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sexta-feira, junho 21, 2024

Pregação evangélica, coaching e crime financeiro em 'O Vendedor de Ilusões: O Caso Geração Zoe'


Se o demônio existe, ele está na intersecção desses mundos: a pregação evangélica combinada com técnicas de vendas e coaching “ontológico”. O argentino Maximiliano Cositorto conseguiu isso e criou um dos maiores golpes recentes de “Esquema Ponzi”: a plataforma financeira Geração Zoe, uma espécie de Matrix financeira em que os trader lidavam com número irreais, gerando lucro imaginários exorbitantes. O documentário argentino Netflix “O Vendedor de Ilusões: O  Caso Geração Zoe” (2024) narra a ascensão e queda de um negócio que prometia ganhos estratosféricos e transformação pessoal coaching. Hoje Cositorto está preso e se diz vítima do sistema que o teria sabotado. Seguindo a pista deixada por Durkheim sobre a função social dos crimes, podemos compreender porque entidades reguladoras parecem fazer vistas grossas ao surgimento desses esquemas. Por contraste, ajuda a ocultar que na verdade toda a financeirização do capitalismo já é um gigantesco Esquema Ponzi.

Se a sociedade funciona de forma semelhante ao corpo humano, com seus vários órgãos e cada um cumprindo a sua função em relação ao todo, então a Sociologia deveria ter a mesma preocupação da Medicina: diagnosticar patologias e procurar remédios para a cura.

Assim pensava aquele que é considerado o pai da Sociologia, o francês Emile Durkheim (1858-1917). E entre todo o remédios que o estudioso francês procurava, o mais paradoxal era o crime. Para ele, o crime cumpria uma função no corpo social – ele provocaria e estimularia uma reação no corpo social: estimularia o sentimento coletivo que sustentaria a conformidade às normas.

O que então Durkheim pensaria dos crimes de Leonardo Cositorto: pastor das finanças, encantador de cobras do mercado financeiro, coach “ontológico” (seja o diabo que isso significa), o homem que enganou centenas de milhares de incautos em diferentes lugares do mundo com apenas três letras: Zoe.  

O documentário Netflix O Vendedor de Ilusões: O Caso da Geração Zoe (2024)detalha minuciosamente e cronologicamente a criação, ascensão e queda de uma ambiciosa plataforma financeira que explodiu na cara tanto dos seus criadores quanto para seus clientes, pessoas comuns que sonharam com a tranformação das suas vidas com o lucro rápido e acordaram no centro de um escândalo financeiro de proporções internacionais.

Certamente Durkheim veria um fato social que reforçaria a ideia de que “o crime não compensa” – reforçando a conformidade das pessoas com o sistema financeiro legal. Da mesma forma como, no campo do jornalismo, a fake news, por oposição, reforçaria o “jornalismo profisional”, supostamente imune às mentiras porque é “profissional”.

Em abril de 2022, Leonardo Cositorto, criador e cérebro da Geração Zoe, foi preso na República Dominicana pela Interpol. O CEO da organização estava fugitivo da Justiça desde meados de fevereiro. Hoje espera o julgamento em um presídio em Córdoba, Argentina. 

Assim, fechou um capítulo que tinha começado apenas cinco anos antes, quando um novo esquema de negócios prometia dividendos exorbitantes em dólares, a partir da contribuição de uma determinada soma de dinheiro de incautos “investidores”.



O documentário descreve um perfil de um homem cujo pai era um editor que faliu e o colocou para vender livros de porta em porta, tornando-se um hábil vendedor e profundo conhecedor empírico da natureza humana. Daí para virar um pastor evangélico e, a evolução natural nesse meio, tornar-se um “coach ontológico”, encontrou a convergência natural: o encontro da fé religiosa com a fé do negócio dos investimento financeiros. 

Com a pitada de algo que vai além da fé: a crença mágica ou fetichista de que a energia do pensamento de um líder somado com a ambição do cliente gerariam riquezas extraordinárias. Apenas com a força da atitude certa, positiva – daí o termo “ontológico”: se é a linguagem e o penamento que no definem, então a realidade erá aquilo que nós quisermos que seja.

O escândalo e as manchetes em letra garrafais dos jornais argentinos levaram ao espanto: como tanta gente foi enganada por uma empresa irregular que nem estava registrada na Comisão de Valores argentina? Como acreditaram em lucro tão fácil?

Durkheim tem razão em uma coisa: o sensacionalismo midiático criminal legitima o próprio campo do mercado financeiro, pela operação semiótica de contraste – é como se alertasse: “procure sempre profissionais responsáveis”. Assim como aqueles alertas em comerciai de bebidas alcoólica: “beba com moderação” – o alcoólatra é o crime que legitima o mercado etílico, sempre por contraste.

Mas Durkheim acredita que a verdade é o corpo social, o todo. Mas e se o sistema financeiro legal for da mesma natureza de golpes de pequenos escroques como Cositorto? A única diferença seria que o mercado financeiro global é grande demais para quebrar... ou ser deixado para quebrar. 

Porque sempre pode contar com o socorro das injeções de liquidez públicas. Socializando perdas e privatizando o ganhos.



O Documentário

“São coisas que só poderiam acontecer na Argentina ou num país sul-americano qualquer”, poderia alguém dizer. Mas o que O Vendedor de Ilusões nos descreve é o notório golpe do tipo piramidal, conhecido como “Esquema de Ponzi”, executado por um grupo de espertalhões. Um tipo de golpe que conta na sua história com gente da credibilidade filantrópica de Mernie Madoff que, nos EUA, elevou ao estado da arte o esquema criado por Charles Ponzi, em Chicago, na década de 1920 – por décadas Madoff enganou milhares de clientes em Wall Street, provocando prejuízos de bilhões de dólares.

Tudo começou paradoxalmente na cidade próspera (o que contradiz a ideia de que onde há golpe, há desespero) de Villa Maria, Córdoba, que caiu nas influências da Geração Zoe de Cositorto. Pessoas com empregos regulares, mas que viram no evangelismo financeiro a oportunidade de mudar de vida e a si próprios – fascinados pela ostentação de viagens, luxo e riqueza na redes sociais da comunidade Zoe.

A Geração Zoe tinha uma pregação evangelista cruzada com técnicas de venda e coaching ontológico. Se o demônio existe, ele está no encontro desses mundos. Cositorto descobriu que podia combiná-los, e ser uma espécie de telepregador ao estilo americano, longe da ética católica que enobrece os pobres e dos pastores suburbanos com alto-falantes e cadeiras de plástico brancas. 

A religião não foi o único catalisador: também utilizavam o feminismo como discurso de venda.

Cositorto logo percebeu que não alcançaria a pirâmide ideal, e viu nas criptomoedas o próximo público-alvo. Acima de tudo, aqueles que não eram ainda “criptobros”, mas ansiavam por ser. Novamente, a questão aspiracional como eixo do tema. Ele ofereceu-lhes uma moeda criptográfica - a Zoe Cash - e até terrenos virtuais em um país virtual.  Em uma jogada de ficção que desafia a teoria econômica, eles anunciaram a compra de supostas minas de ouro (não se pode comprar minas de ouro na Argentina), para gerar o lastro da criptomoeda.



O mais impressionante: Cositorto e seu vice, Maximiliano Batista, contratavam traders profissionais para trabalharem baicamente numa plataforma que criou uma espécie de Matrix financeira: as telas simplesmente informavam uma realidade ficcional, com ganho inexistentes.

Zoe oferecia a todos a oportunidade de entrar em um mundo de influenciadores que otentavam em posts e vídeos do Instagram: como ganhar quinhentos por cento em 24 horas com investimentos em dólares, enquanto dirigem carros alemães de luxo e se autoproclamavam traders ou closers. 

A derrocada começou com os chamados “Robos de Natal”: Zoe ofereceu às suas vítimas retornos de 150% em dólar com Bots que operavam com operações de alta frequência... coisa de ficção científica. Na verdade, era o desepero de Cositorto no final de 2021:  a pirâmide começava a ruir e precisava de uma nova campanha mais agressiva para conseguir dinheiro novo.

Quando os investidores deram pé da situação já era tarde: as unidades Geração Zoe estavam fechadas com centenas de investidores deseperados esmurrando as portas e Leonardo Cositorto já estava escondido na República Dominicana, procurado pela Interpol, enquanto postava vídeos nas redes alertando seus seguidores que estava sendo sabotado pelo sistema.

Será? 



Desde que o dinheiro deixou de ser um simples equivalente geral para compra de mercadoria e, ele próprio, transformou-se em mercadoria, sua liquidez tornou-se objeto de um fascínio religioso, mágico, fetichista.

No cinema ganha uma aura de glamour. Na telona a liquidez está quase sempre associada a protagonistas inteligentes e com “sex appeal”: Gordon Gekko no filme Wall Street, o yuppie que se transforma em gênio dos mercados financeiros através das “smart drugs” em Sem Limites (Limitless, 2011), ou ainda a sexy personagem interpretada por Annette Bening no filme Os Imorais (The Griffers, 1990) que trabalhava num escritório de corretagens onde ajudava a aplicar golpes nos mercados financeiros.

Desde que a financeirização ocupou o lugar da economia real como drive social, o mundo do investimentos basicamente e dividiu entre acionistas e devedores. Investimos em ações, fundos etc. Emprestamos liquidez para empresas cuja única preocupação é render dividendos a curto prazo. O que torna a economia real frágil, voltada apenas a resultados rápidos, sem planejar investimentos de longo prazo.

Eventualmente, nesse esquema de liquefação econômica bolhas financeiras explodirão – papéis terão que ser liquidados, lucros realizados e... o crash financeiro inicia por crise de liquidez. Alguma coisa parecida com a Geração Zoe de Cositorto.

A diferença é que o Estado, Banco Central, Ministério da Fazenda ou Comissão de Valores não estão do lado dele. Ao contrário dos mercados globais, grandes demais para quebrarem e arrastarem a sociedade inteira junta.

Wall Street ou Zona Euro serão socorridos pela injeção de liquidez pública com a justifica esotérica do perigo da “crise sistêmica”. Enquanto pirâmides Ponzi de gente como Cositorto e Maximiliano vão para a cadeia.

Ao assistir O Vendedor de Ilusões chegamos a uma indagação: como uma empresa que, pelo menos não inicialmente, não tinha registro na Comisão de Valores conseguiu estender um negócio criminoso por quase toda a América Latina, chegando a Espanha e Indonésia?

Seguindo a pista de Durkheim, porque todo crime cumpre uma função social para a manutenção de um sistema social. 

Por contraste, figuras folclóricas como Leonardo Cositorto na verdade ocultam que todo o sistema financeiro opera como um esquema Ponzi. Por contraste, ao meter na cadeia o golpista, legitima o retante do sistema.

Crimes como os da Geração Zoe são bodes expiatórios do cassino financeiro global.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: O Vendedor de Ilusões: O Caso Geração Zoe

Diretor:  Matias Gueilburt

Roteiro:  Nicolás Gueilburt

Elenco: Leonardo Cositorto, Maximiliano Batista, Juliana Companys

Produção: Anima Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2024

País: Argentina

 

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