O Coringa é o arquétipo mais forte da cultura pop e que paira sobre o tempo, desde quando surgiu nas HQs em 1940. Ao mesmo tempo, a narrativa sobre o Coringa varia de acordo com o espírito do tempo: do Palhaço do Crime psicodélico dos anos 1960 à versão cerebral e adulta de Heath Ledger. “Coringa” (2019) de Todd Phillips espelhou a Era Trump e a onda de ódio e ressentimento do populismo de direita através da Deep Web, fóruns e chans online. Por sua vez, em “Coringa: Delírio a Dois” (2024) Todd Phillips está agora na era de Biden, Kamala e Novos Democratas. Nessa continuação a persona do Coringa deve ser desconstruído em números musicais comandados por Lady Gaga. Aqui, Arthur Fleck é uma colagem de expectativas alheias: um doente mental? Um impostor? Apenas um iconoclasta? Ou um carismático líder antissistema? Quem está por trás da maquiagem de Coringa? O resultado é o atual espírito do tempo.
Cada Coringa no cinema e audiovisual refletiu o espírito da sua época.
Na década de 1960 o Coringa de Cesar Romero, na série televisiva camp Batman, era um bufão engraçado e sintonizado com a psicodelia da era hippie daquele momento.
O Coringa de Jack Nicholson aspirava ser um vanguardista que transformava o crime em arte – releitura de Tim Burton associada à estética dark e cínica de seus filmes.
O Coringa de Heath Ledger em Batman, O Cavaleiro das Trevas, era cerebral e adulto: um agente do caos que queria provar que no final as pessoas são terríveis e cruéis e escondem tudo isso com hipocrisia. Ao contrário do Palhaço do Crime interpretado por Jared Leto, em O Esquadrão Suicida, sintonizado com a cultura jovem contemporânea, mais parecido com um MC ostentação.
Diferente de todos, o Coringa de 2019, interpretado por Joaquim Phoenix e dirigido por Todd Phillips, era um estudo triste, lento e caótico das origens do icônico vilão das HQs. Alguém que não era visível, anônimo numa cidade em crise econômica e imersa em sacos de lixo causada por uma greve dos serviços públicos. O filme Coringa (Joker, 2019) foi mais realista, sintonizado com o espírito do tempo da era Trump e da ascensão global da extrema direita.
Apesar de vintage (emulava o realismo dos anos 1970 como Taxi Driver ou O Rei da Comédia de Scorsese, filmes sobre anti-heróis em sociedades duras e violentas), Joker refletia a onda de ódio e ressentimento articulados de forma bem-sucedida pelo populismo de direita internacional através da Deep Web, fóruns e chans online – um zé-ninguém que virava um anti-herói que ganhava as manchetes na TV, desencadeando um gigantesco efeito de imitação: inspira centenas de pessoas a saírem às ruas com máscaras de palhaço para se levantar contra os ricos.
Agora os tempos são outros. Joe Biden e os chamados Novos Democratas estão no poder, com um complexo xadrez geopolítico global com múltiplas frentes de enfrentamento: Rússia e a guerra na Ucrânia, Irã e a “terraplanagem” de Israel em Gaza e Líbano, e a petulância da China contra a hegemonia do dólar.
Uma continuação da saga do Palhaço do Crime pela visão de Todd Philips não poderia mais ter a pegada alt-right de 2019, no auge da Era Trump e populismo de direita. Ícone do ressentimento extremista, o Coringa deve dessa vez ser desconstruído. Mas sem fazê-lo desaparecer – deve ter a deixa para uma próxima sequência, aberta e polissêmica. Porque ninguém sabe o que o futuro no reserva.
Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie a Deux, 2024) procura se afastar da tempestade da controvérsia de 2019 – a de que o filme potencialmente instigaria a violência e o pânico moral. É uma sequência punitiva para o Coringa, depois do último e chocante episódio final de 2019, quando Joaquim Phoenix descarrega sua arma, ao vivo na TV, nos miolos do apresentador de um talk show, Murray Franklin (Robert De Niro) – alusão direta a O Rei da Comédia.
O filme acompanha Arthur Fleck numa penitenciária, no dia a dia da rotina dos presidiários, à espera do julgamento no tribunal do júri pelos seus crimes.
Mas ao contrário do filme anterior, Arthur é um vazio de significado no qual os outros projetam o que querem ver nele. Ele pode ser o resultado de uma personalidade dividida gerada por trauma familiares, de acordo com sua advogada dedicada, Maryanne Stewart (Catherine Keener). Ou apenas alguém que finge uma doença mental, de acordo com o promotor Harvey Dent (Harry Lawtey). Ou ainda um troll carismático que manda o mundo tomar no c*, de acordo com seus fãs com máscara de palhaço que assaltam a ruas, imitando-o.
Entre eles, Harley “Lee” Quinn (Lady Gaga), que diz para Arthur que quando o viu assassinar Murray Franklin na TV, “pela primeira vez na minha vida eu não me sentia mais tão sozinha”.
Mas quem é afinal Arthur Fleck? Quem está por trás da pesada maquiagem do iconoclasta Coringa? É o que Todd Phillip tentará mostrar através de uma desconstrução metalinguística num tour de force de cenas musicais. Estreladas, óbvio, por Lady Gaga. Que até fará o Coringa cantar!
O Filme
Por que o segundo filme do Coringa é um musical?
Devemos reconhecer que a justificativa de Todd Phillips indiscutivelmente sólida. No filme, Arthur Fleck (que aqui faz uma distinção severa entre si mesmo como um cidadão comum e a persona "Coringa"), é um indivíduo profundamente perturbado cuja imaginação distorcida pode muito bem imaginar sua existência como estando dentro de um show de algum tipo.
Então, esse argumento do roteiro permite ao diretor desconstruir a persona do Coringa sem muito respeito à lógica e verossimilhança do realismo, como no primeiro filme.
O que permite à narrativa deslizar entre a imaginação, fantasia e realidade sem problemas. Afinal, essa é a natureza dos musicais, desde a era dourada de Hollywood de Fred Astaire e Gene Kelly.
Como continuamos lembrando ao leitor, a história ocorre no rescaldo quase imediato do chocante assassinato que encerrou o primeiro Coringa.
Arthur/Joker está em cativeiro em uma daquelas instituições psiquiátricas escuras e satânicas de Arkham. Em uma de suas caminhadas após receber um visitante, ele é flertado por uma jovem cantando em um coral numa sala aberta. Essa é Harley “Lee” Quinn.
Logo os dois conspirarão para se ver o máximo possível antes do julgamento de Arthur. Quando Lee misteriosamente deixa de ser prisioneira e ganha o status de cidadã comum para participar como espectadora do julgamento no tribunal.
Através do sensacionalismo midiático, Arthur tornou-se um mito que representa o ressentimento dos miseráveis em uma Gotham City violenta, desigual e hipócrita. E Lee quer ser a fã número um: ela na verdade é uma rica estudante de psiquiatria do Upper East Side de Gotham. Conseguiu inventar a história de um crime para poder se infiltrar na prisão psiquiátrica e se aproximar de Arthur.
Definitivamente, ela quer arrastá-lo para o seu próprio mundo de fantasias, através de um musical jukebox, com seleções de The Great American Songbook (“Bewitched, Bothered, and Bewildered”) e pop internacional dos anos 60 (“To Love Somebody”, originado pelos Bee Gees e ainda mais popularizado por Janis Joplin) e muito mais.
Quem é o Coringa? – Alerta de Spoilers à frente
Tal como no primeiro filme, mais uma vez Joaquin Phoenix teve que emagrecer para representar a dor psíquica do personagem no próprio corpo esquelético, angular e retorcido do personagem.
Tudo isso pesa sobre os ombros de Arthur enquanto ele luta com a pessoa que ele quer ser. Quem ele é? Um homem que serve para cumprir as expectativas dos outros sobre ele como um revolucionário contracultural e antissistema (como Lee e membros da revolta o veem, o líder Coringa em uma Gotham decadente), ou um sobrevivente de abuso que finalmente faz as pazes com seus demônios?
Ele escolhe o último, confessando a um júri que não há “Joker” e que ele foi o tempo todo simplesmente Arthur Fleck, um zé-ninguém esquecido em um apartamento escuro e úmido de Gotham.
É claro que Arthur tenta retomar a própria vida, e não mais ser uma espécie de colagem de expectativas alheias. E também é claro que ninguém fica satisfeito com isso. Principalmente Lee (que cantou o filme inteiro no esforço de fazer emergir definitivamente a persona “Coringa” em Arthur).
E muito menos os prisioneiros da penitenciária que o viam como um herói icônico. E um deles vai reagir violentamente.
De volta ao hospital, depois que a polícia recaptura Arthur após uma (literalmente) bombástica fuga do tribunal, outro preso se aproxima dele para contar uma piada com estrutura semelhante àquela ele contou a Murray Franklin antes de atirar nele no primeiro filme. A piada, no entanto, termina com facadas no estômago, e Arthur sangra até a morte.
Essa é a desconstrução final e radical de Todd Phillips: na verdade não acompanhamos a trajetória do Coringa da DC Comics. Mas a triste trajetória de um zé-ninguém que inspirou centenas de ressentidos cheios de ódio.
Entre eles, o futuro e verdadeiro Coringa, o vingativo assassino de Arthur na prisão.
Coringa: Delírio a Dois termina de forma ambígua: numa era pós-Trump, com os Novos Democratas no controle da geopolítica, o Coringa deve ser, por assim dizer, desidratado – Arthur deve ser desconstruído até não restar nada, a não ser ele mesmo, entregue ao demasiado humano.
Sem mais a potencialidade antissistema que eletrizou a extrema direita nos tempos de Trump.
Mas... nunca se sabe. O filme dá uma deixa final para uma possível continuação: a saga do assassino de Arthur, o verdadeiro Coringa.
Afinal, a disputa eleitoral Kamala vs. Trump é incerta. E nunca se sabe quando o Coringa voltará a ser necessário na cena pop.
Ficha Técnica |
Título: Coringa: Delírio a Dois |
Diretor: Todd Phillips |
Roteiro: Scott Silver, Todd Phillips |
Elenco: Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Brendan Gleeson, Catherine Keener |
Produção: DC Entertainement, Warner Bros |
Distribuição: Warner Bros Pictures |
Ano: 2024 |
País: EUA |