Pages

sexta-feira, julho 02, 2021

O horror cósmico no vazio entre a magia e a ciência no filme 'In the Earth'



A pandemia global vem rendendo duas vertentes temáticas no cinema: de um lado, um novo subgênero, o “Covid Exploitation”; e do outro, a recorrência de filmes sobre o horror cósmico – a pandemia parece ter despertado em nós a consciência de que o universo é totalmente indiferente à humanidade. E isso pode ser uma notícia nada boa. “In the Earth” (2021) é mais um filme que ecoa o horror cósmico de HP Lovecraft: cientistas se perdem entre a magia e a racionalidade científica em uma floresta tentando comprovar que toda a vida vegetal está interligada por uma espécie de rede neural psíquica que pode se comunicar consigo mesma e conosco. Fazendo alusões à hipótese Gaia, se a Natureza for um sistema vivo, então ela não precisa ser salva por nós: a Natureza poderá salvar a si mesma, nos expulsando como fossemos meros parasitas. 

A pandemia vem fornecendo inúmeros insights para cineastas do ano passado para cá. De um lado, temos um verdadeiro subgênero: o “Covid Exploitation” contando com filmes como Host (2020), Safer at Home(2021), A Casa da Praia (2020), Corona Zombie (2020) entre outros. 

E do outro, o horror cósmico em Intersect (2020), Colour Out of Space (2020) e, novamente, A Casa da Praia. Nesse insight, o horror e o fantástico do escritor HP Lovecraft (1890-1937) caem como uma luva: a monstruosidade não se origina do mal no sentido moral (seres malignos, corrompidos com objetivos torpes e malignos) mas de uma absoluta indiferença do cosmos com a existência humana.

Essa conexão entre o aspecto incontrolável da pandemia e a sensação de que a Natureza quer nos expulsar desse mundo é a chave para interpretar o novo filme do diretor e roteirista Ben Wheatley (High-Rise e Free Fire), In The Earth (2021). 

O mundo natural nos dá os recursos para viver. Mas também nos ataca com os vírus. Em In the Earth o grande personagem é a própria Natureza como uma entidade viva, que respira e inegavelmente reage de forma agressiva à presença humana. Com uma narrativa situada em uma floresta sombria de contos de fadas, cientistas são aterrorizados por forças misteriosas, quase mágicas. Cientistas que estão convencidos de que toda a vida vegetal está interligada por uma espécie de rede neural psíquica que pode se comunicar consigo mesma e conosco.

O argumento de In the Earth ecoa a chamada “Hipótese de Gaia”, elaborada por James Lovelock em 1979, de que o planeta Terra seria um imenso organismo vivo capaz de obter energia para seu funcionamento, regular seu clima e temperatura, eliminar seus detritos e combater suas próprias doenças, ou seja, assim como os outros seres vivos, um organismo capaz de se auto-regular. Na mitologia grega, Gaia era a deusa da Terra e mãe de todos os seres vivos.

Essa hipótese expandiu-se de múltiplas maneiras e incorporada a cultos religiosos e seitas místicas, filosóficas e ambientalistas. A tal ponto que o próprio Lovelock afirmou que a humanidade não pode salvar o planeta e que essa ideia é uma “bobagem”: como um sistema autônomo, a Terra será salva por ela mesma.

Porém, esse é o problema: nessa busca por “cura”, o planeta poderá expulsar a própria humanidade como fosse algum tipo de parasita – daí a pandemia global reforçar esses presságios sombrios. 

A ponto de Ellis Silver, no seu livro “Humanos Não São da Terra”, assinalar que a origem humana é extraterrestre e que, ao contrário das outras espécies da Terra, somos incrivelmente mal preparados e inadaptados ao ambiente terrestre – incapazes de suportar o Sol, forte repugnância à comida natural e nível “ridiculamente” alto de doenças crônicas.




Lembrando a cosmogonia gnóstica, Ellis especula que talvez só caímos na Terra por ser algum tipo de “planeta prisão”, já que parecemos ser uma espécie naturalmente propensa à violência.

In the Earth repercute todas essas ideias numa espécie de paranoia pagã, em uma floresta cujos sons dos pássaros lembram gritos humanos e plantas e árvores assumem grotescas formas humanas. E cientistas experimentam esse horror cósmico no vazio entre ciência e magia.

O Filme

De início o filme nos conduz a um local de pesquisa chamado Gantalow Lodge, no Reino Unido, onde o cientista Dr. Martin Lowery (Joel Fry) acaba de chegar. Martin esteve isolado por meses devido a uma pandemia que está varrendo seu mundo. Ele parece estar ansioso por se conectar novamente com as pessoas. Mas a maioria dos cientistas está no campo, e a pousada está inquietantemente silenciosa.

As únicas pessoas com quem Martin passa o tempo são Frank (Mark Monero), o médico que o inspeciona em busca de sintomas da doença que se espalha, e Alma (Ellora Torchia), a guarda florestal designada para guiá-lo através da floresta para encontrar a colega cientista botânica Dra. Olivia Wendle (Hayley Squires). 

A Dra. Wendle faz pesquisas maneiras de tornar o crescimento das plantações mais eficiente, mas é também conhecida por sua teoria de que todas as árvores em uma floresta estão conectadas, como fosse um cérebro gigante – encontramos aqui alusões à hipótese de Gaia. 




Martin claramente teve um passado pessoal complicado com a Dr. Wendle, mas sugere-se que ela trocou Martin pelo amor dela pela floresta. Quando Frank o avisa que a floresta é um "ambiente hostil" que ele não deve subestimar, um lugar onde as pessoas se perdem e morrem, Martin dá de ombros e desdenha.

O aviso de Frank não o desencoraja. Nem a explicação de Alma mostrando uma peça de tapeçaria agourenta pendurada na parede. A peça retrata a lenda de “Parnag Fegg”, o “Espírito da Floresta”, um conto folclórico local que apavorou ​​crianças por décadas. As imagens de Parnag Fegg incluem esqueletos, figuras sem cabeça e cegas, crianças flutuantes, diabinhos e demônios e uma figura encapuzada usando uma coroa de gravetos, mas nada disso detém Martin. 

In the Earth torna-se uma espécie de road movie, com a capaz Alma guiando Martin por paisagens áridas e densas. Eles caminham sob o sol por campos de flores, se abaixam sob galhos de árvores densamente crescidas e passam por cogumelos roxos que emitem pequenas nuvens de esporos, ao som de uma trilha sonora que soa como cantos gregorianos. 

Após terem sido misteriosamente assaltados enquanto estavam acampados, encontram um homem barbudo igualmente misterioso chamado Zach (Reece Shearsmith). Um habitante quase selvagem que vive no meio da floresta que lhes oferece abrigo é um chá doce de flor de sabugueiro – cena na qual o leitor se lembrará de vários contos de fadas em que estranhos carregando presentes de comida e bebidas não são confiáveis. 

Não mesmo: Martin e Alma perdem os sentidos e logo descobriremos que Zach tenta emular os antigos rituais mágicos para contatar “Parnag Fegg”, ao custo de sacrifícios humanos.

A Dra. Wendle será o contraponto da magia. Mais tarde os protagonistas a encontrarão, para descobrirem que o verdadeiro objetivo da sua pesquisa é substituir os rituais mágicos de Parnag Fegg pelo método científico: busca de padrões na floresta através de dispositivos acústicos e eletrônicos. Enquanto Zach tenta comunicar-se com o espírito da floresta com a velha magia, Dra. Wendell prefere os clássicos métodos cartesianos.




Mito X Ciência – alerta de spoilers à frente

O diretor-roteirista Ben Wheatley quer tematizar a presença de algum tipo de lacuna entre a magia e a ciência. Como já alertavam Adorno e Horkheimer no livro “Dialética do Esclarecimento”, desde o início o mito já era esclarecimento e o esclarecimento (a Razão e a Ciência que pretendem lançar luz sobre os mitos e o obscurantismo) recai no mito. Desde o início, o mito procurava emancipar a humanidade do medo diante das forças da natureza que não podia controlar. Da repetição dos rituais na magia à busca por repetições e padrões na Natureza pela ciência, o princípio seria o mesmo – a expiação do medo diante da Natureza incontrolável.

E no filme In The Earth, expiar o horror cósmico gnóstico e lovecratiano: o cosmos é indiferente a nós porque não pertencemos a esse mundo. A Natureza não quer ser salva por nós porque simplesmente não pertencemos à ordem “natural”.

Wheatley explora justamente a lacuna que se abre entre a magia e a ciência: esse horror cósmico não racionalizável. Seja Zach (Magia) ou Dra. Wendle (Ciência) são meros seres que estão parasitando aquela floresta autônoma e senciente. 

Martin representa a própria humanidade: até é curioso pela magia de Zach e apaixonado pela Dra. Wendle (a Ciência). Mas das piores formas vai percebendo que ambos perderam o controle e enlouqueceram no trabalho de Sísifo de tentar se comunicar com a floresta – seja ela um “espírito” ou uma “rede neural”.

Curioso é o papel da guarda florestal Alma: guia de Martin naquela jornada, ao final ela explicitamente assume o papel de Sophia na mitologia gnóstica – triste pela condição humana nessa prisão cósmica, através da sua sabedoria Sophia tenta guiar a humanidade no caminho de fuga do exílio.

“Eu o guiarei de volta através da floresta”, é a última linha de diálogo de Alma ao ajudar Martin a se erguer no final do filme depois de descer ao fundo da loucura do confronto entre Zach e a Dra. Wendle. Cena emblemática: nem a magia e nem a ciência poderão ajudar a humanidade num planeta que nos expulsa. Somente uma forma de conhecimento especial buscada pelo Gnosticismo seria a rota de fuga para esse horror cósmico: a gnose.


 

Ficha Técnica 

Título: In the Earth

Diretor: Ben Whetley

Roteiro: Bem Whetley

Elenco: Joel Fry, Reece Shearsmith, Ellora Torchia, Hayley Squires, Mark Monero

Produção: Rook Films, Neon

Distribuição:  Universal Pictures International (UPI)

Ano: 2021

País: Reino Unido

 

 

Postagens Relacionadas


O terror interdimensional gnóstico em “Intersect”



“A Casa da Praia”: somos um pequeno ponto dentro de um universo indiferente



Covid exploitation: o Mal e o demasiado humano em “Host” e “Safer at Home”



A luta de classes zumbi em “Corona Zombies”: o primeiro filme baseado no coronavírus