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sexta-feira, julho 30, 2021

Grande mídia transforma Jogos Olímpicos de Tóquio em seminário remoto motivacional



Desde 2019, o baixo astral domina a pauta do jornalismo corporativo com uma sucessão de desgraças: começou com Brumadinho, jovens mortos no incêndio do CT do Flamengo, o massacre de Suzano etc. Para piorar com a pandemia, aprofundando a crise econômica, desemprego e... o esperado incêndio do galpão da Cinemateca, em SP. Essa escalada quase diária praticamente faz apresentadores e repórteres terem que pedir desculpas: “infelizmente, más notícias”. E o esforço hercúleo de encontrar a “boa notícia” na “má notícia”. A cobertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio é a esperança da grande mídia elevar o moral em baixa, na sua política de morde-assopra com o governo Bolsonaro: o jornalismo esportivo deu lugar ao “jornalismo de personagens” – buscar contos maravilhosos de histórias de superação, transformando a cobertura num seminário remoto motivacional com lições de superação para a patuleia desalentada. Soma-se a isso, a mitologia do Japão como lição moral para os preguiçosos e indisciplinados brasileiros. 

Em postagem recente observávamos o esforço hercúleo do telejornalismo da grande mídia em destacar a todo custo as “boas notícias”. Isso porque, desde 2019, a partir da tomada de posse do governo Bolsonaro, o baixo astral passou a dominar a pauta dos acontecimentos: a catástrofe ambiental e humana de Brumadinho, jovens atletas mortos no CT do Flamengo, manchas de óleo massivas destruindo praias no Nordeste, imensos incêndios destruindo o Pantanal, notícias diárias sobre feminicídios, câmeras nas ruas mostrando valentões armados e disparando em prosaicas brigas de trânsito, seguranças matando pobres em supermercados, o massacre em uma escola na cidade de Suzano/SP etc.

Tudo continuado pela crônica crise econômica, o crescimento das estatísticas do desemprego e desalento para tudo ser ainda mais potencializado pela pandemia da Covid-19, os milhares de mortos diante de uma política sanitária e de imunização governamental omissa e a aprofundamento ainda maior da concentração de renda, desindustrialização acelerada e o descontrole inflacionário.

   Nesse tamanho baixo astral, sem as más notícias darem trégua, os telejornais descobriram que, afinal, eles são um dos principais produto televisivos à venda, à procura de patrocinadores – como um produto, ele precisa garantir uma experiência estética agradável ao espectador, atraindo audiência e, em consequência, patrocinadores.

Com tanta pauta negativa ameaçando esse prazer do espectador, nos últimos meses quando são dadas “más notícias” praticamente apresentadores e repórteres têm que pedir desculpas ao espectador: “infelizmente temos que dizer...”. As palavras como “crise” ou “problemas” são substituídas por “desafios”.

Não importa a pauta, seja de Cidades, Economia, Polícia, Polícia etc., parece que agora apresentadores e repórteres foram orientados a forçosamente encontrar “a boa notícia”, alguma brecha promissora ou esperançosa que ajude a diluir tanto baixo astral que vem assolando as notícias diárias.

Aumentaram as estatísticas do desemprego... “Mas a boa notícia é que o Sebrae abriu curso gratuitos de empreendedorismo...” O galpão da Cinemateca pegou fogo em São Paulo com quatro toneladas de acervo... “a boa notícia é que não era o galpão principal do acervo da Cinemateca...”.



Com esse tsunami de notícias negativas prejudicando o prazer estético do espectador (assistir aos telejornais torna-se cada vez mais uma experiência emocional tóxica) a cobertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio surge como uma oportunidade única para diluir a pauta negativa, o baixo astral, para bombar as “boas notícias”.

Tentar elevar o astral, a autoestima e, acima de tudo, tentar motivar os telespectadores a enfrentar os “desafios” do dia seguinte: pegar transporte público lotado, encarar o preço da energia, do botijão de gás e renovar a fé na busca do emprego ou na religião do empreendedorismo.

   Para tanto, a cobertura dos Jogos Olímpicos recorre a duas estratégias semióticas ou scripts já pré-estabelecidos pelos “aquários” das redações:

(a) O jornalismo de personagens que busca “histórias de superação” .

(b) Reforço da mitologia do Japão como “lição moral” para os brasileiros.



Seminário motivacional

Repórter da Globo, Guilherme Pereira, pergunta para o medalhista de ouro no Surf, Ítalo Ferreira: “Quando você para pensar na sua história de onde você vê...”. Italo já estava visivelmente emocionando, tentando controlar as emoções para poder conceder a entrevista.

Então, o repórter disparou essa pergunta emocional para induzir o entrevistado ao choro, lembrando da sua trajetória de vida pobre em Baía Formosa, RN, começando no surf com pranchas emprestadas e até tampas de caixas de isopor do pai, vendedor de peixe.

Ítalo Ferreira cai no choro, evento semiótico para um tipo de jornalismo que não busca acontecimentos, mas personagens: o surfista se tornou mais uma “história de superação”, modelo motivacional e comportamental que deve ser oferecido diariamente aos brasileiros nessas Olimpíadas. Afinal, os tempos são de “desafios” e os brasileiros precisam ser “motivados”.

Repórteres saem em busca de mais personagens, visivelmente orientados para o seguinte procedimento: se o atleta não estiver chorando, induzi-lo com alguma pergunta emotiva sobre a história de vida, dificuldades, superação e assim por diante. O “personagem” tem que estar bem enquadrado, num matador close-up de lágrimas e soluços.




Para o jornalismo esportivo brasileiro, as Olimpíadas deixam de ser um evento esportivo, técnico ou de competição entre estratégias, filosofias e métodos de treinamento. Tornou-se uma caça de personagens com biografias de superação: a medalha de prata de Rebeca de Andrade e sua “história de superação marcado por obstáculos e lesões” (“Rebeca de Andrade, uma medalha de superação” – Globo; Prata de Rebeca de Andrade vem com superação pessoal e redenção do país” – BBC Brasil); o bronze da judoca Mayra Aguiar: com esse “personagem” foi fácil, já estava aos prantos na entrevista e deu todos os ganchos para manchetes: “Tem que superar, superar de novo e de novo. Estou bem emocionada”, disse soluçando.

Mas quando não acontece a “superação” tão aguardada, então houve alguma arbitragem “polêmica” ou “controversa”, como nos casos do judô com Maria Portela e no surf, com o Gabriel Medina.

As reportagens sobre as medalhas são submetidas a um script monofásico, como se assistíssemos a algum tipo de seminário remoto motivacional: não importa saber qual foi a estratégia vitoriosa do atleta, qual foi a sua leitura nos momentos decisivos que o fez tomar a escolha certa no momento decisivo – o que seria interessante do ponto de vista da educação através do esporte. Muito longe disso. A reportagem quer encontrar a motivação que “faz a diferença”, algum impulso indômito que seria natural ao brasileiro: “o brasileiro jamais desiste”...  

O jornalismo de personagens chama isso de “matérias inspiradoras”. É quando o jornalismo abandona o campo das reportagens informativas para entrar no campo da ficção literária. Mais precisamente, na produção de “contos maravilhosos”, no sentido dado ao estruturalista russo Wladimir Propp – “contos de magia” nos quais sempre se parte de um dano ou carência, passando por funções intermediárias (transmissão do objeto mágico, reação etc.) e chegando ao casamento e recompensa.

No baixo astral que domina o País, o desafio para o jornalismo corporativo (parceiro na aposta da agenda neoliberal que esse governo “cavalo de Tróia” implementa secretamente, cuja mídia tenta defender a todo custo) é transformar as más notícias em contos de magia, superação, resiliência, recompensa. 



Japão: lição moral

Toda vez que o Brasil entra em crise econômica, a TV Globo convoca seu correspondente da época em Tóquio para intensificar matérias com edificantes lições morais sobre virtudes que supostamente faltariam para um país como o nosso que nunca dá certo: o modelo de educação mundial, a disciplina, a disposição para o trabalho, abnegação e auto-sacrifício. É a mitologia do “milagre japonês”.

Nos telejornais, principalmente da TV Globo, a exótica terra das animes, cosplayers, hashis e sushis se transforma em “Japão Inc.”, a terra do milagre de um país destruído por bombas nucleares na Segunda Guerra Mundial e que se transformou em potência mundial.

Na Globo as matérias recentes vão desde o tema sobre como o Japão é um modelo de educação mundial - “onde ganham confiança para irem mais longe...”, “que une o moderno e o tradicional, tudo certinho...”. E toma imagens de japoneses perfilados e se curvando a estrangeiros em sinal de boas-vindas “mostrando alegria e respeito”, robôs, tecnologia. “Nada é feito para falhar”, fala um repórter do Sportv.

Esse é o script do seminário remoto motivacional em que se torna, em particular, essas Olimpíadas de Tóquio: o Japão seria tudo aquilo que o Brasil e os brasileiros deveriam ser: unidos, operosos, resilientes, capazes de superar todas as dificuldades sem fazer mi-mi-mi.

Como todo mito, tem os seus pés de barro: o milagre japonês só foi possível com a proteção comercial dos EUA durante a Guerra Fria, propositalmente mantendo o déficit comercial com aquele país; crescimento do desemprego para quebrar o poder de negociação dos sindicatos; sofisticação tecnológica voltada para a descartabilidade dos postos de trabalho; crescimento dos trabalhos temporários, acabando com o mito do “emprego vitalício” e o “espírito familiar” das empresas japonesas. 

Além de uma perversa combinação do moderno capitalismo com valores feudais, resultando em patologias sociais como o suicídio endêmico, morrer de excesso de trabalho (karoshi) e o meiwaku (“incômodo”): por trás da aparente polidez dos japoneses está o temor de causar meiwaku nas pessoas. Levando ao extremo de pessoas morrerem nas suas casas, sozinhas, temendo causar incômodo nas outras pessoas.

Convenhamos: esse é o sonho de qualquer “Chicago boy” ou de um anarcocapitalista, como o midiaticamente incensado (e sempre apartado dos coices de Bolsonaro) ministro Paulo Guedes. 

 

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