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quarta-feira, dezembro 30, 2020

Ano de 2020 foi a temporada mais audaciosa de Black Mirror na retrospectiva '2020 Nunca Mais'


O criador da série “Black Mirror”, Charlie Brooker, tem ouvido uma piada recorrente: de que 2020 foi a temporada mais ousada de Black Mirror. Certamente foi para dar uma resposta a essa piada que Brooker criou a retrospectiva mockumentary “2020 Nunca Mais” (“Death to 2020”), disponível na Netflix. Uma curiosa retrospectiva sobre fatos reais na perspectiva de personagens ficcionais como um jornalista new yorker, um historiador britânico liberal racista enrustido, uma dona de casa suburbana e supremacista, um digital influencer que passou o ano reposicionando o discurso ao estilo Felipe Neto, a Rainha inglesa que chama os telespectadores de “terráqueos”, a dona de casa que esgotou o acervo de séries da Netflix na quarentena, etc. O ano de 2020 realizou de tal maneira quase todos os pesadelos de Black Mirror que Charlie Brooker propôs um jogo ao espectador: uma retrospectiva de fatos reais feita por personagens ficcionais que narra os acontecimentos de cada mês como um episódio de uma temporada de mau gosto. 

Em postagem anterior discutíamos sobre a frustração dos fãs da série Black Mirror com a suspensão da sexta temporada – principalmente nesses tempos de quarentena onde plataformas de streaming tornaram-se a principal forma de entretenimento.

Porém, a frustração transformou-se em preocupação com o próprio fim da série, quando o seu criador, Charlie Brooker, admitir que a crise da pandemia parece a realização no mundo real de muitos episódios de Black Mirror: “tudo soa como algo que já assistimos... não tenho estômago para lidar com histórias sobre sociedades que estão desmoronando”, afirmou resoluto Brooker - clique aqui.

Pois parece que essa perplexidade de Brooker foi um dos motes do mockumentary da Netflix 2020 Nunca Mais (Death to 2020), uma retrospectiva que transforma em inspiração para humor negro o ano que no futuro será reconhecido como um ano tão terrível que qualquer piada feita será considerado algo de mal gosto – assim como tentar fazem humor com o Holocausto.

Escrito por Brooker e sua colaboradora Annabel Jones e dirigido por Al Campbell e Alice Mathias, 2020 Nunca Mais é um documentário fictício que procura olhar para trás no ano através da perspectiva de personagens também fictícios para eventos reais que mais se assemelham a um plot-twist de alguma série Netflix.

Por exemplo, temos Samuel L. Jackson interpretando um jornalista editor do New Yorkerly Times (“uma retrospectiva de 2020? Pra quê diabos vocês querem fazer isso?”, resmunga o “editor” para a equipe de filmagem); Lisa Kudrow interpreta uma porta-voz do governo Trump que está em constante negação do que ela acabou de dizer, a menos que seja sobre quão a mídia está censurando a voz dos conservadores; Kumail Nanjiani aparece como um líder tecnológico do Vale do Silício, ao estilo Elon Musk, que se esconde num bunker (“isolamento social”, afirma) enquanto fatura fortunas com a crise da pandemia explorando uma plataforma semelhante ao Zoom – aliás, em cada episódio catastrófico do ano, ele comenta quanto aquilo o fez enriquecer ainda mais. 



Joe Keery performa um millennial influenciador digital branco que chega a dizer que é negro para ganhar cliques durante os protestos do #BlackLivesMatter – um cara que tentou em todo 2020 reposicionar seu discurso ao sabor dos acontecimentos, assim como faz Felipe Neto aqui no Brasil;

 Hugh Grant faz um historiador fleumático britânico, um típico intelectual liberal que tenta disfarçar com silogismos seus preconceitos e racismo, quase oculto numa maquiagem de velhice; Tracey Ullman interpreta a Rainha Elizabeth que faz humor metalinguístico com a série Netflix The Crown e diz que Joe Biden (o “fantasma camarada”) era seu conhecido desde a sua coroação em 1953 – “e ele já era idoso!”, exclama Sua Majestade...




Christian Milioti faz a típica mãe suburbana (uma “regular soccer mom”), uma dona de casa supremacista branca enrustida que conhece o mundo através dos vídeos do YouTube e pensa que a vacina é uma invenção de Bill Gates para controlar a mente da população com nano robôs. 

Uma “série” com muitos plot twists

Mas a personagem feita por Diane Morgan é ainda melhor como Gemma Nerrick, descrita no mockumentary como “uma das cinco pessoas mais comuns do mundo” que faz a retrospectiva do ano numa perspectiva que se liga à perplexidade de Charlie Brooker de ver 2020 como o ano que trouxe Black Mirror para o mundo real.

Gemma passou a pandemia vendo séries no Netflix até esgotar o acervo da plataforma. Então, decidiu assistir à série “América” disponível nas redes de TV aberta – na verdade, ela se refere à cobertura das eleições nos EUA que, para sua percepção centrada na ficção, é mais uma série como aquelas que assistiu durante a pandemia, “com muitos plot twists”. 

Sua descrição da cobertura jornalística do processo eleitoral é hilária, principalmente como os apresentadores dos telejornais repetidas vezes tentavam explicar o sistema eleitoral norte-americano.

Num mundo em isolamento social, no qual se acirrou ainda mais nossa percepção remota da realidade, através da Internet, redes sociais, videoconferências, lives, TV etc., não para menos que realidade e ficção comecem a se misturar de forma delirante. Como no mockumentary 2020 Nunca Mais – aliás, o próprio gênero “mockumentary” já é uma expressão disso.




Também não é para menos que o negacionismo tornou-se a grande hype de 2020: como separar ficção e realidade, a não ser negando qualquer coisa que cientistas e a mídia falem?

Certamente Charlie Brooker deve ter ouvido a piada de que o ano de 2020 foi a temporada mais audaciosa da série Black Mirror. E essa piada parece repercutir por todo a retrospectiva: cada mês é tratado como um episódio da realista/fictícia série, que começa em janeiro – “É primeiro de janeiro e o mesmo dia nasce, 2020 parece como qualquer ano”.

Desse “Era uma vez”, tudo começo com os catastróficos incêndios na Austrália (“o desastre atingiu 10.000 brancos esperançosos”, como fala ironicamente o narrador negro Laurence Fishburne), o julgamento de impeachment de Trump e o Fórum Econômico Mundial de Davos, “o Coachella para bilionários”.

O texto é corrosivo: “Este ano, para fingir que as mudanças climáticas interessam a eles, colocaram a Greta Thunberg como headliner... ela é uma adolescente que ficou famosa por dizer coisas depressivas... enquanto o prodígio diz obviedades”.



Aqui começamos a entender por que essa criação de Charles Brooker não foi bem recebida pela crítica especializada – na verdade o coro geral é de definir 2020 Nunca Mais como uma “grande e vazia piada sem graça”.

A retrospectiva não poupa ninguém: da menina prodígio e musa dos ambientalistas neoliberais Thunberg ao presidente eleito Joe Biden, o “fantasma amigo” que, tal como a garota sueca, também fala obviedades – enquanto o staf de Biden o cerca de todos os cuidados: toda vez que ele corre, todos ficam preocupados...

Os críticos liberais e bem pensantes não gostaram nada de ver a grande esperança Biden ser ridicularizada no mesmo nível de Trump – aliás, notabilizado pela retrospectiva em trazer “a diversidade” para a Casa Branca com a sua cor “laranja”, depois de presidentes brancos e um negro.

O único momento em que a retrospectiva assume o tom tradicional (realista) de um documentário é sobre os protestos raciais nos EUA com a morte do negro George Floyd em uma abordagem por policiais brancos em Minneapolis em maio. 

Mas, claro, o tom logo é quebrado com o visionário do Vale do Silício em isolamento social em um bunker na Nova Zelândia ver no episódio mais uma oportunidade de vendas: “Hoje as testemunhas têm câmeras nos celulares, então, todo mundo testemunha. E quer saber? Esse deveria ser o slogan para vender iPhones. Foda-se a "tela de megapixels". Que tal escrever ‘expie violência policial’ na caixa?”.

Então, a piada estava correta: 2020 Nunca Mais a temporada mais audaciosa da série Black Mirror.


 

Ficha Técnica 

Título: 2020 Nunca Mais

Criador: Charlie Brooker, Annabel Jones

Roteiro: Charlie Brooker, Annabel Jones

Elenco: Samuel L. Jackson, Hugh Grant, Tracey Ullman, Diane Morgan, Cristin Milioti

Produção: Broke and Bones, Netflix Studios

Distribuição:  Netflix

Ano: 2020

País: EUA

 

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