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terça-feira, julho 16, 2019

A premissa AstroGnóstica desperdiçada no filme "O Espaço Entre Nós"


Dentro da tipologia dos filmes gnósticos, os AstroGnósticos são os mais existenciais: lidam com a condição humana como “Estrangeiro” – o ser humano como fosse um alienígena em sua própria família, sociedade ou planeta. “O Espaço Entre Nós” (2017) é um sci-fi com uma interessante premissa por associar o tema da condição humana como “Estrangeiro” com o drama da adolescência – o último momento do impulso da rebeldia, antes de ser enquadrado no mundo adulto. Um adolescente, o primeiro ser humano a nascer em Marte, quer voltar para Terra – em um vídeo-chat apaixonou-se por uma jovem, que também vive essa condição existencial de estrangeira como órfã. Mas ele não suportaria por muito tempo na gravidade terrestre. Um melodrama “teen” de amor impossível, com uma ótima premissa desperdiçada – ao invés da subversão gnóstica, o filme busca a conciliação final do protagonista com a iniciativa privada que financia a colônia marciana. 

Filmes AstroGnósticos (narrativas que simbolizam a condição humana em “estrangeiros” – alienígenas que caíram na Terra ou de que o próprio ser humano seria uma experiência malsucedida e prisioneiro nesse planeta hostil) têm uma longa lista no cinema: O Homem Que Caiu na Terra, E.T. O Extraterrestre, Starman, The Brother From Another Planet, Earthling, O Destino de Júpiter, K-Paxetc - sobre as tipologias dos filmes gnósticos (AstroGnóstico, PsicoGnóstico, TecnoGnóstico, PsicoGnóstico e CronoGnóstico), clique aqui.
 É intrínseco aos filmes AstroGnósticos a tensão entre o protagonista “estrangeiro” (muitas vezes sente-se estrangeiro dentro de sua própria família ou cercado por aqueles que ama) e um oponente Demiurgo que quer mantê-lo ou na ignorância da própria condição ou simplesmente na condição explícita de prisioneiro. É o leitmotiv básico, que se confunde com a própria cosmologia gnóstica de um universo criado com três propósitos: exploração, dominação e ignorância.
Mas não é o caso do filme O Espaço Entre Nós (The Space Between Us, 2017), uma produção com uma interessante premissa AstroGnóstica, incursionando no melodrama clichê adolescente do amor impossível (Crepúsculo, Vivendo na Eternidade, Cidade das Sombras etc.). Até aqui, tudo bem. Melodramas sobre amores adolescentes impossíveis podem render bons filmes AstroGnósticos como Upside Down (2012) ou mesmo Cidade das Sombras City of Ember, 2008).


Como veremos, o problema de O Espaço Entre Nós é, por incrível que pareça, a ausência de tensão, conflito e uma série de boas ideias não desenvolvidas e jogadas fora. E a conciliação e resignação final do mal-estar psíquico do estrangeiro com um sistema no qual é prisioneiro. 
O que resulta no abandono da premissa AstroGnóstica no happy end clichê dos piores melodramas adolescentes – um jovem que nasceu em Marte e passou 16 anos numa colônia marciana, apaixona-se por uma garota terrestre em um chat online. Com um corpo adaptado à gravidade do planeta, o jovem não resistiria muito tempo na gravidade terrestre. Isto, se resistisse à viagem para a Terra. Além do seu nascimento, secreto e longe da opinião pública naquela colônia, ser um potencial problema de relações públicas para o empreendimento privado por trás daquela colônia.
Clássico plot de amor impossível teende subversão no qual o impossível sempre pode ser possível. Mas, uma revolta adolescente revertida e conciliada com um tranquilizador final “paterno-corporativo”.


O Filme

 O Espaço Entre Nós se esforça em tornar essa premissa AstroGnóstica atraente, como um cult como Starman de John Carpenter. Para começar, o filme conta com o veterano Gary Oldman (no papel de Nathaniel Shepherd, um milionário britânico e gênio tecnológico que patrocina a colonização de Marte) e Carla Gugino (como a cientista-chefe da colônia, Kendra). 
E também, as recorrentes alusões a um clássico AstroGnóstico do alemão Wim Wenders, Asas do Desejo (Wings of Desire, 1987) – sobre um anjo que se apaixona por uma terrestre e cai na Terra. 
Nathaniel é o visionário financiador do Projeto Gênesis, que mantêm uma colônia em Marte chamada “East Texas”. Os motivos? O Esgotamento energético-climático da Terra. Primeiro tema jogado na trama, mas não desenvolvido.
Ele apresenta um grupo de astronautas (liderado por Sarah Eliot – Janet Montgomery) para a imprensa que logo rumará para “East Texas”. O que ele não sabe, é que Sarah parte para Marte grávida. Chegando lá, não resiste ao parto e morre. 
O bebê transforma-se num potencial escândalo para a imagem pública da empresa financiadora. Tentando lidar com o caso em segredo, Nathaniel envia para Marte a cientista Kendra, para servir de mãe de aluguel.


O bebê cresce e torna-se um menino solitário chamado Gardner Elliot (Asa Butterfield) cercado por 14 cientistas e um robô chamado “Centaur”. Ele é inteligente e curioso, mas ingênuo sobre as relações humanas.
Sentindo desesperada necessidade por conexão humana, Gardner conhece em um vídeo-chat uma jovem chamada Tulsa (Britt Robertson) – evidentemente, as comunicações evoluíram bastante, ao ponto de se estabelecer uma comunicação em tempo real entre Terra e Marte.
Mas Gardner quer mais: conhecer o seu pai biológico, que conheceu em fotos antigas da sua mãe.
Por alguma razão, Nathaniel permite que Gardner faça uma viagem secreta de volta para a Terra. Mas os problemas físicos serão diversos para alguém que passou a vida inteira na fraca gravidade marciana. O principal: seu coração terá sérios problemas na forte gravidade terrestres. Por isso deverá ter uma vida na Terra tal qual numa bolha. 
Claro, Gardner se revoltará e fugirá, atrás do seu amor Tulsa e seu pai. 
Se Gardner era um estrangeiro em Marte, Tulsa é também na Terra: sem pais, passou por vários orfanatos e vive na casa de um pai adotivo ausente. Ambos se encontrarão, para fugirem com carros e cartões de crédito roubados. Com Nathaniel e a polícia no encalço da dupla de amantes que, repentinamente, viram uma versão “teen” de Bonny e Clyde.


O Espaço Entre Nós a princípio é promissor: além da metáfora AstroGnóstica do Estrangeiro, o filme explora a metáfora da bolha familiar que ao mesmo tempo protege e limita os anseios por emancipação e liberdade. A adolescência como um rito de passagem, o último grito por liberdade. Até ser enquadrado nos deveres do mundo adulto e o impulso da subversão ser esquecido.
A limitação física de Gardner (o coração começa a falhar sob o peso da gravidade terrestre) conspira contra o seu desejo por liberdade. E Nathaniel, acompanhado da mãe marciana Kendra, correm contra o tempo para salvar o jovem.
Uma das grandes ideias desperdiçadas pelo filme, é a curiosidade de Gardner pela Terra. Na fuga entre carros e cartões de crédito roubados, Tulsa leva Gardner para conhecer Las Vegas. Na sua “simple mind” típica de “red necks” do Meio Oeste norte-americano, Tulsa acredita que ali Gardner teria a oportunidade de, num único lugar, conhecer Paris, Veneza e Cairo – afinal, estão ali réplicas da Torre Eiffel, das gôndolas em canais artificiais e da Esfinge de Gizé.
Uma oportunidade poética perdida: enquanto um “marciano” anseia em conhecer a Terra real, os terrestres se contentam com os simulacros da realidade. Mas a curta linha de diálogo fica perdida no momento em que o filme afunda no clichê teen do amor impossível.


Metáforas do Estrangeiro e da adolescência – alerta de spoilers à frente

Por isso, a narrativa ressente-se de conflito e tensão: tudo parece direcionar o espectador para uma conciliação final – Nathaniel tinha tudo para ser o Demiurgo – o empresário mais preocupado com a imagem de relações públicas da sua empresa do que com as questões éticas e morais do primeiro humano nascido em Marte e ocultado do mundo.
Mas, aos poucos, Nathaniel se revela cada vez mais paterno, do que um demiúrgico empresário – na verdade, ele é o verdadeiro pai biológico: o suposto pai daquela velha foto era na verdade o tio de Gardner...
Por isso, compreende-se a opção em mostrar um projeto de colonização de Marte privatizado por um bilionário (personagem claramente inspirado no empresário britânico Richard Branson, da Virgin), e não mais comandado por uma agência governamental como a Nasa. Enquanto uma agência como a Nasa (impessoal e com a tradicional imagem conspiratória governamental) conferiria o personagem demiúrgico perfeito, o personagem Nathaniel confere à narrativa a possibilidade para criar uma conciliação final: o fim da condição de Estrangeiro com os jovens enamorados caindo sob a proteção do pai corporativo.
Sem tensões, o filme reduz a condição estrangeira de Gardner e Tulsa a traquinagem de dois adolescentes que roubam o carro do pai para se divertirem. E, no final, ganham um pai que passam a mão nas suas cabeças e os transforma em futuros adultos responsáveis.



Ficha Técnica 


Título: O Espaço Entre Nós
DiretorPeter Chelson
Roteiro:  Allan Loeb e Stewart Schill
Elenco:  Gary Oldman, Janet Montgomery, Asa Butterfield, Carla Gugino, Tom Chen
Produção: Los Angeles Media Fund, STX Entertainment
Distribuição: STX Entertainment
Ano: 2017
País: EUA

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