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domingo, abril 01, 2018

Curta da Semana: "The Kiosk" - a crítica da vida cotidiana


Um curta que é inspirado da própria experiência de vida da diretora, Anete Melece. “The Kiosk” (2013) é um curta de animação sobre a difícil busca do equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal. E a ainda mais difícil busca da satisfação no trabalho. Com um raro senso de comédia estética e visual, “The Kiosk” nos mostra uma protagonista literalmente presa no seu local de um trabalho alienante, monótono e sem sentido. Um acidente força a protagonista enfrentar uma jornada que transformará sua vida. Ou será que apenas realizou um sonho dirigido pela mídia e o turismo? O curta aborda temas que envolvem a “sociologia do cotidiano” do francês Henri Lefebvre – a “cotidianidade” como um fenômeno das sociedades modernas: de um lado a rotina, tédio e monotonia dos dias de trabalho. E do outro, as fantasias e compensatórias do que foi outrora o “tempo livre”, hoje chamado “lazer”.

Ela trabalhava em um escritório e achava que tinha um emprego decente. Exceto que começou a ter uma crescente sensação de estar presa. Não possuía um emprego, mas o emprego a possuía. Ela não estava mais aprendendo, crescendo, evoluindo. Apenas repetindo as mesmas coisas, todo dia.

Então largou o emprego no escritório e decidiu fazer algo criativo: um curso de animação na Universidade de Ciências e Artes Aplicadas de Lucerna, Suiça. E no seu trabalho de conclusão de curso, resolveu fazer um filme inspirado nessa própria experiência pessoal: a fuga do trabalho alienante e a busca de uma atividade criativa e gratificante.

O resultado é o curta de animação The Kiosk (2013). E a autora é Anete Melece. O curta é uma divertida comédia visual com personagens propositalmente estereotipados, como o fumante compulsivo ou a mulher com o coração partido. Todos passam pelo quiosque de Olga, uma mulher gorda que trabalha e vive no próprio trabalho por conta própria.

Olga literalmente está presa ao seu emprego: pela sua compleição física, ela não consegue mais sair mais do quiosque. Trabalha, vive e dorme ali, vendendo revistas, jornais, cigarros, doces e salgadinhos. Enquanto sonha com uma vida diferente, longe dali, em praias paradisíacas. Bem diferente daquele quiosque encravado numa rua barulhenta e movimentada de uma grande cidade.

Descobre nas revistas lindas fotos de praias e lugares distantes. As recorta e cola nas paredes internas do quiosque. Apenas para ficar olhando para elas, sonhando, enquanto espera o sono chegar. Para acordar e ter mais um dia de trabalho repetitivo e entediante.

Até que um acidente irá força-la a fazer uma jornada e explorar novos caminhos.


Mas o detalhe é que se a autora conseguiu romper totalmente com o seu antigo emprego no escritório para buscar algo radicalmente novo e criativo, seu alter ego Olga parece que não teve a mesma sorte: seu trabalho continuou “grudado” nela, mesmo ao final da jornada forçada que a conduziu ao lugar das imagens paradisíacas com as quais tanto sonhava.

Um desfecho ambíguo: Olga não vê mais fumantes inveterados e mulheres mal amadas, mas agora famílias felizes na praia diante de um mar azul. E agora não vende mais revistas e jornais, mas sorvetes. Mas, mesmo assim, continua presa no velho quiosque.

Quem é o protagonista no curta: Olga ou o quiosque?


A sociologia do cotidiano


Os temas levantados pelo The Kiosk lembram bastante a obra A Vida Cotidiana no Mundo Moderno do sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991) e a sua discussão sobre a deterioração do trabalho em atividades alienantes e repetitivas e a precarização do tempo livre, transformado em lazer passivo e compensatório.

Do ponto de vista de Lefebvre, o “cotidiano” é um fenômeno histórico novo, típico das sociedades modernas. Nas sociedades tradicionais como as aldeias camponesas e na Roma Antiga dominava um estilo de vida unitário que se contrapunham a dias de exceção às regras como as Festas profanas.

Nessas sociedades antigas o dia-a-dia estava envolvido com grandes ciclos (estações do ano e ciclos de plantação e colheita) e grandes sistemas (religiosos, míticos etc.). E os dias de Festas eram verdadeiros momentos de quebra ou suspensão desses sistemas: dias do domínio do profano.


Para o sociólogo francês a cotidianidade surge com o trabalho mecanizado, repetitivo, especializado e burocrático. Principalmente com a expansão dos setores de serviços na sociedade de consumo – trabalhos precarizados, subempregos. Lefebvre chama de “sociedade burocrática de consumo dirigido”.

Num tipo de trabalho repetitivo e fragmentado, nos sentimos inautênticos, alienados, à espera do final de semana ou de um feriado prolongado nos quais nos sentimos livres e com o tempo em nossas mãos. Porém, tudo o que conseguimos é um lazer passivo e compensatório.

Transformado em lazer, o nosso tempo livre nem sequer é uma sombra das antigas festas profanas do passado: aos invés da quebra da ordem e inversão dos papéis e hierarquias, o lazer se torna uma extensão da racionalidade do trabalho cotidiano – seja pela passividade como forma de recuperar energias psíquicas e físicas para a segunda-feira (ou a embriaguez como forma de anestesia e esquecimento); seja pelas formas de lazer que cultivam valores e disposições que serão resgatados no trabalho: praticas esportivas que cultivam valores da performance, eficácia, eficiência, foco e engajamento. Praticamente exercícios de simulação das práticas exigidas no mundo do trabalho.

Mas o que se impõe é a cotidianidade, como rotina e monotonia, quebrados por momentos de devaneios – fantasias escapistas como a da simpática protagonista Olga (praias paradisíacas das fotos e cartões postais) ou o sonho de ganhar na loteria para fugir do cotidiano para conseguir retomar o próprio tempo.

O que marca o curta The Kiosk é o desfecho irônico que lembra a crítica de Henri Lefebvre à ilusão de autossuficiência do sujeito que a sociedade de consumo e a mídia vendem ao sujeito para suportar o cotidiano: após a jornada forçada dentro do seu quiosque, finalmente Olga chega àquela paisagem praiana que tanto sonhava. Porém, ainda entalada no quiosque, quer dizer, ainda presa ao seu próprio trabalho.  

O própria fantasia de Olga é aquilo que o sociólogo francês definia como “consumo dirigido”: o consumo, o lazer e o outrora tempo livre agora dirigidos por sistemas simbólicos, como o sistema da moda, turismo e mídia -  os sonhos de Olga para escapar da sua rotina sem sentido, obesa e entalada em um quiosque, foram moldados por revistas de moda e turismo.

Realizado o sonho, Olga apenas trocou o mercado de produtos: de banca de revistas e jornais, migrou para venda de sorvetes e guloseimas para banhistas.



Ficha Técnica 

Título:  The Kiosk
Diretor: Anete Melece
Roteiro: Anete Melece
Elenco:  Anette Herbst, Hans Huchti (vozes)
Produção: Lucerne University of Applied Sciences and Arts
Distribuição: Vimeo
Ano: 2013
País: Suiça


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