O que é a memória? Um poço
profundo no qual resgatamos lembranças? Ou apenas lembramos da últimas vez que
lembramos? Cópias de cópias de lembranças cada vez mais inexatas. E se uma
Inteligência Artificial fosse programada com nossas memórias? Seria um poço de
lembranças ou uma máquina que cobre a lacuna das nossas memórias apenas com
simulacros? Esse é o tema de “Marjorie Prime (2017) – num futuro indeterminado
foi introduzido um serviço que permite “ressuscitar” a pessoa amada de forma
holográfica, “primes” programados pelas memórias do usuário e familiares. Mas
essas próteses de memórias não serão nem humanizadas e muito menos pretenderão
nos subjugar. Serão apenas testemunhas passivas da nossa desumanização. Filme sugerido pelo nosso infalível leitor Felipe Resende.
No cinema podemos encontrar
quatro grupos de filmes de ficção científica: as space operas voltadas para os
cinemas multiplex com muito dinheiro para gastar em robôs, espaçonaves, efeitos
especiais e um protagonista bonitão ao estilo Tom Cruise; o chamado “alt-sci
fi” que utiliza a iconografia e temas do gênero como pretexto para discutir as
questões do “demasiado humano” – relacionamentos, insatisfações e grandes temas
existenciais da humanidade.
Ainda temos o grupo que tenta
conciliar essas duas vertentes, tentando tornar mais palatável questões metafísicas
como Prometheus de Ridley Scott.
Mas nos últimos anos
consolidou-se um quarto grupo cuja abordagem gira em torno do tema da
Inteligência Artificial (IA) e neurociência como Ela, Ex-Machina ou Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Filmes com orçamentos mais comedidos nos
quais efeitos especiais e máquinas que fazem o cânone do gênero são apenas
sugeridos – a principal preocupação está na relação humana com suas próteses tecnológicas
e o perigo das máquinas se tornarem o espelho da nossa própria desumanização.
Marjorie Prime (2017) de Michael Almereyda é mais um exemplar dessa quarta
abordagem de uma narrativa sci fi focada no humano – protagonistas com
relacionamentos ricos e complexos onde, aos poucos, a tecnologia IA torna-se mediadora.
Uma atmosfera Black Mirror
Assim como os humanos, a
identidade de um IA é definida pela memória. Nas máquinas, a sua capacidade e
velocidade como um HD vazio que é formatado e depois preenchido com informações
acessáveis a qualquer momento.
Por isso nos últimos tempos toda
a indústria dos softwares e hardware da computação faz uma constante analogia
entre computadores como algo que emula e supera o cérebro humano em velocidade
e capacidade de armazenamento.
Mas como Marjorie Prime demonstra de forma progressivamente sombria
(lembrando em muitos aspectos as atmosferas criadas pela série Black Mirror), a memória humana é de
natureza bem diferente daquela em funcionamento num software. E os problemas que podem ser trazidos ao serem
equiparadas.
Principalmente quando a IA
converte-se em prótese ou mediação humana. Muitos filmes abordaram esse tema
narrando um processo de inversão entre homem e máquinas (replicantes amando
muito mais a vida do que os humanos em Blade
Runner) ou quando as máquinas subjugam o homem (Matrix). Mas Marjorie Prime trás uma nova abordagem: menos épica ou
distopica, e muito mais intimista, cotidiana e silenciosa: a máquina como
testemunha da própria desumanização quando deixam nas mãos da IA a esperança da
salvação humana.
O Filme
Logo a primeira cena nos mostra o
porquê de Marjorie Prime ser uma
adaptação de uma aclamada peça de teatro de Jordan Harrison de 2015: numa
confortável sala de uma casa com vista para a praia de Long Island um mulher
com mais de 80 anos e um elegante homem quarentão estão sentados nas poltronas
travando uma longa conversa. Acompanhamos Marjorie (Lois Smith), uma mulher
agradável e nostálgica conversando com Walter (Jon Hamm). Eles estão falando
sobre lembranças, como quando tiveram dois cães chamado Toni. Walter ajuda-a a
lembrar dos detalhes, principalmente porque é o marido dela.
O diálogo mostra como o
relacionamento entre Walter e Marjorie é complexo e delicado até que sutilmente
o fluxo da cena é quebrado por uma anomalia: Marjorie se levanta e seu pé
atravessa os pés de Walter: ela está diante de uma versão holográfica do
marido, já falecido.
Estamos num futuro próximo quando
foi introduzido um serviço que permite “ressuscitar” a pessoa amada de forma
holográfica. Os usuários podem recriá-la em qualquer idade que preferirem.
O programa de IA no qual se
baseia o gadget exige uma grande quantidade de programação, envolvendo
conversas diárias para preencher as memórias artificiais da vida que teve,
reunidas a partir de relatos, anedotas e pequenas histórias.
Sua filha Tess (Geena Davis) vê o
relacionamento da mãe com o holograma (um “prime”) do pai com séria suspeita:
para ela tudo não passa de uma muleta psíquica na qual Marjorie fala apenas
consigo mesma. Mas é estimulado pelo marido Jon (Tim Robbins) – a memória da
sua sogra está se deteriorando com a velhice, e o holograma de Walter seria uma
forma de completar as lacunas da compreensão do passado.
Jon toma para si o trabalho de
ser o “programador” da IA que gera o holograma: através de longas conversas
reservadas, alimenta-o com memórias para concretizar seu personagem virtual.
O que é a
memória?
Há uma pequena sequência que
demonstra o ponto-chave que Almereyda quer discutir com o filme: o Walter
holográfico lembra a Marjorie de quanto eles amavam um filme dos anos 1990
chamado O Casamento do Meu Melhor Amigo,
mas Marjorie prefere lembrar que eles na verdade assistiram ao filme Casablanca.
Marjorie Prime nos mostra que não conseguimos colocar simplesmente pedras sobre
certas lembranças, mas como são muitas vezes revisadas para tornar o passado
mais suportável.
Por isso, a certa altura Jon faz
uma citação do filósofo William James (pai da psicologia moderna) sobre a
natureza das memórias: elas não são como alguma coisa que possa ser resgatada
do fundo de um poço com um balde. Na verdade, cada lembrança é a recuperação de
outro momento em que lembramos daquilo que queremos recordar. Em outros termos:
você lembra da última vez que lembrou. Não lembramos da fonte, mas de um
contexto cênico. Então a memória vai ficando cada vez mais inexata, como uma
cópia da cópia. Nunca mais ficará clara e fresca, mas simulacros revividos.
Assim como a IA que sustenta o holograma do marido falecido de Marjorie.
O paradoxo do “prime” Walter é
que a memória “representacional” (por meio de bytes) da IA é alimentada por
simulacros de memórias humanas. Por isso, o “prime” Walter e os outros diversos
“primes” que vão surgindo, substituindo os parentes falecidos, vão conduzindo a
narrativa a territórios ainda mais melancólicos.
Dois bordões fáticos são
repetidos pela IA dos hologramas: “tenho todo o tempo do mundo”, quando o
usuário propõe um início de conversa; e “lembrarei disso agora” quando o
“programador” Jon alimenta a IA como novas recordações.
São bordões ao mesmo tempo
irônicos e melancólicos: a tecnologia pretensamente terapêutica dos “primes”
como próteses para evitar a perda da memória, inversamente tornam-se
testemunhas tecnológicas imortais do nosso próprio processo de esquecimento.
Assim como os algoritmos das
redes sociais criam bolhas virtuais através das nossos hábitos e preferências,
da mesma forma a IA pode tornar-se um repositório das nossas próprias memórias
simulacros.
Por isso, Marjorie Prime trata-se da batalha humana de lembrar e esquecer. E
como a tecnologia, e principalmente a IA, podem se tornar próteses para as
quais entregamos a responsabilidade que deveria ser nossa: a de despertarmos do
esquecimento.
Título: Marjorie Prime |
Diretor:
Michael Almereyda
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Roteiro:
Michael Almereyda baseado na peça teatral de Jordan Harrison
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Elenco: Lois
Smith, Jon Hamm, Geena Davis, Tim Robins
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Produção:
Passage Pictures, BB Film Productions
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Distribuição:
FilmRise
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Ano: 2017
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País: EUA
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