Pages

sexta-feira, julho 15, 2022

O terror emerge do sonho americano das redes sociais no filme 'Hatching'



O terror que emergia de subúrbios em tons pastéis, como reza o sonho americano, foi a tendência dos anos 80-90. Nesse século, o terror emerge mais uma vez do sonho americano, dessa vez transferido para a busca de likes, compartilhamento e engajamento nas redes sociais. Ao lado de filmes como “Spree” e “Cam”, o filme finlandês “Hatching” (2022) é o mais atual exemplo de uma tendência em filmes que descrevem o que acontece com as pessoas quando buscam aprovação na Internet a qualquer custo. O filme não poupa esforços para ser estranho: uma mãe transforma os treinos da sua jovem filha na primeira competição de ginástica olímpica numa live dentro de um video-blog chamado “Lovely Everyday Life”. Até o momento em que a filha descobre um ovo de um pássaro que cresce, até eclodir um pássaro-monstro que se transformará na sua doppelgänger.
  

Desde Poltergeist (1982), consolidou-se nos anos 1980 uma tendência de filmes de terror feitos em torno da imagem saudável, ao estilo Norman Rockwell, da vida dos subúrbios norte-americanos – a imagerie perfeita do sonho americano. Estórias cujo terror emergia do passado, dos subterrâneos das lindas casas arborizadas ou dos pesadelos de seus jovens moradores, mostrando como as imagens perfeitas do sonho americano disfarçavam o retorno do reprimido, materializado em espíritos, monstros, seriais killers etc.

Mas, eram os anos 1980 do conservadorismo da era Reagan, e Hollywood transformou essas narrativas revisionistas em exercício voyeurista, sadomasoquista, misturando erotismo com o terror em que todos aqueles que ousassem desafiar a ordem familiar ou moral eram punidos por assassinatos ritualísticos de Jason, Freddy Krueger e toda uma galeria de horrores.

Com filmes recentes como CamSpree e The Hater acompanhamos a tendência no século XXI em transformar em horror aquilo que está sob a superfície das identidades construídas pelos usuários nas mídias sociais – o que acontece quando as pessoas usam a Internet para buscar aprovação social a qualquer custo. De certa forma, o sonho americano no estilo Norman Rockwell persiste, porém foi transferido para o mundo digital e suas ferramentas de imagem como filtros, efeitos e aplicativos.

“Nosedive”, episódio da terceira temporada de Black Mirror, já havia explorado no campo sci-fi, em 2016, os horrores totalitários por trás da perfeição estética rosa e pastel da vida online aspiracional no estilo Instagram – uma mulher que neuroticamente monitorava sua avaliação nas redes sociais numa sociedade em que os ratings nessas mídias tinham uma influência totalitária.

 Hatching (2022) é o filme mais recente dessa tendência. Porém, cuidado! É um filme finlandês sem nenhuma das tradicionais travas semióticas ou morais hollywoodianas – um conto de fadas adulto com alto conceito, no qual a diretora Hanna Bergholm não poupa esforços em provocar estranheza com cenas tão provocadoras quanto nojentas, sem nenhum dos dispositivos hollywoodianos que transformam o horror em exercício voyeurista e sadomasô.

Tudo se passa um arquetípico bairro suburbano: papéis de parede florais, vestuário pastel e polo e a decoração das casas em vidro e porcelana. Mostrando a narrativa sobre uma menina de 12 anos que se prepara para a sua primeira competição em ginástica olímpica e que descobre um ovo de um pássaro que cresce, até eclodir um pássaro-monstro. Uma metáfora daquilo que emergi do mundo de aparências em tons pastéis de uma família que não poupa sorrisos performativos para ocultar seus estremecimentos reprimidos. Sorrisos em lives diárias que pretende criar o sonho da família perfeita nas redes sociais.

Essa metáfora começa a ser construída logo nas primeiras cenas: um melro invade a grande residência da família, dando voos rasantes que derrubam e quebram vasos, cristais e um lustre que desaba sobre uma luxuosa mesa de vidro. A ave luta para escapar, enquanto deixa um rastro de destruição. Até ser capturado e ter o seu pescoço quebrado pela mãe, sempre com um assustador sorriso de selfies.




Esse fato perturbador irá deixar naquela perfeita família finlandesa a semente do Mal, materializada num misterioso ovo.

O Filme

A jovem Tinja (Siiri Solalinna) parece ter sido criada como um acessório para o canal de vídeos de sua mãe chamado “Lovely Everyday Life”. Tinja, seu irmão mais novo Matias (Oiva Ollila) e seus pais – creditados apenas como Mãe (Sophia Heikkilä) e Pai (Jani Volanen) – performam suas vidas inteiras para um público online. A mãe frequentemente publica vídeos sobre sua família perfeita e sua casa perfeita, e ela mobiliza toda a família para defender a ilusão exata que ela quer projetar.

O roteiro reduz essa premissa ao essencial, nunca abordando quem é o público da mãe ou o que ela quer deles. Ela pode estar se apresentando para um público vasto e lucrativo. Ou talvez ela esteja tentando construir seguidores em uma esfera de influenciadores que mal a percebe. Possivelmente ela está apenas obcecada com sua própria fantasia de uma vida ideal e tentando projetar essa fantasia para os outros. 



A diretora mantém o vídeo-blog da mãe fora da tela, e seus leitores e suas respostas são deixados para a imaginação do público. Essa abstração é proposital para fazer parte do horror do filme e parte: os seguidores parecem governar a vida da mãe e, através dela, governam a vida da jovem Tinja. Se eles são uma entidade sem rosto e sem forma para Tinja, então eles devem ser invisíveis para o público também.

A mãe, ex-patinadora sem muito sucesso, transforma o início da carreira na ginástica olímpica de Tinja em um reality show online. Obcecada, exige da filha nada menos do que a perfeição, transformando os treinos verdadeiras sessões de tortura psicológica e física.

Tinja adora sua mãe e faria qualquer coisa para agradá-la. Logo após o evento perturbador do melro invasor, Tinja traz um ovo da floresta para casa e o esconde em seu quarto. À medida que o comportamento de sua mãe se torna cada vez mais controlador e opressivo, o ovo cresce na proporção direta tornando-se enorme. Para então eclodir uma monstruosidade que claramente reflete tudo o que Tinja poderia ser, mas que sua mãe desaprovaria. Onde ela é esbelta e graciosa, a criatura é irregular e disforme. Onde ela é obediente e tratável, a criatura é errática e furiosa. Onde ela é arrumada e bonita, a criatura é viscosa e desagradável, e assim por diante.

Enquanto Tinja tenta esconder a criatura, apelidada de “Alli” após entoar uma assustadora canção de berço finlandesa, a metáfora fica cada vez mais clara: enquanto Alli representa as partes feias de Tinja que ela teme e esconde, ela ainda as nutre inconscientemente, alimentando-as em segredo. E deixá-las crescer para se tornarem cada vez mais terríveis. Mesmo que ela possa ver que a criatura está indo para lugares terríveis, ela continua protegendo-a. Ela tem medo de perder o controle, expor sua decepção e atrair a ira de sua mãe. Mas, ao mesmo tempo, a criatura reflete seus impulsos mais sombrios, agindo sobre seus ciúmes e ressentimentos. Até o momento em que a criatura se torna um doppelgänger sombrio de Tinja.



Em uma entrevista à imprensa especializada, a diretora Bergholm diz que queria fazer Hatching“especialmente para o público que tradicionalmente tem medo de assistir a filmes de terror, mas que quer ver histórias poderosas sobre emoções femininas”. 

Por isso, Hatching parece um conto de fadas sombrio em vez de um terror slasher padrão, e sua mensagem é particular e especificamente construída em torno das provações da juventude, as expectativas que as mulheres enfrentam e como os dois se relacionam diretamente.

Como um típico filme escandinavo, bem longe dos padrões hollywoodianos, o espectador não encontrará muito conforto ou segurança. Principalmente porque não encontrará o típico esquema do Mal invadindo a ordem do mundo familiar em tons pastéis: quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem. A monstruosidade não é punitiva e nem caça aqueles que quebram a ordem (como no terror da “espantomania” dos anos 80-90 – quem deve morrer deve ser todos aqueles que quebram a ordem: jovens que fazem sexo, desobedeça a mãe, curte drogas etc.).

Pelo contrário, o Mal eclode para destruir a fina superfície feliz das imagens que a família produz de si mesma nas redes sociais. O Mal é o inconsciente, o retorno do reprimido, na melhor acepção freudiana.

E, claro, nada ficará de pé numa história simples, contada de maneira surpreendentemente crua e com cara de pesadelo.


 

Ficha Técnica

 

Título: Hatching

Diretor: Hanna Bergholm

Roteiro: Hanna Bergholm

Elenco:  Siiri Solalinna, Sophia Heikkilä, Jani Volanen, Reino Nordin

Produção: Silvia Mysterium Oy, Hobab

Distribuição: IFC Midnight

Ano: 2022

País: Finlândia, Suécia

 

Postagens Relacionadas

 

A autoabdicação humana no filme “Cam”

 

 

 

A uberização do ego no filme “Spree”

 

 

Em “Black Mirror” a tecnologia é o espelho sombrio de nós mesmos

 

 

Como pular fora da cultura do meme dos influenciadores digitais no filme “Mainstream”