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domingo, dezembro 03, 2017

Em "Cosmodrama" Ciência, Religião e Filosofia travam duelo sem rumo


Sete astronautas, acompanhados por um cachorro e um chipanzé, acordam em uma espaçonave depois de saírem do estado de criogênico. Nenhum deles sabe o que está fazendo ali ou qual o destino final da viagem. Aparentemente a nave (um mix vintage da “Discovery” de “2001” e a “Enterprise” da série de TV “Star Trek”) está programada para funcionar automaticamente. Eles apenas terão que confiar na própria capacidade de observação para especular o propósito de tudo aquilo. Logo descobrirão que cada um é especialista em um área do conhecimento: Psicologia, Astronomia, Semiótica, Jornalismo, Filosofia, Biologia e Genética. Esse é o filme francês “Cosmodrama” (2015) de Phillipe Fernandez. Com delicadeza e humor, através de gags e situações absurdas, introduz o espectador às grandes especulações cosmológicas sobre o início e o fim do Universo: o Big Bang, a Eternidade, o design inteligente e o universo holográfico. Ciência, Religião e Filosofia duelam entre si para entender o propósito da existência. Porém, o mistério maior permanece: mas afinal, o quê é aquela espaçonave? Com a colaboração do nosso infalível leitor Felipe Resende.

A ficção científica nunca criou raízes no cinema francês, embora tenha nascido naquele país pelas mãos do cineasta Georges Méliès com o seminal Viagem à Lua, de 1902. Por isso, quando o cinema francês se aventura nesse gênero, podemos sempre esperar narrativas híbridas que envolvem ironia, profundas reflexões filosóficas e desconstruções dos cânones.

Só para ficar em alguns exemplos: o curta Charleston Parade (1927 – clique aqui) de Jean Renoir, Alphaville (1965) de Jean-Luc Goddard, O Quinto Elemento (1997) de Luc Besson ou Evolution (2015, clique aqui) de Lucile Hadzihalilovic.

Cosmodrama (2015), segundo filme do gaulês Phillipe Fernandez, cineasta e também professor e artista da Escola de Belas Artes de Bordeaux, é mais um exemplo das abordagens peculiares que o cinema francês faz aos temas da ficção científica. São quase duas horas de uma narrativa inteira em uma nave espacial através de uma série de gags e situações absurdas que suscitam uma série de discussões existenciais, filosóficas, ontológicas, místicas e religiosas.

Mas sempre pelo viés da desconstrução, da espiral de interpretações relativísticas. Tudo com delicadeza e humor na qual, apesar das intensas linhas de diálogos, torna Cosmodrama um filme leve e agradável mesmo com uma temática tão metafísica.

Aliás, Cosmodrama é definido pela crítica como “a metafísica levada ao espaço” com baixo orçamento. Mas compensado com uma direção de arte inventiva que emula 2001 de Kubrick com a inventividade de roteiro da série clássica Star Trek – e de quebra, a fluência discursiva de filmes de Tarkovsky como Solaris (1972) ou Stalker (1979).


Cosmodrama emula a estética de filmes modernistas sci-fi como 2001 ou Star Trek. Filmes modernistas do gênero eram dotados de futurismo, utopia, tom épico (“indo onde nenhum homem jamais esteve”) e de uma visão cósmica de que o Universo é um espaço a ser desbravado e descoberto pelo homem.

Mas a ironia do sci-fi francês é de que alusão aos filmes modernistas fica apenas na estética vintage e nos efeitos especiais propositalmente datados nos anos 1970. Na verdade, Cosmodrama é pós-moderno: um grupo de astronautas acorda do sono criogênico em uma nave errante, sem saber como vieram parar ali, qual o propósito da missão, o destino final da nave e quem os despertou da criopreservação. As inumeráveis galáxias, estrelas e nebulosas são apenas objetos vistos através das janelas da nave. E os astronautas nada têm de heroísmo, coragem ou determinação – estão confusos, cheios de dúvidas sobre o Universo e sobre si mesmos.

Microcosmo gnóstico


Mas também Cosmodrama tem um irresistível appeal gnóstico: a nave é uma espécie de microcosmo do drama humano de ser prisioneiro de uma jornada (ou existência) da qual nada sabe sobre o seu propósito ou sentido – quem o colocou ali, por que foi acordado (ou por que nasceu?) e para onde todos irão no final da jornada.

Como um bom professor e intelectual, o diretor Phillipe Fernandez mostra o quanto são vazias e estéreis as discussões sobre os modelos cosmológicos (Big Bang, natureza da matéria escura, modelos holográficos do universo como produto da mente humana etc.) quando na verdade são incapazes de questionar uma simples questão ontológica: o que é a nave na qual todos estão presos?


Em outras palavras: enquanto todos os astronautas, nas suas mais diferentes especialidades, tentam compreender a natureza micro e macrocósmica daquelas imagens que veem através da janelas e escotilhas, simplesmente acabam se esquecendo de uma simples questão ontológica: mas, afinal, por que estão naquela nave? E, mais importante: quem os colocou naquela jornada?

O Filme


Cosmodrama começa com a iconografia básica dos sci fi dos anos 1970: uma porta assepticamente branca se desloca com o tradicional som “swoooossshhhh”, abrindo, para sair um turbilhão de névoa branca e saindo da câmara criogênica um homem (Bernard Blancan) confuso, cambaleante e em estado de amnésia.

Ele encontra com seis outros membros pelos corredores da espaçonave na mesma situação de confusão mental. Não sabem onde estão e de onde vieram. E deverão confiar unicamente nas suas observações para especular teorias sobre os motivos e propósitos de tudo ao redor.

Surpresos, veem o que seria um membro da tripulação cruzando os corredores com um carrinho elétrico. Ele avisa a todos para uma reunião em um dos cômodos da nave. Aliás, apesar do visível baixo orçamento, as soluções de arte são ótimas, lembrando um mix da Discovery de 2001, a nave de Solaris e a Enterprise de Star Trek.

Logo descobrem que há também um chipanzé simpático e bem comunicativo, e um alegre cachorro.

Apesar da amnésia, cada um deles percebe que tem um expertise específico, e que os dispositivos e laboratórios da nave são ferramentas para exercerem seus conhecimentos: um astrônomo, um repórter de TV, uma semióloga (afinal, o filme é francês...), uma bióloga e geneticista, um psicólogo e filósofo – sempre o responsável pelo ceticismo radical de todas as teorias que cada um propõe durante todo o filme.


Logo o astrônomo anuncia a primeira descoberta: a maior parte do Universo é composta por matéria escura e expande-se como um balão. Mas será que um dia tudo explodirá? Se o cosmos teve um início (o Big Bang, a explosão da matéria comprimida no espaço de uma noz), também necessariamente terá um fim? E depois?

O repórter entrevista o astrônomo e produz um documentário, que é ridicularizado pelo filósofo, que insiste na procura de um “programa” ou “inteligência” por trás da criação.

Big Bang, a eternidade e o design inteligente


Enquanto isso, a bióloga preocupa-se com a escala micro da matéria viva, tentando compreender o momento em que a matéria tornou-se consciente. É claro que o comunicativo macaco será a cobaia para experimentos sobre inteligência animal. Até procurar entender em que ponto da evolução apareceu a consciência humana.

Três modelos explicativos entram no debate: o Big Bang, a hipótese da eternidade (o cosmos nunca teve um início e sempre existiu) e da existência de um “design” inteligente na “criação”.

Mas a bióloga trata de esvaziar o conceito de “inteligência” a partir da observação de micro-organismos: inteligência é capacidade de adaptação ao meio ambiente. O resultado final pode parecer algum tipo de “design” elaborado... Mas tudo é questão de adaptação ao meio para sobreviver.


Enquanto isso o ceticismo do filósofo fica cada vez mais radical: e se o Universo for apenas um produto da mente humana?

Todos os intensos debates científicos e existenciais são pontuados por três programas de lazer na espaçonave: álcool, um grande saco de areia de box para todos esmurrarem e canalizar raiva e frustração, música e dança num bar lounge com vista panorâmica para o cosmos.

A trilha musical é primorosa, com sintetizadores que lembram alguma coisa entre Kraftwerk e o rock progressivo de Rick Wakeman dos anos 1970.

Ciência, mídia e religião


A espaçonave é um explícito microcosmo da existência humana: temos a Ciência, a mídia que procura traduzir as descobertas científicas para os “leigos” de outras especialidades e religião e misticismo: uma estranha transmissão de vídeo vinda do espaço chega aos monitores de TV: imagens de uma misteriosa mulher (a chamada “femme des ondes”) dizendo mensagens enigmáticas.


Com humor Cosmodrama apresenta uma flagrante questão epistemológica, à qual os personagens não estão atentos: o tempo inteiro os especialista da nave tentam ajustar as observações empíricas aos seus modelos teóricos. Parece que o modelo de simulação antecede a própria realidade. Como uma camisa de força à qual tudo deve ser ajustado.

Numa analogia à alegoria da Caverna de Platão, é como se todo o tempo montassem modelos teóricos sobre as sombras da caverna, ignorando a realidade exterior. Portanto, ponto para o filósofo cético.

Porém, o mais flagrante no filme é como os especialistas, tão absorvidos pelos seus modelos teóricos, acabam ignorando uma questão ontológica principal: mas afinal, o que é aquela espaçonave? Há um membro da tripulação (uma espécie de “zelador”) preocupado com a manutenção da nave. Ele até fala em “hierarquia”, como se tivesse um gerente ou um superior a quem tivesse que prestar contas. 

E no auge de todas as especulações científicas, religiosas e místicas, no final ouvem uma mensagem do sistema de som da espaçonave de que devem retornar às câmaras criogênicas. Sem questionarem, simplesmente lamentam. “Logo agora que estava ficando divertido!...”, diz o astrônomo, preocupado com a incompletude das suas pesquisas.


Reencarnação e esquecimento – alerta de spoilers à frente


É uma clara alusão à morte que muitas vezes abrevia projetos e sonhos. E o posterior despertar do estado criogênico, uma evidente metáfora da reencarnação. Mas principalmente, a morte/reencarnação como esquecimento: todos os vídeos gravados das reportagens sobre os relatos científicos dos especialistas parecem que são apagados – no início de Cosmodrama, vemos o repórter encontrando vídeos-cassetes supostamente virgens. Ou foram apagados de um despertar anterior.

Mas, mesmo assim, apesar das intensas discussões sobre sentido e propósito do cosmos e da vida, simplesmente ignoram a natureza da própria espaçonave em que estão prisioneiros. E principalmente essa questão do esquecimento: parecem que sempre os passageiros são obrigados a recomeçar do zero.

Por isso Cosmodrama parece ser uma alusão gnóstica e invertida da Caverna de Platão: se para o pensador grego o homem tomava as sombras como a própria realidade existente fora da caverna, em Cosmodrama todos os especialistas e suas especulações (científicas, religiosas e filosóficas) são voltadas para o exterior, para aquilo que olham através das janelas e microscópios. E esquecem de olhar para a própria caverna dentro da qual são prisioneiros. 

Ficha Técnica 

Título: Cosmodrama
Diretor: Phillipe Fernandez
Roteiro: Philipe Fernandez
Elenco:  Jackie Berroyer, Bernard Blancan, Emilia Derou-Bernal, Ortès Holz, Serge Larivière, Sascha Ley, Emmanuel Moynot, Stefanie Schüler
Produção: Atopic Films, Lugo Prod
Distribuição: La Vingt-Cinquième Heure
Ano: 2015
País: França

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