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quarta-feira, julho 27, 2022

Memórias, perdas e condicionadores de ar no filme 'Ar Condicionado'


A sociedade apresenta-se de modo invertido para nossas consciências. Esse é um tema que vai de Marx a Freud: coisas inanimadas parecem ganhar vida própria, enquanto nós nos desumanizamos. O afrofuturismo angolano de “Ar Condicionado” (2020) aborda esse tema, fazendo uma crítica ao consumismo e às deformações urbanas usando simbolicamente essa consciência invertida: do nada, condicionadores de ar começam a despencar dos prédios, matando pedestres que estiverem passando na hora errada. Uma conspiração chinesa para vender ventiladores? Uma faceta das mudanças climáticas? Obsolescência planejada assassina? Ou esses objetos cansaram de funcionar e estão se matando? Um mix de sci-fi com realismo fantástico, no qual as memórias das perdas da colonização portuguesa e guerra civil estão por trás desse fenômeno bizarro.

Mais do que falsa consciência, Karl Marx acreditava que a ideologia no capitalismo funciona como consciência invertida de uma sociedade que se apresenta de modo invertido para si mesma. A sociedade apresenta-se para si mesma como feitiço, magia animista, fetiche: na economia o mercado parece ter vida própria (fica “tenso”, “deprimido”, “em pânico”), o dinheiro aplicado no banco “rende juros”, as mercadorias no mercado “têm preço” que sobe e desce. E no consumo, os produtos parecem ter características humanas como motivação, sentimento ou emoções. Para os humanos terem de volta suas próprias qualidades, têm que comprar os produtos que parecem ter vida própria.

Por que consciência invertida? Porque enquanto, na economia, a magia animista do mercado, preços e dinheiro que rende por si mesmo inverte as relações sociais de produção e distribuição de riqueza (oculta a exploração e concentração de riqueza), no consumo, as mercadorias que parecem ter vida própria com suas grifes e embalagens ocultam as relações sociais de produção (e de exploração).

Toda essa fantasmagoria da “contradição em processo” em que parece funcionar o Capitalismo teria que refletir na sua superestrutura cultural: as críticas simbólicas ao próprio Capitalismo, sejam ficcionais ou não-ficcionais, também se utilizam dessa consciência invertida para fazer uma reflexão sobre as próprias relações sociais. Veja, por exemplo, no documentário canadense The Corporation (2003, que avaliava a corporação como fosse uma personalidade humana através dos critérios diagnósticos do DSM-IV), seja no realismo fantástico, sci-fi ou terror - objetos inanimados que, do nada, ganham vida como carros ou tomates assassinos.

Um exemplo dessa crítica simbólica invertida vem do país africano Angola: o filme Ar Condicionado(2020), produzido pelo coletivo chamado Geração 80 e dirigido pelo diretor Fradique – seu nome real é Mário Bastos. 

Um promissor cineasta que se formou em Belas Artes na Academy of Art University, San Francisco, antes de regressar para casa e realizar o documentário Independência (2015), uma crônica da história colonial do seu país natal e da guerra da independência de 1961 a 1974, libertando-se do colonialismo português. Para cair em uma guerra civil que se estendeu de 1975 a 2002 – mais uma guerra por procuração entre EUA e URSS na Guerra Fria.

Transitando entre a ficção científica e o realismo fantástico, Ar Condicionado se passa na capital angolana Luanda que começa a se deparar com um problemas desconcertante: de repente, condicionadores de ar começam a cair dos prédios por todo o país como fosse algum tipo de epidemia, matando qualquer um que tenha a infelicidade de estar passando no momento errado. E outras mortes decorrem de idosos tropeçarem nos aparelhos despedaçados nas calçadas.

O que estaria ocorrendo? Uma conspiração chinesa após o acordo bilateral sino-angolano? Uma versão assassina da obsolescência planejada dos objetos? Uma inusitada faceta das mudanças climáticas? Ou algo mais mágico ou surreal?



Sustentado por uma notável trilha sonora melancólica de Aline Frazão (um jazz original executado por instrumentos desconhecidos como filiscorn, dikanza e kissanje), a narrativa de Ar Condicionado foi inspirada em uma realidade angolana bem concreta, como explica Fradique: 

“Eu e meu diretor de fotografia [e co-roteirista] Ery Claver nascemos e crescemos e ainda moramos nesses prédios muito antigos, que têm muitos problemas de infraestrutura, principalmente com água ou eletricidade”, disse ele. “As pessoas moram lá em apartamentos, mas também tem gente que trabalha lá como segurança, gente que carrega a água; há um mercado negro em torno dos próprios edifícios. Queríamos contar uma história em que todo o universo do filme fosse o edifício e os arredores.”

Esse foi o ponto de partida da surreal premissa de Ar Condicionado. Mas por trás dessa premissa maluca, o tema central do filme são histórias de perdas e sobre memórias do que foi deixado para trás, depois das amargas experiências da colonização e guerra civil.

O Filme

Ar Condicionado abre com uma epígrafe enciclopédica:

Ar s.m. 1. Fluido que envolve a Terra; 2. O espaço aéreo; 3. O fluido que respiramos; 4. Aragem, vento; 5. Aparência, aspecto; 6. Modo.

Condicionar (latim, -onis, condição + -ar) v.tr. 1. Tornar dependente de condição; 2. Pôr condição a; 3. Acondicionar.

Ar-condicionado s.m.  Aparelho ou sistema que regula o aquecimento ou a refrigeração de um ambiente.

Uma brilhante introdução de uma estória que veremos a seguir: uma narrativa em torno de um objeto tão prosaico, cujo nome é a fusão de um substantivo com um verbo que cria um novo significado ou sentido – uma máquina que, em si, é a expressão da falência das políticas públicas de urbanização. Além de expressão ideológica da desigualdade de classes.

O filme acompanha Matacedo (José Kiteculo), um misto de zelador e faz-tudo, e a faxineira Zezinha (Filomena Manuel) que trabalha na casa de um patrão de classe média grosseiro com os subalternos: desde que a epidemia dos ar-condicionados começou, ele está irritado. Seu aparelho quebrou e delega à diarista Zezinha a missão de levar o aparelho para o conserto para tê-lo pronto e funcional até o final do dia.



Zezinha pede ajuda ao faz-tudo Matacedo para que encontre um técnico nas redondezas que faça o serviço. Esse será o ponto de partida de uma jornada estranha e cada vez mais surreal, acompanhada por uma steadicam que segue Matacedo em suas caminhadas por corredores escuros, vielas, becos e prédios comerciais sujos e deteriorados em busca de uma solução. 

Logo percebemos os abismos sociais: quem mais sofre com o bizarro evento são os mais pobres que perdem para sempre seus condicionadores de ar enquanto os mais ricos procuram algum conserto ou simplesmente trocam os aparelhos.

O horizonte urbano é inóspito, quente, uma floresta de concreto cinza de prédios velhos e deteriorados, sem qualquer área verde, tornando o calor insuportável sem os condicionadores de ar.

Finalmente depois de tantas tangentes, Matacedo encontra Mino (David Caracol), um excêntrico engenheiro elétrico com uma explicação intrigante sobre o fenômeno dos ares-condicionados. “Como frutos que amadurecem e caem, também são assim os ares-condicionados”, diz a certa altura Matacedo. 

Mas maduros do quê? Numa loja de materiais elétricos com aparelhos de TV, videocassetes e eletrodomésticos amontoados, ele descobre uma conexão com as memórias de seus proprietários, gravados nos mecanismos dos condicionadores de ar e revelados através de uma geringonça construída por Mino: ele conseguiu conectar um ar-condicionado em um videocassete conectado a uma TV.



Por isso, Ar Condicionado é uma história de memórias e perdas. Zezinha vive sonhando em retornar para a ilha da sua infância feliz, enquanto é humilhada pelos empregadores. Naquela urbanização caótica e desigual de Uganda, há um mal-estar onipresente dos pobres e a má-consciência dos mais ricos.

As máquinas em Ar Condicionado têm uma importância animista, ao ponto de algumas pessoas acreditarem que os condicionadores de ar estão se matando. Vemos numa cena pessoas chorando em torno de uma cama fúnebre de velório. Enlutados, todos choram por um ar-condicionado, colocado no centro da sala de um apartamento como fosse um ente querido que tivesse morrido. 

O filme é uma crítica simbólica ao fetichismo da mercadoria no consumismo e suas deformações. Uma delas, a degradação urbana e microclimática, no qual o ar-condicionado é sua expressão, vendido como solução fetichista. Tão onipresente que, na visão crítica de Fradique, tornaram-se depositários de memórias orgânicas de seus proprietários.


 

Ficha Técnica

 

Título: Ar Condicionado

Diretor: Fradique

Roteiro: Ery Claver, Fradique

Elenco:  José Kiteculo, David Caracol, Filomena Manuel

Produção: Geração 80

Distribuição: MUBI

Ano: 2020

País: Angola

 

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