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quinta-feira, dezembro 21, 2017

Globo faz mais três "Contos Maravilhosos" para Natal do mérito-empreendedor


“Olhe sempre para o lado brilhante da vida”, cantava um condenado à morte pelos romanos, na cruz, no filme “A Vida de Brian” do grupo inglês de humor Monty Python. Diante de uma realidade birrenta e teimosa que insiste em contradizer a pauta da “retomada do crescimento econômico”, a mídia corporativa faz como Eric Idle cantando naquele filme: tenta transformar más notícias em positivos “Contos Maravilhosos”, conceito dos estudos de narratologia do pesquisador Vladimir Propp – contos mágicos de perda e recompensa. Para tentar elevar o astral da patuleia, agora convertida em mérito-empreendedores, a Globo criou mais três edificantes contos para as festas de fim de ano: os contos maravilhosos sobre o botijão de gás, o Conto Maravilhoso do resgate dos valores natalinos e uma novidade – o Meta Conto Maravilhoso da jornalista demitida.

Enquanto universidades privadas demitem em massa e engrossam as estatísticas do desemprego, os números de moradores de rua crescendo em 75%, o prosaico botijão de gás com o sexto aumento do ano forçando famílias a retroceder ao fogão à lenha e às velhas espiriteiras com álcool, além do comércio popular de final de ano não apresentar o aguardado aumento nas vendas, a grande mídia continua a sua cruzada estoica de tentar transformar todas essas mazelas da estagnação econômica em inspiradores contos maravilhosos.

Para tentar elevar a moral da patuleia e fazê-la acreditar que lá na frente, depois de atravessar o deserto, estará a terra prometida do mérito-empreendedorismo – a fé de que querer é poder.

Em postagem anterior discutíamos como uma realidade que insiste em contradizer os visionários especialistas e pesquisas, associada a era das redes sociais e dispositivos moveis, obrigou a mídia corporativa a buscar uma estratégia híbrida de manipulação: transformar más notícias em “Contos Maravilhosos”, no sentido dado pelo estruturalista russo Vladimir Propp - clique aqui.

Vladimir Propp (1895-1970)

São verdadeiros “contos de magia” nos quais sempre parte-se de um dano ou carência, passando por funções intermediárias (transmissão do objeto mágico, reação etc.) e chegando ao casamento e recompensa.

Sem poder mais dissimular (mentir, esconder etc.) diante da abundância de informações disponíveis nas redes sociais (pelo menos enquanto a neutralidade da Internet permitir), o jornalismo corporativo é obrigado a apresentar as “más notícias”. Mas agora o desafio é reverte-las e transformá-las em “contos de magia” de superação e recompensa.

Claro que essa estratégia colocada em prática não é consciente. Afinal, com a atual precarização dos cursos superiores, nenhum jornalista possui formação cultural generalista suficiente que permita aplicar conceitos de narratologia em um texto noticioso.  

Propp descobriu nos contos folclóricos russos uma estrutura narrativa recorrente, uma “psicologia dos povos” que certamente figuram nos atuais produtos da indústria do entretenimento como arquétipos. Mas no caso do Jornalismo, nada mais é do que uma espécie de Wishifull thinking - de que a realidade magicamente se converta naquilo que é esperado nas reuniões de pauta dos “aquários” das redações.

Vamos analisar mais três Contos Maravilhosos “proppianos” que até poderiam ser divertidos, não fossem trágicos...


1 – Aumento do preço do botijão de gás rende mais contos maravilhosos


Não importa se o aumento dos preços é da eletricidade, da gasolina ou do botijão do gás. Sempre os motivos alegados pelo governo, e diligentemente replicados pelo jornalismo corporativo, estão no campo das fatalidades “naturais”: falta de chuva ou a tensa conjuntura internacional dos preços.

Só o gás de cozinha sofreu reajustes que acumulam 50% num ano em que os especialistas midiáticos definem como de “retomada do crescimento e de queda da inflação”.

Diante dessa contradição entre a pauta da retomada e as insistentes notícias de reajustes de preços, nada melhor do que transformar tudo em um conto maravilhoso.

Por exemplo, para os aumentos das tarifas de energia elétrica, a edição do Jornal Nacional de 05/12  qualifica como “estímulo para o consumo de eletricidade fora dos horários de pico”.

E outra reportagem do telejornal na qual os aumentos do botijão de gás também viraram uma espécie de estímulo: a volta da “cozinha à moda antiga” do fogão à lenha, com direito a trocadilhos como a da dona de casa Maria do Socorro que “manda brasa” na cozinha.

Com um olhar meio perdido, virando de um lado para o outro, como fosse o espelho da própria ansiedade da repórter diante da necessidade de confirmar a pauta do editor, Maria do Socorro fala meio sem convicção: “... é mais gosto e mais barato, isso é verdade...”.

E na mesma matéria, também a Dona Emília, “cozinheira de mão cheia”, prepara tudo na boca do fogão e não usa mais o forno: “economiza gás, mas no sabor não tem economia...”, sintetiza a atenta repórter a sabedoria popular da dona de casa.

Lições tatibitate de "economia doméstica"

Os anos de abastança econômica e o surgimento da Classe C (que começou a ter os alguns hábitos de consumo de classe média alta) criou como reação a figura da “simplicidade descolada” – por exemplo, enquanto o Rodrigo Hilbert em seu “Tempero de Família” do GNT fazia seu próprio fogão a lenha e valorizava a volta das “tradições populares antigas” como signo diferenciado de consumo para a classe média alta, a Classe C esbaldava-se na ostentação comprando fogões novos de seis bocas com fornos espaçosos.

Hoje, quando a arrependida Classe C retorna à lenha e à boca do fogão, tudo transforma-se num conto maravilhoso do retorno do povo à sua própria sabedoria perdida pelos anos de “consumismo” e de “vida supérflua” da era lulo-petista: agora, cozinha “à moda antiga” com pratos “que não economizam sabor” e cozinheiras que “mandam brasa”.

Mas em tempos do modo de pensar mérito-empreendedor (no qual todos os “desafios” podem ser “equacionados” com “planejamento” e “ferramentas criativas”), os contos maravilhosos devem ter o toque de “gestão”, como mostrou o Fantástico desse último domingo.

Dessa vez o “conhecimento mágico” foi transmitido por uma especialista ou gestora que iluminou a ignorância popular: Daniela Godinho, autointitulada “pioneira de educação financeira e comportamental no Brasil (mais um desses personagens da chamada “economia criativa”), “treinou” a Dona Jandira que fará uma ceia para 15 pessoas, em um bairro popular de São Paulo, com dicas da especialista Daniela.

As “dicas” são nada mais do que pérolas do pensamento gestor do empreendedorismo: divisão dos alimentos em “grupos” antes de serem levados ao forno, “planejar uso e a capacidade do forno”, “proporcionalidade das panelas” etc. ... Já podemos imaginar o lançamento de futuros aplicativos, por alguma startup, para a gestão da cozinha.

E todas as dicas da “especialista em educação financeira” em tom de voz quase tatibitate, como se tratasse a pobre Dona Jandira como uma ignorante.


2 – O conto maravilhoso do resgate dos valores natalinos


Não está fácil para os repórteres saírem à rua e terem de confirmar, a todo custo, a pauta da retomada econômica. Se os shoppings e calçadões comerciais não são mais capazes de render imagens de animados consumidores carregando pesadas sacolas com compras, dessa vez colocam os pobres repórteres para fazer o corpo-a-corpo no olho do furacão do comércio popular como a 25 de Março em São Paulo ou no Saara no Rio.

Mas mesmo assim, a realidade é teimosa e birrenta. Tanto que o canal GloboNews acabou jogando a toalha. Mas não sem criar mais um Conto Maravilhoso.

No programa Estúdio i de 18/12 uma das pautas de discussão foi “brasileiros pretendem apenas comprar lembrancinhas”. A comentarista de economia do programa, a jornalista Flávia Oliveira, trouxe mais uma das indefectíveis pesquisas sobre consumo no final de ano, dando conta de que a maioria dos brasileiros compraria apenas “lembrancinhas” no Natal. Apesar da economia apresentar “lenta tendência de recuperação” o Natal será mais simples”.

E, principalmente, que o brasileiro gastará muito mais com os alimentos da ceia do que com presentes. “Eu gosto disso!”, vibrou a apresentadora Maria Beltrão. “... A ideia do ritual... já que estamos aqui, vamos comer bem, fazer brinde seja com que bebida for...”, completou entusiasmada.

E a poética Flávia Oliveira completou: “sem visar a questão comercial da data, as pessoas resgatam os valores mais belos do significado do Natal”. E retornou às suas elucubrações estatísticas dos números do infográfico da pesquisa.

Depois da estagnação econômica nos fazer voltar no tempo para resgatar as delícias da gastronomia do fogão à lenha dos nossos avós, também nos ajuda a refletir sobre os “mais belos significados do Natal”.

Como cantava Eric Idle, membro do grupo de humor Monty Python, no filme A Vida de Brian: “Olhe sempre o lado brilhante da vida...”, cantarolava, enquanto era condenado a morte pelos romanos, crucificado.


3 – O Meta Conto Maravilhoso da jornalista demitida


Uma injustiça! Certamente a jornalista de economia Thais Herédia foi a pioneira da narratologia poppiana no texto jornalístico. Nessa semana, a direção de jornalismo da Globo, sem dar maiores explicações, pegou a produção do programa Em Pauta da GloboNews de surpresa ao anunciar a demissão da apresentadora. Bete Pacheco foi chamada às pressas para substituí-la na edição do programa daquele dia.

Thais Herédia iniciou o jornalismo da grande mídia aos Contos Maravilhosos de Propp em abril desse ano: em meio às notícias da queda da inflação que não poderiam ser comemoradas (afinal era muito mais uma “deflação” provocada pela estagnação econômica) a jornalista manchetou: “Recessão e desemprego derrubam a inflação e devolve poder de compra aos brasileiros”.

O que provocou reações entre piadas e acusações de fazer “jornalismo chapa branca”. Diante da incompreensão da choldra que não conseguiu entender o momento histórico da criação da novidade narratológica em jornalismo, Herédia foi forçada a apresentar um longo pedido de desculpas nas redes sociais: “onde eu estava com a cabeça!”, começavam as desculpas – clique aqui.

Pois a jornalista foi vítima de outra injustiça: uma demissão sem justificativas públicas. Logo ela, a percussora de todos os Contos Maravilhosos que tomam conta de páginas de jornais e telas de TV e dispositivos móveis nesse final de ano...

Mas como em todo conto, vem a recompensa final com a conquista do elixir: agora ela viverá o seu Meta Conto Maravilhoso: poderá vivenciar na prática o fabuloso aumento do poder de compra dos desempregados brasileiros do seu seminal Conto Maravilhoso.

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