Pages

sexta-feira, setembro 06, 2024

'Tipos de Gentileza': as relações de dominação atuais estão muito além da sociedade disciplinar


Depois dos filmes narratologicamente “normais” como “The Favorite” e “Poor Things”, o diretor grego Yorgos Lanthimos retorna ao modo provocativo com o filme “Tipo de Gentileza” (Kinds of Kindness, 2024) – a retomada do tema que marca sua filmografia: o fascínio pela dinâmica brutal de poder que governa as relações humanas. Os três episódios que compõem as quase três horas de metragem ecoam teses como a da “servidão voluntária” de Éttiene de La Boétie ou do “medo à liberdade” de Erich Fromm. O filme é sobre dominação e controle, mas numa perspectiva que passa longe da “sociedade disciplinar” de Foulcault. É sobre a atual sociedade da positividade, do desempenho. E, como no informa o título, marcada por “gentilezas” que permeiam as relações de submissão – todas são dominadas por uma atmosfera de educação, delicadeza, onde o controlador vivamente demonstra empatia e interesse no bem-estar do submisso. Até a atmosfera carregada entrar em combustão e explodir. 

Alguns deles querem usar você.
Alguns deles querem ser usados por você.
Alguns deles querem abusar de você.
Alguns deles querem ser abusados.
Bem, quem sou eu para discordar?
Sweet Dreams (Are Made of This), Eurythmics

 

Depois de filmes comparativamente “normais” como The Favorite e Poor Things, o diretor grego Yorgos Lanthimos volta ao modo provocador de filmes anteriores como Dentes Caninos, O Sacrifício do Cervo Sagrado e The Lobster.

Lanthimos reúne-se com o co-escritor desses filmes, Efthimis Filippou, para um estudo sobre as muitas facetas do controle. 

Em Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness, 2024), Lanthimos retoma o tema que vincula toda a sua filmografia: o fascínio pela dinâmica brutal de poder que governa as relações humanas como, por exemplo, pai e filho, marido e esposa, governante e sujeito, mulher e homem etc. O filme encadeia três segmentos que figura por uma dinâmica em particular — o desejo de dominar, ou de ser dominado, ou possivelmente ambos.

Lanthimos parece querer nos mostrar que dominação e controle aparecem em toda as partes da vida contemporânea. Um pouco porque a proliferação de escolhas disponíveis para a maioria de nós pela sociedade de consumo — sobre o que vamos vestir, o que vamos fazer, o que vamos comer, quem vamos ser — pode nos jogar no caos de dúvidas e insegurança. Isso explica, em parte, a abundância de cultos sobre os quais sempre estamos assistindo em documentários nas plataformas de streaming. 

O medo da liberdade ilimitada às vezes se manifesta no desejo de encontrar alguém que possa nos dizer o que fazer. Tipos de Gentileza é uma crítica em humor sombrio sobre uma determinada “cultura de bem-estar”: o crescente complexo industrial da visão coach da vida. 

O mais importante no filme é como a dominação e controle se articulam com “diferentes tipos de gentilezas”.

A reflexão de Lanthimos e Filippou não é mais sobre a clássica sociedade disciplinar de Michel Foulcault feita por instituições totais como hospitais, fábricas, quartéis e presídios. Hoje temos uma outra sociedade na qual as instituições totais foram substituídas por modernos conjuntos corporativos, academias de fitness, shopping centers e toda sorte de clínicas, fundações e serviços que prometem saúde, bem-estar e prosperidade.

A sociedade disciplinar do passado era a da negatividade, cerceamento, repressão e obediência. No século XXI estamos na sociedade do excesso de positividade pela pressão de desempenho. Uma pressão que surge mais da cobrança de obediência pelo Estado, polícia ou pela gerência de uma fábrica. Mas pela pressão de desempenho feita por si mesmo, pelo próprio indivíduo – a cobrança por responsabilidade e iniciativa.



Isso não significa que as relações de dominação e controle desapareceram. Ignifica que mudaram a natureza e o estilo: agora o domínio é cercado por eufemismos positivos, discursos de acolhimento, retórica do bem-estar e pela atmosfera de empatia. Não por acaso a linguagem de seitas, cultos, coaching e técnicas motivacionais corporativas acabam se igualando.

Se no passado o homem lutava contra sistemas totalitários e repressivos, hoje o homem luta contra si mesmo – dessa maneira, inseguro e indeciso, submete-se às novas relações de dominação, mais acolhedoras e transbordando positividade e empatia.

É em torno disso que giram os três episódios de Tipos de Gentileza.

O Filme

Tipos de Gentileza dá uma sensação de que na verdade, dentro das quase três horas de duração, Lanthimos e Filippou reuniram três projetos que não conseguiram desenvolver como longa-metragem. Projetos que dão continuidade ao tom provocativo dos primeiros filmes de Lanthimos, como se assistíssemos a um laboratório comportamental cheio de gás em queima lenta, à espera da explosão de violência e crueldade.

Todos os três episódios compartilham um elenco que inclui alguns atores prediletos de Lanthimos que retornam, como Margaret Qualley, Joe Alwyn, Willem Dafoe e Emma Stone, que ganhou seu segundo Oscar no início deste ano por Poor Things. Há também recém-chegados: Hong Chau, Mamoudou Athie e especialmente Jesse Plemons, que ganhou o prêmio de melhor ator em Cannes por sua atuação.



O primeiro de três filmes dentro de um filme é “A Morte de R.M.F.” O protagonista se chame Robert Fletcher (Jesse Plemons), o lacaio corporativo que segue todas as ordens de seu chefe, Raymond (Willem Dafoe), levando a extremos teatrais. Raymond diz a Robert o que fazer em quase todos os minutos de seu dia, incluindo quando comer e quando fazer amor com sua esposa Sarah (Hong Chau). 

Preocupando com a produtividade do trabalho, ele força Robert a drogar secretamente sua esposa para induzir a abortos para que permaneçam sem filhos. No entanto, a última ordem de Raymond - para assassinar o homem com as iniciais R.M.F. - finalmente empurra nosso protagonista para o limite.

Os problemas começam para Robert quando ele recua no assassinato em primeiro grau, mesmo que Raymond insista que a vítima tenha dado o consentimento, como se desejasse se matar. Quando Robert recusa a missão, sua vida desmorona.

Começa a se preocupar que será substituído na máquina corporativa e tenta desesperadamente recuperar seu papel como uma mais uma engrenagem. O personagem de Plemons transmite uma espécie de desespero que vem de adultos que nunca tiveram realmente algum controle sobre suas vidas e como a mudança drástica pode desabar interiormente uma pessoa. 

O tema é o controle e o que acontece quando o perdemos. Não é por acaso que Robert e Sarah sejam presenteados com uma das raquetes de tênis quebradas de John McEnroe e o capacete danificado de Ayrton Senna: relíquias de momentos em que o controle foi perdido: o do carro e o psicológico em uma partida de tênis.



O ponto alto aqui é a relação simbiótica entre o chefe e o lacaio corporativo: a corporação sempre preocupada com o bem-estar do “colaborador” e o dominado que por se sentir amado quer receber a constante aprovação assim como esperamos os likes nas redes sociais.

E o pior: diante da súbita liberdade após a demissão, Fletcher entra em pânico – como reconstruir o roteiro de sua própria vida?

O tema é expandido (e indiscutivelmente um pouco confuso) no capítulo central, “R.M.F Está Voando”. Plemons retorna em um registro diferente como Daniel, um homem que pela primeira vez parece estar se afogando em tristeza após o desaparecimento de sua esposa (Emma Stone), presumivelmente perdido no mar após um acidente de helicóptero. Sua obsessão em encontrá-la prejudica seu trabalho como policial e suas amizades. 

No entanto, ele não parece feliz quando ela retorna de repente, convencendo-se rapidamente de que essa mulher em sua porta não é realmente a esposa desaparecida. Daniel continua pressionando-a a provar sua identidade e lealdade de formas cada vez mais extremas e cruéis. O episódio parece o menos tematicamente rico e narrativamente complexo dos três filmes.

Finalmente, o mais rico episódio: "R.M.F. Come um Sanduíche". O episódio que une todos os agentes da destruição da autonomia das estórias anteriores - o chefe controlador do primeiro, o impostor do segundo e agora um culto que está tentando reverter a morte e encontrar a imortalidade num absurdo culto à purificação. 



Emily (Stone) e Andrew (Plemons) trabalham para um culto milionário administrado pelo misterioso Omi (Dafoe) e sua parceira Aka (Chau), tentando encontrar uma mulher desconhecida que possa ressuscitar os mortos. Quando Emily se depara com uma pessoa que ela viu em seus sonhos chamada Rebecca (Margaret Qualley), ela fica obcecada em provar que é ela. Mesmo assim, ela é atraída de volta para a casa que deixou para trás, incluindo uma filha e um marido terrivelmente abusivo (Joe Alwyn). 

Novamente, os dois temas recorrentes do filme: de um lado os agentes de controle (a família, o marido abusivo e o guru manipulador); e do outro o manipulado que e vê de repente expulso da relação de controle, mas tenta retornar desesperadamente pelo medo da autonomia - retornar ao culto e reconquistar o amor do guru. 

Este episódio é um playground para Lanthimos exercer toda a sua estranheza e provocações.

Tipos de Gentileza ecoa as teses da “servidão voluntária” de Étienne de La Boétie (a estrutura de dominação não é imposta pela força, mas é aceita pela colaboração a partir do momento em que o tirano joga migalhas para os vencidos) e a de Erich Fromm sobre o “medo à liberdade” (como liberdade e submissão estão entrelaçados pela angústia de um descentramento do indivíduo que a contemporaneidade apenas agrava).

Mas o que chama a atenção no filme (e que o próprio título do filme no informa) é são as “gentilezas” que permeiam as relações de submissão – todas são dominadas por uma atmosfera de educação, delicadeza, onde o controlador vivamente demonstra empatia e interesse no bem-estar do submisso. 

Claro, dentro de uma narrativa em queima lenta até a atmosfera carregada entrar em combustão e explodir. 


  


Ficha Técnica

 

Título: Tipos de Gentileza

Diretor:  Yorgos Lanthimos

Roteiro: Yorgos Lanthimos, Efthimis Filippou

Elenco: Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe

Produção: Element Pictures, Searchlight Pictures

Distribuição: 20th Century Fox

Ano: 2024

País: EUA

 

Postagens Relacionadas

 

Amor, narcisismo e solidão no filme "The Lobster"

 

 
O estranho senso de justiça no filme "O Sacrifício do Cervo Sagrado"

 

 

Um manifesto ciborgue e a reconfiguração do feminismo em 'Pobres Criaturas'

 

 

 

A gnose selvagem no filme "Dente Canino"