Pages

domingo, maio 06, 2018

Curta da Semana: "Tennessee" e "Look At Me Only" - estamos confundindo Comunicação com Informação


Dois fantasmas rondam a atual tecnologia de convergência com seus celulares e tablets: o solipsismo e a incomunicabilidade. Uma garota sente-se solitária no seu aniversário porque todos ao seu redor estão imersos em mundos virtuais. E uma garota ciumenta em um restaurante exige a atenção do seu namorado, que prefere prestar atenção ao seu pequeno hamster. Ou será um celular? São as pequenas estórias contadas respectivamente pelos curtas de animação “Tennessee”(2017) e  “Look At Me Only”(2016). Por que as tecnologias atuais produzem incomunicabilidade? Talvez porque estamos confundindo comunicação com informação.

Dois curtas de animações que falam de um mal-estar que ronda a tecnologia de convergência atual com seus dispositivos móveis: o solipsismo e a incomunicabilidade. Paradoxalmente, tecnologias que deveriam ser de comunicação se restringem apenas à transmissão de informações – dados, bits, streamings, fluxos de informações que ao invés de nos abrir para o mundo (comunicação) nos faz imergir em mundos virtuais, ciberespaço, que apenas reforça o que já somos, em um feedback infinito.

O primeiro curta é Tennessee (2017), um trabalho de conclusão de graduação da NYU (New York University) de Jack Wedge. Um curta experimental e estranho. Uma verdadeira cacofonia de ideias visuais, uma bagunça proposital. Certamente para criar o efeito de que num mundo de aplicativos que prometem soluções para qualquer coisa, as relações humanas tornam-se mais caóticas.

Basicamente a narrativa do curta é bem simples: num mundo do futuro uma garota sente-se solitária no dia do seu aniversário. Sente-se isolada porque todos ao seu redor estão imersos em seu próprio mundo virtual – seus irmão, pais e os amigos de trabalho vivem conectados aos seus dispositivos (computadores, óculos 3D, celulares etc.). Tenta encontrar alguém através de um aplicativo de relacionamentos. Mas na verdade, tudo o que procura é um amor através de uma conexão no mundo real.

O segundo curta é japonês, do animador Tomoki Misato: Look At Me Only (2016). Uma curiosa animação em stop motion com bonecos de feltro. Um casal está na mesa de um restaurante. O homem tem um olhar errante e está diante da sua namorada ciumenta. E na mesa, um alegre hamster ou porquinho da índia. E o pet do rapaz que olha ansiosamente para as garotas da mesa ao lado, despertando ciúmes cada vez maiores na sua namorada.


Ela pede insistentemente para que ele olhe unicamente para ela, enquanto tenta mostrar para ele as páginas de uma revista de moda. O curta explora temas comuns como romance e fidelidade, porém trazidos para o campo dos efeitos perniciosos dos dispositivos móveis.

Além de tudo, Look At Me Only nos oferece uma outra visão da estética audiovisual japonesa: acabamos nos acostumando com a estética de animes e mangás. Porém o curta, com seu detalhismo artesanal, nos dá uma estética audiovisual bem alternativa.

Mas o estranho da narrativa  o porquê do rapaz ser tão apegado ao seu hamster, simplesmente ignorando sua namorada que fica cada vez mais nervosa. Ao ponto de, literalmente, transformar-se numa víbora.

Um futuro hipo-utópico


Tennessee é um típico exemplar daquilo que o Cinegnose define como hipo-utopia: o futuro figurado como uma projeção hiperbólica e surreal das mazelas do nosso presente – sobre esse conceito clique aqui.

Se na atualidade os dispositivos tecnológicos nos fazem cada vez mais andar curvados, concentrados em nosso celulares, alheios ao mundo ao redor (muitas vezes mesmo diante da nossa companhia), no mundo futuro até bebês usarão óculos 3D para imergirem nos contos de fadas. Não será mais necessário os pais contarem estórias. A criança já viverá imersa nos mundos de monstros e castelos. Até porque os pais estarão também imersos em seus próprios mundos, sem tempo para os próprios filhos.

A protagonista parece ser a única a resistir: até arrisca a sorte num aplicativo de relacionamentos, mas procura mesmo uma interação com a realidade – vai de bicicleta ao emprego, para encontrar o seus colegas concentrados em insidiosos computadores com telas REM (Rapid Eyes Moviment). Quem sabe, uma forma subliminar corporativa para manter os funcionários engajados e produtivos.


Comunicação e Informação


Em Look At Me Only o enredo nos leva a acreditar que a garota é uma verdadeira bruxa, tão mal humorada que odeia o hamster do namorado. Exige a atenção do namorado e chega até a ficar com ciúmes de um pobre roedor.

Porém, o curta dá uma virada, para compreendermos que o hamster é uma fantástica metáfora do celular que rouba os melhores momentos da relação do casal. Que já viveu dias melhores, mas agora não consegue competir com um dispositivo móvel.

Por que esse fenômeno paradoxal? Tecnologias de comunicação que produzem o oposto, a incomunicabilidade.  Quem sabe, porque confundimos os conceitos de informação e comunicação.

Lá nas origens da teoria matemática da informação criada por Claude Shannon em 1948 (a base do código digital, processamento de dados, computação, criptografia etc.) e da Cibernética de Norbert Wiener  em 1942 (teoria dos sistemas e inteligência artificial) estava bem clara para esses cientistas a diferença entre os dois conceitos.

Para eles, “comunicação” era incerteza, erro, aleatoriedade. Impossível de ser quantificada através de uma linguagem artificial. Ao contrário da “informação”, quantificável, regida pelos princípios da certeza e feedback.

Todos os dispositivos tecnológicos foram criados e se desenvolveram como meios de informação, jamais de comunicação. O objetivo final é a transmissão da informação e o feedback positivo – traduzido midiaticamente pela busca de altos índices de audiência (na mídia de massa) e nos algoritmos das redes sociais e motores de busca que procuram aprender os hábitos, atitudes e escolhas dos usuários.

Até criar os mundos solipsistas atuais, bolhas virtuais que criam um mundo customizado para imersão.

Isso significa que, desde o início, nunca houve alguma coisa chamada de “tecnologia da comunicação”. Na verdade, até aqui, só tivemos tecnologias de transmissão de informações que buscam sempre o feedback positivo.

Talvez apenas no cinema e no teatro ainda exista a possibilidade da comunicação: a possibilidade da surpresa, do aleatório, do erro. De nos confrontarmos com uma realidade que nos desafie, choque, que nos contradiga.

Em outras palavras: enquanto a informação é acumulativa, aditiva, confirmadora de um repertório pré-existente no receptor. Enquanto a comunicação é irruptiva, nos confronta, interfere na forma de ver o mundo e as pessoas, transforma. Cria condições para o surgimento do novo.