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quarta-feira, janeiro 12, 2022

Série 'Estação Onze': Shakespeare versus história em quadrinhos no fim do mundo



A série HBO Max “Estação Onze” (Eleven Station, 2021- ) é muito mais do que outra série adaptada de romance profético sobre a atual crise pandêmica global. A série redefine as narrativas sobre o fim do mundo. Uma pandemia de gripe extermina mais de 90% da humanidade – na verdade uma bomba viral, sem período de incubação. O que restou foi um mundo pós-apocalipse, relativamente otimista, que vive sobre os escombros de celulares, computadores e Internet (agora inúteis) e onde uma trupe de atores e músicos shakespearianos apresenta montagens itinerantes levando o que restou da arte da velha civilização. Mas também herdou uma HQ chamada “Estação Onze” que virou um objeto de culto profético e religioso com sua mensagem enigmática. Enquanto Shakespeare inspira arte e entretenimento, a HQ influencia perigosas seitas fundamentalistas. Será que o gibi teve o mesmo destino que aquele reservado à Bíblia Sagrada no nosso mundo?

Será mais um produto audiovisual baseado em romance profético sobre esses dois anos de crise da pandemia global? 

Sim, a série HBO Max Estação Onze (Station Eleven, 2021- ) é uma adaptação do romance homônimo de Emily St. John Mandel de 2014, descrevendo um mundo pós-apocalíptico em que a “gripe da Geórgia” devastou o planeta, matando a maior parte da população. Portanto, Estação Onze se filia a um conjunto de filmes e séries atuais que se basearam em obras que parecem ter antecipado a crise sanitária global como as séries Slborn (2020- ) e Utopia (2020). 

Porém, Estação Onze redefine essas narrativas sobre o fim do mundo ou dos mundos pós-apocalipse: primeiro, contando de forma diferente as estórias de desastres distópicos; e, segundo, destacando o papel da herança artística ou cultural pop da civilização destruída para a reconstrução de uma nova sociedade... ou a sua destruição definitiva.

Em filmes-catástrofe em torno de pandemias, zumbis e desastres sanitários, normalmente acompanhamos despedidas à beira de camas de hospitais, close-ups persistentes nos doentes ou pessoas morrendo até a última lágrima. Histórias de desastres distópicos tendem a ir até um passo além, aprimorando sadicamente as imagens de fatalidades horríveis ou honrando os últimos suspiros de coadjuvantes em campos de batalha, morrendo nos braços de seus melhores amigos.

Ao contrário, na série criada por Patrick Somerville, os protagonistas raramente estão perto do desaparecimento dos seus entes queridos, seja pela distância ou seja pela rapidez com que a gripe mata as pessoas – descobrem o destino de suas famílias através de textos digitados por estranhos em aplicativos, ouvem as últimas palavras de amigos e amantes por mensagens de voz. Muitas vezes não há mesmo confirmação, aumentando ainda mais a angústia.

Não há planos dramáticos de médicos e enfermeiras tentando consolar os enlutados. Há simplesmente o reconhecimento de que alguma perda aconteceu. Ou que está acontecendo.



A civilização é ceifada de uma forma muito rápida, em um tempo fraturado ao longo dos episódios com saltos constantes entre passado e presente. E a tecnologia que a definiu (Internet e aplicativos) é a única forma de dar o último adeus. 

Porém, o mais interessante é como a herança artística e cultural desempenha uma parte crucial no que restou da sociedade e que tenta se reerguer. Principalmente, a obra de Shakespeare e uma revista em quadrinhos de ficção científica chamada “Estação Onze”. Acompanhamos linhas de diálogo tanto com citações de Hamlet quanto dos enigmáticos balões da HQ sobre um astronauta em um traje dourado.

Num futuro em que os sobreviventes moram sob os escombros industriais e tecnológicos, Shakespeare inspira os laços sociais por meio da arte e entretenimento, enquanto a misteriosa HQ cria seitas e profetas que enxergam nos balões dos quadrinhos mensagens cifradas ou lições de sobrevivência para o futuro.




Dessa maneira, Estação Onze suscita uma questão curiosa: assim como o velho livro bíblico inspirou através do seu simbolismo cerrado e ambíguo a mais bizarra variedade de seitas, religiões e cultos, poderia também os produtos da cultura pop no futuro assumir o mesmo tipo de influência?  Será que em um futuro distante, todos os produtos da nossa indústria do entretenimento poderiam ser apropriados como relíquias não só históricas, mas também sagradas como é para nós a Bíblia?

O Filme

Estação Onze nos apresenta a um mundo pós apocalíptico relativamente otimista e segue uma trupe de atores e músicos viajantes, a “Sinfonia Itinerante”, que se desloca de um assentamento humano para outro. A história alterna entre os dias que antecederam a gripe mortal que matou a maior parte da população da Terra e o mundo pós-apocalíptico, onde um novo tipo de sociedade tenta se organizar.

Uma forma de gripe inédita, sem período de incubação: o infectado morre em questão de poucas horas.

A narrativa da série é expansiva. Os episódios de abertura da minissérie nos mostram o advento silencioso, mas mortal da pandemia e apresentam os personagens cujas vidas cruzam a narrativa. 




A série começa com Arthur Leander (Gael Garcia Bernal) atuando no palco a peça shakespeariana “Rei Lear”, para passar mal no meio do ato, aparentemente sofrendo ataque cardíaco. Um membro da plateia chamado Jeevan (Himesh Patel) sobe ao palco e tenta revivê-lo, mas é tarde demais. Ao sair do teatro, ele encontra uma atriz infantil da peça chamada Kirsten (Matilda Lawler) que não consegue encontrar seus responsáveis nos camarins. Jeevan decide ajudar Kirsten a voltar para casa, mas recebe uma ligação de sua irmã, uma médica, que o informa sobre a gripe mortal que está começando a se espalhar. Ela o incentiva a ir ao apartamento de seu irmão Frank, o que Jeevan faz, mas somente depois de comprar vários carrinhos de supermercado cheios de mantimentos de emergência.

Há o primeiro salto no tempo da série, e somos levados vinte anos depois da gripe desastrosa. Kirsten (Mackenzie Davis), agora crescida, fazendo parte uma trupe de atores shakespearianos itinerantes conhecidos como “Sinfonia Itinerante”, percorrendo diversos pequenos assentamentos de sobreviventes na região dos Grandes Lagos. Eles são muito queridos pelos moradores que sempre aguardam ansiosamente suas visitas. 

Outro salto no tempo. Antes da calamidade, o espectador é então apresentado a Miranda (Danielle Deadwyler), de quem Arthur acabou se tornando amante. Ela trabalha em uma empresa internacional de logística, enquanto nas suas horas vagas dá vazão à sua imaginação artística, fazendo os esboços do futuro gibi “Estação Onze”. Arthur e Miranda acabam se desentendendo quando o último descobre que o ator a está traindo. Durante uma viagem de trabalho à Malásia, Miranda fica retida devido à pandemia. Logo depois, ela recebe acesso especial a um barco para voltar para casa, mas recebe a notícia da morte de Arthur. Miranda está despedaçada, e o episódio 3 termina se trancando dentro de seu quarto de hotel, apavorada com a pandemia global. 




E a série continua dessa forma elíptica, muitas vezes dedicando um único episódio para desenvolver um personagem, sempre saltando no tempo. 

“Estação Onze” é a Bíblia pós-apocalipse?

Cenas de personagens lendo da HQ e linhas de diálogo com citações do gibi “Estação Onze” perpassa todos os episódios. Ao lado de Shakespeare, é fonte de inspiração para os sobreviventes da gripe apocalíptica. Apenas com uma diferença: enquanto as obras do “Bardo” rendem adaptações e músicas para a companhia itinerante entreter as pessoas, a enigmática narrativa do gibi inspira seitas e cultos fundamentalistas e niilistas. 

Como, por exemplo, a seita do “Profeta” (Daniel Zovatto), figura perigosa capaz de sequestrar crianças (chamadas por ele de “puras” por terem nascido após o fim do mundo) e transformá-las em meninos-bombas para matar aquelas consideradas indignas de habitar o novo mundo.

A curiosidade em Estação Onze é como a herança shakespeariana foi transformada em entretenimento e um gibi convertido em peça de culto religioso para grupos fundamentalistas – outro exemplo é o grupo dos “bandanas vermelhas”.

De certa forma a série lembra o argumento do filme clássico africano O Deuses Devem Estar Loucos (produção sul-africana de 1980 na qual uma garrafa de Coca-Cola jogada de um avião cai em uma tribo, transformando a vida dos bosquímanos do Kalahari num caos religioso) e também do filme etíope chamado Crumbs(2015), no qual migalhas do que sobrou da civilização (brinquedos, bonecos, adereços, enfeites, bibelôs de plástico, além de discos de vinil e roupas de fantasias como a do Super-Homem) viram talismãs mágicos e objetos de adoração religiosa.

Além da inspiração imagética de Stalker (1979), do diretor russo Andrei Tarkovsky, com seus planos de áreas devastadas e restos tecnológicos e de prédios industriais.




Fica evidente na série a quebra do elo geracional e cultural entre o presente e o passado: com o fim da produção de energia, desapareceram Internet, celulares, computadores etc., a forma hegemônica de transmissão cultural. Para crianças e jovens, os inúteis dispositivos em meios aos escombros da civilização passam a ser cercados de lendas (a “comunicação instantânea” pelo planeta, por exemplo) e as obras impressas que permaneceram viram objetos de culto.

Os balões com frases simbólicas e enigmáticas da HQ “Estação Onze” viram profecias e palavras sagradas. A exemplo do que representa a Bíblia Sagrada na atualidade. Será que a quebra do elo geracional mostrada pela série também nos acomete?

Será que a Bíblia Sagrada, produto de sociedades com transmissão cultural oral, perdeu o seu sentido original (talvez mais prosaico e cotidiano) com a quebra geracional produzida pelas novas tecnologias impressa, visual e depois digital? Talvez, por isso a Bíblia tenha se tornado “simbólica”, enigmática, supostamente com entrelinhas e códigos secretos e herméticos. Em consequência, gerando religiões e seitas que reivindicam a “verdadeira” interpretação bíblica.

Assim como é o prosaico gibi “Estação Onze”, transformado em um mundo que perdeu o significado da herança cultural, a objeto de culto religioso fundamentalista.

 

Ficha Técnica 

Título: Estação Onze (série)

Criador: Patrick Somerville

Roteiro: Patrick Somerville, Emily St. John Mandel

Elenco: Mackenzie Davis, Himesh Patel, Matida Lawler, Gael Garcia Bernal, Daniel Zovatto, Danielle Deadwyler 

Produção: Pacesetter Productions, Paramount Television Studios

Distribuição:  HBO Max

Ano: 2021-

País: EUA

 

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