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sábado, junho 08, 2019

Repórter é punido pelo tautismo da Globo (e também um conto de autodestruição)


O veterano repórter esportivo Mauro Naves foi imolado de forma exemplar, em rede nacional, pela “carta aberta para a imprensa” lida por William Bonner no JN, que anunciou o afastamento do repórter. Naves teria “contrariado a expectativa da empresa com a conduta dos jornalistas”. O problema é que uma outra “carta aberta”, dessa vez dos ex-advogados da modelo Najila (revelando a intermediação do jornalista entre o pai de Neymar e os advogados), alarmou a diretoria da Globo. Não porque contrariou uma suposta expectativa ética da empresa. Na verdade, episódio revelou ao público o “modus operandi” tautista (tautologia + autismo midiático) da emissora. A Globo vive uma “promiscuidade estrutural”. O caso de Mauro Naves não foi desvio de conduta individual. É decorrência do próprio sistema de comunicação tautista da Globo. Devido a hipertrofia e obesidade sistêmica, todos os acontecimentos devem ser moldados à sua auto-descrição interna. E também nessa postagem, um “conto de autodestruição”, como bônus...

O leitor deve conhecer a fábula do escorpião e do sapo. Um escorpião pede para o sapo que o leve nas costas até o outro lado de um rio. O sapo nega. Afinal, tem medo de ser picado pelo aracnídeo no meio da travessia. Mas o escorpião argumenta que jamais faria isso pois, se picá-lo, ambos iriam se afogar. Cedendo ao argumento, o sapo começa a carregar o escorpião, até que no meio do caminho sente a ferroada, condenando os dois. Desesperado, o sapo pergunta o porquê daquilo. E o escorpião confessa: “esta é a minha natureza, e nada posso fazer para mudar o destino”.
Essa sabedoria sombria da fábula pode ser facilmente verificada na decisão da Globo em punir o veterano repórter esportivo Mauro Naves, um “inesperado” efeito colateral envolvendo o a crise do caso Neymar Jr, talvez a principal produto esportivo da emissora que não vem vingando há tempos. Desde o naufrágio na Copa da Rússia: a principal atração, que deveria dar o brilho especial na vitrine do jornalismo esportivo da emissora, caiu no ridículo em todo o planeta, transformando-se em memes impagáveis. 
Naves foi afastado da cobertura esportiva com uma humilhação exemplar e impiedosa, com direito a nota lida por William Bonner em rede nacional no JN.  
Se na fábula acima, a natureza do escorpião é ferroar, no caso da Globo é ser tautista (tautismo + autismo midiático), não poupando qualquer acontecimento revele em público essa viciosidade que estrutura o poder global.
E esse acontecimento foi uma carta dos ex-advogados da modelo Najila Mendes de Souza, suposta vítima de agressão e estupro que teria sido cometido por Neymar Jr. A carta descrevia que a reunião deles com o pai do jogador teria sido realizada a convite de Mauro Naves.


Carta tautista à imprensa

Para a “carta aberta para a imprensa” divulgada pelo JN, a atitude de Naves “contraria a expectativa da empresa sobre a conduta de seus jornalistas”. Hipocritamente, a cúpula da emissora pune o repórter pela sua suposta promiscuidade com a fonte, em busca de exclusividade.
Como vimos em postagens anteriores (veja links ao final), a Globo sofre do mal que aflige todos os sistemas que se hipertrofiam, segundo pesquisadores das chamadas Teorias dos Sistemas como Nikas Luhmann, Humberto Maturana e Francisco Varela.
Quando sistemas crescem e se tornam complexos, a tendência é a auto-organização e fechamento. Em rápidas palavras: o sistema tende a se fechar ao mundo exterior. Ou melhor, qualquer informação externa é traduzida por uma descrição que o sistema faz de si mesmo. Segundo Varela, formada uma rede fechada (assim como os neurônios que atuam em paralelo uns sobre os outros de forma recursiva), acaba a distinção entre interior e exterior. Não mais existiria distinção entre percepção e alucinação. Apenas, fechamento.
A Globo cresceu à sombra da ditadura militar, concentrou o mercado publicitário nos intervalos da sua grade de programação. Concentração que ajudou a emissora construir uma estrutura hollywoodiana de cidades cinegráficas, gigantescos estúdios e um cast de atores, apresentadores e profissionais caríssimos. 
E tornou-se um sistema complexo de interesses políticos e econômicos. Em sua complexidade, todo sistema hipertrófico tenta a todo custo manter a homeostase (equilíbrio), prevenindo-se de qualquer informação do ambiente externo que possa desestabilizá-lo.
Esse “fechamento operacional” leva o peculiar sistema midiático global a adotar uma postura predatória com as informações provenientes do ambiente externo, como fosse um predador no topo da cadeia alimentar. 


Paranoia global

No caso do jornalismo, a Globo não pode simplesmente se limitar a reportar acontecimentos como fosse apenas uma “testemunha ocular da História”. O jornalismo global deve ser dona exclusiva dos acontecimentos que produzirão notícias – os acontecimentos são imprevisíveis demais para serem apenas reportados. Para a paranoia global, podem se tornar ameaçadores. 
Por isso, devem ser geridos, gerenciados, controlados, contidos. Em síntese, se tornam tautológicos (confirmam ad eternumo script pré-estabelecido nos “aquários” das redações) e autistas (midiaticamente confirmar autoimagem da emissora). 
Isso implica que a Globo deve manter uma incessante intimidade e promiscuidade com as fontes das informações. Os exemplos não faltam em todas as áreas do jornalismo da tautista emissora.
A forma como Galvão Bueno sempre mostrou intimidade e exclusivismo com Ayrton Senna, Gustavo Kuerten, Hortência, Neymar, Anderson Silva etc.
As ligações de todo o departamento esportivo da Globo com a CBF, Conmebol e FIFA. Sem falar nas ligações suspeitas e perigosas de Galvão Bueno e Ricardo Teixeira.
Ou ainda, como os diligentes analistas de política e economia da GloboNews como Miriam Leitão, Andreia Sadi, Valdo Cruz ou Natuza Nery fazem questão de salientar exclusividade e proximidade: “liguei para o ministro...”, “O presidente da câmara me disse...”. Ou, como chamam ministros ou deputados pelo primeiro nome ou por “você”.
Repórteres da Globo que namoram ou namoraram políticos tucanos ou até um ex-presidente... bom... é melhor pular esse parágrafo!

"Liguei para o ministro e..."

Promiscuidade estrutural

 A carta aberta dos ex-advogados de Najila alarmou a diretoria da Globo não porque contrariou uma suposta expectativa ética da empresa com seus jornalistas. O episódio revelou ao público o modus operanditautista da emissora que nada tem a ver com imparcialidade ou objetividade jornalística.
Segundo Daniel Castro, da coluna Notícias da TV do Uol(clique aqui), Naves não pretendia apenas garantir a exclusividade ou o furo de reportagem ao firmar um pacto entre fonte e repórter, passando o contato do pai de Neymar aos advogados. Naves saberia antes de todo mundo que o camisa 10 da seleção estava sendo acusado de agressão e estupro, mas tentou abafar o caso. Naves teria se oferecido como intermediador como uma tentativa de acordo entre a modelo e o jogador.
O que acionou as medidas de autoproteção da Globo foi que o caso expôs a promiscuidade estrutural de jornalistas e diretoria não só com as fontes, mas com as próprias notícias. 
Por “promiscuidade estrutural” entenda-se que não é desvio de conduta individual da prática jornalística: é uma necessidade do próprio sistema de comunicação tautista da Globo – pela sua hipertrofia e obesidade sistêmica, todos os acontecimentos devem ser moldados à sua auto-descrição interna. Assim como o horário dos jogos de futebol têm que obedecer às necessidades da sua grade de programação (que se dane que o torcedor sairá meia-noite do estádio), também notícias e acontecimentos econômicos ou políticos devem se adequar ao timing das necessidades da emissora. 
O atacante da seleção é um produto global que a todo custo deveria ser preservado – afinal, numa época de crise e poucos ídolos, o “garoto Neymar” é a única atração que a Globo tem a oferecer em amistosos caça-níqueis organizados pela CBF. Só não contavam com a decisão “intempestiva” da modelo que não compactuou com o acordo que tentava se costurado por Globo-Naves-advogados: fez um boletim de ocorrência em São Paulo acusando Neymar Jr de estupro.
A ferroada que o veterano jornalista Mauro Naves tomou de seus patrões era previsível diante da exposição pública da promiscuidade jornalística. Certamente Naves, com a experiência de 31 anos com o modus operandi global, deve estar recolhido à esperada resignação profissional. 


Pequeno conto de autodestruição

Se a realidade é fractal (de “fracta”: objeto geométrico que reproduz dentro de si, infinitamente, o padrão do todo), então devemos esperar que pequenos fatos do cotidiano brasileiro expressem padrões políticos e psíquicos do todo.
 Nessa semana esse humilde blogueiro se defrontou com um desses fenômenos fractais. Terminada a aula da manhã de Teorias da Comunicação (ironicamente, sobre Agenda Setting, Clima de Opinião e Espiral do Silêncio) no campus Paulista da Universidade Anhembi Morumbi, fui almoçar.
Desci em direção da Rua Augusta para almoçar em um boteco que é parada obrigatória: para mim, o melhor filé a parmegiana da cidade. Dei sorte! Cheguei no estabelecimento e encontrei minha mesa predileta, no fundo embaixo de uma escada, onde encontro sossego o suficiente para ler uma revista ou o jornal enquanto aguardo o prato.
Sou atendido pelo garçom. Ele é bem conhecido: foi meu ex-aluno na universidade em priscas eras. Por conta de uma série de percalços pessoais, não conseguiu uma colocação na área do jornalismo na qual se formou. Tentou uma série de concursos públicos, sem sucesso. E tenta tocar a vida como garçom, enquanto ainda investe em cursos preparatórios para concursos públicos.


Numa rápida conversa, ele entabulou uma comparação entre o clima das manifestações pró-Bolsonaro e dos protestos contra o corte das verbas na educação, ali na região da Avenida Paulista.
Para minha surpresa, conheci a nova (ou talvez, não tão nova assim) faceta daquele ex-aluno. Começou a tecer uma série de observações moralistas: “depois dos protestos dos estudantes na Paulista, aqui encheu de manifestantes... bebendo, enchendo a cara... até ficarem sentados ali na calçada... de tanto beber!”.
E comparou com o domingo das manifestações bolsonárias por um golpe militar e fechamento do Congresso e STF: “no domingo foi mais tranquilo... as pessoas pareciam mais centradas... conheciam a verdade... todo mundo sóbrio e consciente... passavam aqui em frente e não entravam nos botecos...”.
Definitivamente era meu dia de sorte! Do caixa, o patrão chama o garçom para pegar um prato que estava pronto e abrevia a análise moralista daquele ex-aluno.
Aquilo ficou ecoando em minha mente. E pensei com meus botões: em nome do moralismo, aquele garçom praguejava contra estudantes que, afinal, consumiram, pagaram e até alguns ocuparam as mesas e pagaram pela taxa de serviço daquele boteco. E, em última instância, até garantiram o emprego e a subsistência daquele incauto garçom.
Enquanto os manifestantes “conscientes” do domingo não se entregaram à perdição dos botecos da Rua Augusta. Mais “centrados”, provavelmente preferiram “encher a cara” em suas varandas gourmet ou em restaurantes, bares ou bistrôs mais requintados.
Ali estava um sujeito fractal da qual falam os teóricos pós-modernos: ele reproduz o padrão da doença psíquica que tomou conta do País – em nome do moralismo de um suposto combate à corrupção e o auto investimento messiânico da Justiça (juízes, procuradores etc.) uma nação se autodestrói ao mandar às favas a engenharia nacional, a cadeia produtiva do petróleo e toda a soberania tecnológica.  Joga-se fora a água suja da banheira com o bebê dentro.
Assim como aquele “consciente” garçom, capaz de se autodestruir em nome do moralismo da nova ordem na qual ele não terá nenhum lugar.

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