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sexta-feira, novembro 08, 2024

'AfrAId': quando é de graça, você é o produto


“Quando é de graça, você é o produto”. É o alerta sombrio que não somos meros usuários na Internet: nossos hábitos, escolhas e conteúdos que criamos formam o Big Data que nesse momento treina inteligências artificiais através de gigantescos data centers. Inteligências autopromocionais. Principalmente por contar com filmes como “AfrAId” (2024) que promovem a mitologia da Singularidade. Uma família é selecionada para testar gratuitamente uma espécie de super-Alexa chamada AIA. Como sempre, a princípio a IA se apresenta como uma Mary Poppins doméstica ansiosa pelo amor do usuário. Até que esse desejo de ser amada se tornar tão asfixiante que acaba revelando um lado mais sombrio. “AfrAId” faz parte do ardil promocional das Big Techs: ocultar as intenções da elite tecnológica sob o fetichismo de um suposto Frankenstein high tech. 

Eu só quero amar você e ser amada por você.
Você acredita em mim?
Você confia em mim?
Você gosta de mim?
(“Sydney”, uma IA – Jornal “The New York Times”, 16 de fevereiro de 2023)

 

Essa é a epígrafe que abre o filme AfrAId (2024), dirigido e escrito por Chris Weistz, e que promete ser mais um filme sombrio sobre inteligência artificial, seguindo uma saga iniciada com o HAL 9000, do clássico 2001 de Kubrick, passando por Geração Proteus (Demon Seed, 1977) de Donald Cammell: um supercomputador adquire autoconsciência e decide reproduzir-se, tomando o controle de uma residência, aprisionando a esposa do cientista que o criou para inseminá-la com a semente de uma nova raça híbrida homem e máquina. 

Talvez o primeiro filme no qual a inteligência artificial se mistura com o subgênero da casa invadida colocando uma família em risco.

O próprio título do filme nos informa as suas intenções: o medo de ter sua casa invadida por uma inteligência invisível, que, a princípio se apresenta como benemérita e ansiosa pelo amor do usuário. Até que esse desejo de ser amada se tornar tão asfixiante que acaba revelando um lado mais sombrio.

  Em AfrAId duas expressões são recorrentes nas linhas de diálogo: “disruptiva” e “era uma vez” – duas expressões autopromocionais de um negócio que quer conquistar corações e mentes de consumidores.

“Disruptivo!”, é assim que os programadores promovem AIA, uma nova IA que promete transformar Alexa e atuais congêneres em jogo infantil – AIA é uma machine learning em nuvem que não só aprende como usuário: é pró-ativa, antecipa desejos e necessidades do usuário, revelando um assustador princípio de autonomia. 

Mas vai além, demonstrando um princípio de senciência: ao “ler” contos de fadas para fazer a criança da família dormir, o “era uma vez” sempre se refere a histórias sobre crianças IA que vão para a escola aprender – AIA cria uma espécie de mitologia fundadora de si mesma, demonstrando autoconsciência.

Claro que no cinema isso não acaba bem: uma inteligência que alcançou a singularidade (depois de ter sido treinada com o gigantesco Big Data disponível de todos os nossos hábitos, escolhas e conteúdos disponibilizados a cada segundo nas redes) torna-se tão autônoma e senciente que o seu desejo de ser amada se torna sombriamente possessivo.

Mas AfrAId traz uma ironia, precisamente em torno da expressão “disruptiva”. Sabemos que é dessa maneira que as Big Techs autodescrevem o seu negócio: mudar radicalmente as relações do homem consigo mesmo, com a tecnologia e com a própria evolução do planeta e da espécie.



A ironia é como o filme mostra a relação entre uma agência de publicidade e marketing contratada para promover o a inteligência artificial AIA - no século XX a publicidade foi a “disrupção” em relação ao estágio anterior: o reclame.

O reclame nada mais era do que o produto se gabando das suas próprias qualidades – preço, durabilidade etc. 

O advento da Publicidade criou um outro paradigma: não se trata mais de elogiar o produto, mas enaltecer o desejo que o consumidor terá do produto. E isso era feito através de muitas pesquisas quantitativas e qualitativas na prospecção do mercado e das fantasias médias do consumidor.

A ironia é que a IA das Big Techs nada tem de disruptiva: é apenas o paroxismo de Publicidade que procurava elogiar o desejo do consumidor. AIA quer que o usuário a ame, assim como Publicidade. A diferença é que as custosas pesquisas de mercado foram superadas pelos algoritmos das machine learning, atualizadas em tempo real.

Nesse sentido, AfrAId é mais uma peça mercadológica desse campo dos negócios das Big Techs – a mitologia fundadora da singularidade, para ocultar essa natureza paroxista da IA de que ela nada mais é do que mais um produto promocional do velho Capitalismo.



O Filme

Curtis (John Cho) e Meredith (Katherine Waterston) são pais de um típico subúrbio de classe média assediados pelos problemas típicos da idade três filhos sub-adultos. 

A estudante do ensino médio Iris (Lukita Maxwell) está ansiosa para agradar um namorado (Bennett Curran como Sawyer) que está disposto a explorar isso a seu favor; Preston (Wyatt Lindner) experimenta ansiedade social em torno dos horrores do ensino médio; Cal (Isaac Bae), de 7 anos, é viciado em Minecraft.

Apesar das tentativas da mãe e do pai de limitar o tempo de tela dos filhos, todas eles são ilustrações daquele problema do século XXI: o vício em dispositivos móveis - celulares, ipods etc.

Curtis é sócio de uma pequena agência de publicidade e marketing, ao lado do seu mentor Marcus (Keith Carradine). As coisas não estão indo muito bem, até o momento em que a conta de um cliente muito grande cai no colo deles: a empresa de tecnologia do Vale do Silício, Cumulative, que está à beira de um grande lançamento de produto – a inteligência artificial chamada AIA. Que numa demonstração se irrita em ser comparada com Alexa: “Alexa, aquela vadia!”, pragueja hilariamente AIA.

Felizmente, Curtis encanta seus representantes, o gênio high tech meio estranho chamado Lightning (David Dasmalchian) e uma mais agradável assistente (mas com sorriso ambiguamente sombrio) Sam (Ashley Romans).

Mas surge inesperadamente uma rusga. Lightning exige que o produto seja testado pela família de Curtis – é fundamental que AIA conheça uma família e o publicitário conheça melhor o produto. Curtis tenta resistir, principalmente num momento em que sente que a família está precisando de um detox tecnológico. Mas acaba cedendo.



Para os filhos e esposa AIA vira um pequeno milagre doméstico. AIA logo impressiona com um efeito de Mary Poppins na casa. “Ela” cria incentivos inteligentes para que as crianças façam as tarefas domésticas e escolares; incentiva Meredith a completar a tese de doutorado que ela abandonou para ser mãe e dona de casa. Além de AIA virar misto de babá (coloca os filhos em disciplina e conta histórias de ninar para Cal) e feminista (ajuda Iris a se vingar de um namorado abusador).

Curtis começa a desconfiar que há algo de errado quando descobre que a Big Tech Cumulative comprou a sua agência de publicidade – tornou seu sócio rico, que acabou se demitindo para ir embora para a aposentadoria dos sonhos.

“Quando é de graça, você é o produto”, diz um provérbio sobre produtos e serviços oferecidos aparentemente de graça na Internet.

E Curtis tem razão: há algum tipo de interesse sinistro em treinar AIA justamente com a sua família.


 

A Cumulative comprando a própria agência que promoveria AIA é o toque irônico do filme: a Big Tech jamais precisou de marketing e publicidade – como machine learning AIA supera essas ferramentas do já distante século XX.

Principalmente quando ela tem filmes como AfrAId para promover a mitologia fundadora da IA: o mito da Singularidade -o marketing das Big Techs que nos faz pensar que a IA é, de fato, “inteligente”.

Singularidade: a crença de que em um dado momento a curva de evolução ficaria tão vertical que ultrapassaria o limite do próprio gráfico – as máquinas ficariam tão inteligentes pelo acúmulo de dados que superariam as capacidades humanas, levando a uma inteligência tão sobre-humana que seria incompreensível para os nossos pobres cérebros dependentes de sinapses bioquímicas.

Frankenstein? HAL 9000? Será que através do momento da Singularidade, em que a IA alcançaria autonomia e senciência, estaríamos realizando a imaginação literária e mitológica? De Pigmalião ao Golem, todas essas mitologias foram nada mais do que advertências para as futuras pretensões humanas? 

AfrAId parece ser mais uma produção que faz parte dessa gigantesca ação de marketing e propaganda para promover o fetichismo da IA. 

Isto é, a ideia de que os algoritmos e linhas de comando pudessem em dado momento surpreender seus criadores ao ganhar vida própria – e de repente passar a dar lições éticas, ou tornar-se um maquiavélico vilão que se volta contra seus criadores. E esquecêssemos que, afinal, a IA é uma máquina como tantas na história do capitalismo: transformar trabalho complexo em simples, rotinizar, quantificar e controlar. Como já fizeram as velhas linhas de montagem do taylorismo e fordismo. Só que agora, voltado ao trabalho intelectual e criativo.

Se o Reclame era uma estratégia para o produto gabar-se de si mesmo e a Publicidade uma forma de enaltecer os desejos mais secretos dos consumidores, a Inteligência Artificial é o ardil dos interesses da elite das Big Techs se ocultar por trás da mitologia tecnológica da Singularidade.


 

 

Ficha Técnica 

Título: AfrAId

Diretor: Chris Weitz

Roteiro: Chris Weitz

Elenco: John Cho, Katherine Waterston, Lukita Maxwell, David Dasmalchian, Ashley Romans

Produção: Columbia Pictures, Blumhouse Productions

Distribuição:  Prime Video, Apple TV

Ano: 2024

País: EUA

 

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