com Walter (Jon Hamm). Eles estão falando sobre lembranças, como quando tiveram dois cães chamado Toni. Walter ajuda-a a lembrar dos detalhes, principalmente porque é o marido dela.


O diálogo mostra como o relacionamento entre Walter e Marjorie é complexo e delicado até que sutilmente o fluxo da cena é quebrado por uma anomalia: Marjorie se levanta e seu pé atravessa os pés de Walter: ela está diante de uma versão holográfica do marido, já falecido.

Estamos num futuro próximo quando foi introduzido um serviço que permite “ressuscitar” a pessoa amada de forma holográfica. Os usuários podem recriá-la em qualquer idade que preferirem.

O programa de IA no qual se baseia o gadget exige uma grande quantidade de programação, envolvendo conversas diárias para preencher as memórias artificiais da vida que teve, reunidas a partir de relatos, anedotas e pequenas histórias.

Sua filha Tess (Geena Davis) vê o relacionamento da mãe com o holograma (um “prime”) do pai com séria suspeita: para ela tudo não passa de uma muleta psíquica na qual Marjorie fala apenas consigo mesma. Mas é estimulado pelo marido Jon (Tim Robbins) – a memória da sua sogra está se deteriorando com a velhice, e o holograma de Walter seria uma forma de completar as lacunas da compreensão do passado.

Jon toma para si o trabalho de ser o “programador” da IA que gera o holograma: através de longas conversas reservadas, alimenta-o com memórias para concretizar seu personagem virtual.   

O que é a memória?

Há uma pequena sequência que demonstra o ponto-chave que Almereyda quer discutir com o filme: o Walter holográfico lembra a Marjorie de quanto eles amavam um filme dos anos 1990 chamado O Casamento do Meu Melhor Amigo, mas Marjorie prefere lembrar que eles na verdade assistiram ao filme Casablanca.

Marjorie Prime nos mostra que não conseguimos colocar simplesmente pedras sobre certas lembranças, mas como são muitas vezes revisadas para tornar o passado mais suportável.


Por isso, a certa altura Jon faz uma citação do filósofo William James (pai da psicologia moderna) sobre a natureza das memórias: elas não são como alguma coisa que possa ser resgatada do fundo de um poço com um balde. Na verdade, cada lembrança é a recuperação de outro momento em que lembramos daquilo que queremos recordar. Em outros termos: você lembra da última vez que lembrou. Não lembramos da fonte, mas de um contexto cênico. Então a memória vai ficando cada vez mais inexata, como uma cópia da cópia. Nunca mais ficará clara e fresca, mas simulacros revividos. Assim como a IA que sustenta o holograma do marido falecido de Marjorie.

O paradoxo do “prime” Walter é que a memória “representacional” (por meio de bytes) da IA é alimentada por simulacros de memórias humanas. Por isso, o “prime” Walter e os outros diversos “primes” que vão surgindo, substituindo os parentes falecidos, vão conduzindo a narrativa a territórios ainda mais melancólicos.

Dois bordões fáticos são repetidos pela IA dos hologramas: “tenho todo o tempo do mundo”, quando o usuário propõe um início de conversa; e “lembrarei disso agora” quando o “programador” Jon alimenta a IA como novas recordações.

São bordões ao mesmo tempo irônicos e melancólicos: a tecnologia pretensamente terapêutica dos “primes” como próteses para evitar a perda da memória, inversamente tornam-se testemunhas tecnológicas imortais do nosso próprio processo de esquecimento.

Assim como os algoritmos das redes sociais criam bolhas virtuais através das nossos hábitos e preferências, da mesma forma a IA pode tornar-se um repositório das nossas próprias memórias simulacros. 

Por isso, Marjorie Prime trata-se da batalha humana de lembrar e esquecer. E como a tecnologia, e principalmente a IA, podem se tornar próteses para as quais entregamos a responsabilidade que deveria ser nossa: a de despertarmos do esquecimento.


Título: Marjorie Prime

Diretor: Michael Almereyda
Roteiro: Michael Almereyda baseado na peça teatral de Jordan Harrison
Elenco: Lois Smith, Jon Hamm, Geena Davis, Tim Robins
Produção: Passage Pictures, BB Film Productions
Distribuição: FilmRise
Ano: 2017
País: EUA

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