Pages

quinta-feira, abril 27, 2023

Série 'A Lição': só há glória na vingança indo além do bem e do mal


Sabemos que o cinema e o audiovisual são sismógrafos do zeitgeist dominante de cada momento histórico. Vingança e luta de classes são temas recorrentes na cinematografia sul-coreana. Produções como “Parasita” e “Round 6” revelaram isso. Além do ressentimento estar embutido na cultura pop daquele país, desde o sucesso internacional do videoclipe “Gangnam Style”. Espremida entre as potências China e Japão e com o crescimento econômico que gera um crescente abismo social, a produção cultural coreana reflete este mal-estar. A série Netflix “A Lição” (The Glory, 2022- ) é mais um sintoma disso: é sobre uma mulher que constrói uma vida em torno de um plano de punir e se vingar das pessoas que fizeram bullying contra ela no ensino médio. Inspirado em outro problema crescente no país, decorrente da desigualdade: a violência escolar. Nos 16 episódios acompanhamos planejamento e execução de um plano frio e lento seguindo uma inspiração nietzschiana: porque só existe a glória para além do bem e do mal.

  

Há algo acontecendo no inconsciente coletivo da Coreia do Sul. Se toda produção imagética for um documento primário da história psicossocial, do imaginário ou da sensibilidade de capa época, então encontramos uma recorrência significativa na produção do cinema e audiovisual daquele país.

Não dá para ir muito longe em análises sobre essa produção sul-coreana sem se defrontar com o tema da vingança. Para começar, temos o premiado pelo Oscar Parasita no qual a luta de classes termina em banho de sangue. Na telinha há séries como Get Revenge, Sweet Revenge e muitos outros. Na telona temos ainda a trilogia da vingança de Park Chan-wook Sympathy for Mr. Vegeance, Oldboy e Lady Veangeance.

Tudo isso sem esquecer da série de sucesso na Netflix Round 6: algozes milionários escolhem ao acaso vítimas pobres e endividadas para se divertirem assistindo a jogos mortais que prometem ao vencedor escapar do inevitável e miserável destino.

A série mais recente que explora a vingança e luta de classes é A Lição (The Glory, 2022- ) sobre uma mulher que constrói uma vida em torno de punir e se vingar das pessoas que fizeram bullying contra ela no ensino médio. 

Na verdade “bullying” é uma palavra muito branda para descrever o que fizeram com ela: a sufocavam, davam socos no peito para ver se ela desmaiava e queimaduras pelo corpo inteiro com uma chapinha com a qual as garotas mimadas de famílias ricas alisavam seus cabelos. Mais que bullying, era violência escolar cruel e friamente praticada contra alunas pobres. Sem nenhum motivo pessoal mais profundo, a não ser a luta de classes.

Há um sentimento de ressentimento embutido na cultura pop do país. Alguns consideram que seria uma condição existencial de um país espremido entre duas potencias mundiais: China e Japão.

O fato é que a série A Lição reflete o problema do bullying e violência escolar crescentes nesse século. Crescem denúncias feitas contra personalidades públicas (como ídolos de k-pop, atores, atletas e até mesmo políticos) envolvendo casos de bullying no cotidiano. Números expressivos de reclamações e imputações às instituições de ensino e delegacias locais.

Esse fenômeno passou a ser chamado de “wang-ta”, termo cunhado pelo pesquisador Hyojin Koo em estudos realizados sobre a natureza do bullying em instituições coreanas, no ano de 2005. O termo wang-ta, na verdade, descreve comportamentos que vão para além do bullying, como agressões físicas chegando a ações que ameaçam a vida da vítima.

Fenômeno ligado diretamente à crescente desigualdade social agravada pela flexibilidade trabalhista, precarização (como bem retratado em Parasita) e uma situação em que 1% da população detém 22% da riqueza.

Da música de sucesso internacional “Gangnam Style” (música ambígua que, de um lado, ridiculariza as pretensões de um bairro rico de Seul, mas, por outro lado, homenageia o K-pop ostentação) à recorrência do tema da vingança na cultura pop sul-coreana, estamos diante de um exemplo clássico de como o cinema e audiovisual são verdadeiros sismógrafos do que acontece na cabeça do público.

 Por se locomover nesse assertivo campo da vingança, a série inevitavelmente flerta com a noção retributiva da Justiça nietzschiana. A começar pelo título original em inglês “The Glory” (A Glória), visível em uma linha de diálogo do nono episódio: “seguir cegamente a moral só traz uma falsa glória, nada mais”. 



A justiça só nasce entre aqueles cuja potência se assemelha, como afirmava Nietzsche. A punição moral do Estado somente criaria uma “vingança social” que não resolveria o problema, mantendo o conflito latente. No fundo, tratar-se-ia de uma escravidão disfarçada: do Estado sobre os indivíduos.

A “Glória” só viria de uma vingança em que a vítima se confronta com os algozes ricos e poderosos no mesmo nível de potência. E para alcançar essa glória, somente preparando-se e planejando dedicadamente a vingança por quase 20 anos. Para realizá-la de forma fria e calculada

A série

A vítima que se tornou vingadora é Moon Dong-eun, interpretada por Song Hye-kyo com a obsessão silenciosa de uma mulher focada em sua missão. Forçada a abandonar o ensino médio – o diretor da escola é quase tão perverso quanto os jovens valentões - ela se organiza, estuda para se tornar professora e faz da vingança sua razão de ser. Este não é um mero trabalho de assassinato de aluguel. É um enredo de várias camadas que envolve anos de planejamento e oito episódios para se desenrolar até a vingança começar.

A tensão da série deriva do fato de que não temos ideia do que ela está fazendo. Moon Dong-eun está jogando um jogo longo, lento e cerebral. Ela é uma artista e a vingança é sua obra-prima.



As emoções são pungentes e difusas; a trama é intrincada e talvez até um pouco sutil demais, apresentando momentos que se o espectador piscar poderá perder as pistas para o plano mestre de Moon Dong-eun. 

Sua principal vítima é a líder dos valentões, Park Yeon-jin (Lim Ji-yeon), uma jovem magra e bonita obcecada por marcas famosas e por manter as aparências. Vem de uma família rica, intimida e ridiculariza os pobres e acredita que pode se safar de qualquer coisa, graças aos contatos quentes da sua mãe.

O plano de Moon Dong-eun para ela é elaborado. Envolve tornar-se professora da sala de aula da filha de 8 anos, além de seduzir o seu marido. Além de vencê-lo e ganhar dinheiro dele em uma série de apostas em jogos de tabuleiro chamado Go em um clube dedicado à modalidade. 

Aliás, o jogo Go é a grande metáfora da série, presente em diversas formas em todos os episódios: é um jogo de estratégia em que se constroem “casas” que o oponente terá que destruí-las, impondo suas próprias casas.

Como vê-se ao longo dos 16 episódios, seu plano é destruir as “casas” do grupo de valentões jogando-os uns contra os outros para ter o prazer de assistir a vida de todos desmoronar. Não sem antes a perversa Park Yeon-jin descobrir e atacar em alguns pontos fracos da rival Moon Dong-eun - por exemplo, a mãe desequilibrada e alcoólatra.




A grande virtude a série A Lição é destruir a bem fabricada superfície da sociedade sul-coreana, revelando as rachaduras mais sinistras da sociedade: a realidade sombria da violência escolar, as desigualdades de classe, a falta de justiça social na Coreia do Sul e a opressão cotidiana se uma sociedade de consumo que ostensivamente exibe as marcas – ao ponto que vemos ternos e camisas sociais com etiqueta da marca costurada na parte externa da roupa para ostentar a posse da grife. 

E mais: como esses problemas de bullying e intimidação não param após a formatura do ensino médio. A narrativa acrescenta outras complexidades, desde casos extraconjugais, decepção, violência conjugal, abuso de drogas e assassinatos dentro de um quadro mais geral de injustiça social.

E numa sociedade tão desigual e ressentida, como não poderia deixar de ser, está presente a religião ao estilo das neopentecostais brasileiras. Com donos milionários (como o pai de uma das jovens do grupo de valentões-alvo da vingança), e com um discurso voltado para resignar e consolar os crentes pobres e desesperados.

Assim como o Estado que quer monopolizar a vingança através da justiça e do direito, a religião pretende fazer a mesma coisa através de Deus e da fé. A vingança com procuração.

Esse é o mote de A Lição: somente pode haver glória em uma vingança entre oponentes que estão na mesma posição de forças e armas. E Deus e o Estado estão fora disso.  


 

 

 

Ficha Técnica

 

Título: A Lição (Série)

 

Direção: Gil Ho Ahn

Roteiro: Kim Eun-sook

Elenco:  Song Hye-Kyo, Jung Ji-so, Lee Do-Hyun, Ji-Yeon Lim

Produção: Hwa and Dam Pictures

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: Coreia do Sul

 

 

Postagens Relacionadas

 

Nietzsche e o sabor gelado, muito gelado, da vingança no filme 'O Cidadão do Ano'

 

 

 

A Luta de classes no Capitalismo Cognitivo em "Parasita", vencedor do Oscar

 

 

Gameficação da luta de classes na série 'Round 6'

 

 

O humano, demasiado humano no filme "Relatos Selvagens"