Pages

segunda-feira, novembro 27, 2017

Curta da Semana: "Happiness" - quando a felicidade vira ideologia


Como pode ser prometida a felicidade numa sociedade de competição generalizada? Uma competição tão naturalizada e entranhada cuja narrativa teria seu início na seminal corrida dos espermatozoides na reprodução humana. A felicidade somente seria possível no plano da ideologia: a felicidade individual às custas da infelicidade da maioria. Esse é o tema do curta de animação “Happiness” (2017) do britânico Steve Cutts: ratazanas antropomorfizadas correm frenéticas em metrôs, ruas, calçadas e shoppings lotados, lutando entre si pela posse de mercadorias em uma Black Friday selvagem. E todos cercados por centenas de peças publicitárias que prometem felicidade com a compra de qualquer coisa. Quanto maior a infelicidade que a competição provoca, mais valorizada é a mercadoria “felicidade” no mercado. A sátira social do curta “Happiness” questiona o modelo de felicidade prometido, com ácida ironia.

Recentemente analisado nesse Cinegnose, no filme Stalker (1979) de Andrei Tarkovsky (clique aqui) temos uma sequência na qual os protagonistas, ao chegarem no “Quarto”, local em que supostamente realizaria desejos de todos que ali chegassem, discutem o conceito de felicidade. Questionam o “stalker”, o guia que os levou até ali, quantos desejos realizados pelo Quarto aumentaram o número de crimes, golpes de Estado, máfia, superbactérias e toda a imundície oculta no mundo – dinheiro, conquista de mulheres, vinganças...

 Seria toda a felicidade realizada às custas da infelicidade alheia? O stalker defende seu trabalho de guia das pessoas que buscam a realização dos desejos, afirmando que ali apenas entram os “bons”: a sociedade justa, a realização do reino de Deus na Terra. Ao que o interlocutor responde: “Isso não é felicidade, é ideologia!”.

O curta de animação Happiness (2017), do britânico Steve Cutts (“Are You Lost in the World Like Me”, vídeo-clip criado para DJ Moby – já analisado pelo Cinegnose: clique aqui), coloca em questão esse conceito de felicidade na atual sociedade de consumo baseada na competição e nos modelos de conquistas oferecidos pela Publicidade. E principalmente como numa sociedade construída sobre a ideia de competição generalizada, os modelos de felicidade somente podem realizar-se como ideologia.

Em termos de retórica visual, todo o argumento do curta é inspirado na analogia de homens com ratos: vagões de metrôs, calçadas e locais de trabalho apinhados de ratos antropomorfizados, correndo e lutando em ritmo frenético, cada um por si.


E tudo emoldurado por mídias publicitárias (outdoors, cartazes, TV etc.) mostrando modelos de ratos felizes e vitoriosos oferecendo produtos e serviços – mercadorias que ou foram conquistadas após a vitória na corrida pela felicidade, ou que, ao serem compradas, ajudaram a conquistar a vitória e a felicidade.

Pode parecer batida ou clichê essa analogia de homens com ratos – afinal, os nazistas já usavam esse dispositivo retórico na propaganda contra judeus.

Mas em Happiness a função é completamente diferente, lembrando o clássico dispositivo semiológico que Roland Barthes chamava de “método de comutação”:  encontrar em um texto ou imagem a menor unidade de significação, procurando alterar um signo por outro. Até encontrar a mudança de significado. Se o tema é a sociedade competitiva humana, troque a menor unidade (homem) por outro signo (rato) e teremos uma interessante relação de estranhamento e distanciamento dos espectadores. Distanciamento necessário para refletirmos sobre o tema.

A falta de identificação e projeção com ratos se espremendo no metro lotado, nos força o estranhamento e dissonância necessários para uma abordagem mais intelectual e fria.


O Curta


Ao som de “Habanera” da opera “Carmen” de Georges Bizet, Happiness inicia com outra curiosa analogia mas que revela o quão profundo é o alcance do paradigma da competição generalizada: vemos um rato andando cada vez mais rápido sob um fundo branco, até alcançar outros ratos em um espécie de corrida. As longas caldas e o movimento frenético lembra bastante a corrida de espermatozoides para o óvulo.

Essa imagem é simbólica: a sociedade legitima a competição, entre outras coisas, através dessa interpretação da reprodução humana como resultado de uma competição biológica de milhões de espermatozoides. A analogia ideológica é clara: a competição já está encrava na Natureza, é a razão da própria vida.

Isso chama-se “darwinismo social”, aqui ironicamente representado nessa primeira sequência do curta.

Vemos estações de metros, calçadas, corredores, escadarias, ruas apinhadas de ratos numa corrida frenética, todos cercados pelas mais diversas peças publicitárias: cada uma prometendo “Felicidade” com um produto diferente – refrigerante, academia de ginástica, roupas, bebidas, luminoso de um filme no cinema chamado “Felicidade” etc.

Para todos desembocarem em uma Black Friday, numa disputa selvagem pelos produtos em promoção. Até pularem pedaços de corpos que voam junto com smartphones e caixas de produtos diversos.

Nosso rato protagonista sobrevive à Black Friday todo machucado e cansado arrastando uma HD TV. Mas seu animo é renovado ao pular para dentro de uma Ferrari vermelha e sai dirigindo velozmente... até parar no próximo congestionamento interminável. 


Parado no engarrafamento toma um multa, ladrões roubam os pneus da sua Ferrari, o carro é pichado. Estressado e cansado de tudo, vê outdoors de bebibas alccólicas que prometem mais felicidade – “Beba, esqueça, sorria!”, promete a cerveja “Felicidade”; “Beba e mande a tristeza embora!”, anuncia a marca de uísque “Felicidade”; e a vodka “Absolute Happiness” prometendo a “pura felicidade”.

O nosso herói enche a cara até desmaiar para mais tarde tomar a prescrição médica: “Cápsulas de Felicidade”, para se transformar numa versão caricata de um rato feliz ao estilo Mickey Mouse.

Uma nota de dólar perdida na rua será a isca para atrair o nosso infeliz protagonista a uma ratoeira: o emprego infeliz e sem sentido.

A ética da felicidade como equivalente geral


Felicidade, esse substantivo feminino que se tornou o equivalente geral da retórica publicitária (no consumo qualquer coisa pode ser o suporte para esse suposto “estado durável de plenitude”), está condenado a se realizar na sociedade competitiva apenas como ideologia – como alerta os protagonistas do filme Stalker, uma “felicidade” às custas da infelicidade da maioria deixada para trás.


Se na filosofia grega da antiguidade a “felicidade” era um conceito ligada à ética (a estreita relação entre a virtude de caráter, a felicidade e a importância dos bens externos como a saúde, a riqueza e a beleza), na sociedade de consumo apenas os bens externos foram considerados e a virtude de caráter esquecida. Afinal, numa sociedade de competição generalizada espera-se dos vencedores menos virtude e muito mais capacidade de adaptação a cada contexto que muda no jogo. Muito mais flexibilidade do que uma rígida coluna vertebral – o que torna a ética uma noção relativa a cada mudança de cenário.

O que o animador britânico espera ao substituir seres humanos por ratos que competem no jogo da felicidade, é produzir em nós estranhamento e distanciamento. Na atual ideologia da meritocracia e empreendedorismo, essa noção de felicidade individual às custas da infelicidade generalizada parece natural – é assim desde os espermatozoides...

Ver ratos antropomorfizados lutando numa Black Friday e perseguindo uma nota de dólar até cair na ratoeira do trabalho sem sentido é a irônica estratégia de  Steve Cutts: se a sociedade é naturalizada como darwinista social, nada melhor do que colocar ratazanas no lugar de seres humanos para que nós, humanos, fiquemos horrorizados de nos vermos como animais de volta à Natureza.