Cinema Secreto: Cinegnose: A incerteza do detetive gnóstico e pós-moderno na série 'Gente Ansiosa'

Conan Doyle e Agatha Christie criaram os detetives arquetípicos da Modernidade: Sherlock Holmes e Hercule Poirot: embora conhecedores da natureza humana, tratam a investigação como uma ciência exata - lógica e raciocínio. Porém, a descoberta do princípio quântico da incerteza do observador, mais do que uma descoberta da Física, impactou a cultura do século XX. E, principalmente, a figura literária do Detetive: a tentativa de solucionar um enigma sempre se volta para ele mesmo. O Detetive sempre será também uma peça do mistério que tenta solucionar. A série Netflix sueca de humor negro “Gente Ansiosa” (Folk Med Ångest, 2021) é mais um exemplo desse Detetive pós-moderno e gnóstico, cuja solução de um enigma (um assalto frustrado que terminou com reféns improváveis) passa pela compreensão de uma ferida psíquica da juventude de um obsessivo investigador da polícia.

Tanto Sherlock Holmes e Hercule Poirot, respectivamente personagens fictícios dos escritores Conan Doyle e Agatha Christie, são os detetives arquetípicos do romance policial: são grandes fãs da ordem e do método. Para eles, a investigação deve ser tratada como uma ciência exata, portanto, tratada de forma fria, sem emoção. Dirigida unicamente pelo raciocínio analítico, o método dedutivo e as habilidades intelectuais.

Embora Poirot se utilize do seu grande conhecimento da psicologia humana, no final o apego ao método e à racionalidade fazem o detetive resolver qualquer mistério. Ao lado do cientista, o detetive era a quintessência da Modernidade – não só por ser o protagonista do romance policial e de suspense (gêneros diretamente relacionados com o nascimento das sociedades das multidões criadas pela Revolução Industrial) mas principalmente por encarnar a racionalidade, a objetividade e a imparcialidade de um investigador que vê a realidade como um livro aberto pronto para ser decodificado, revelando a sua verdade.

Mas o princípio quântico da incerteza de Werner Heisenberg (1901-1976) veio abalar essa certeza, constituindo-se numa das descobertas cujas consequências foram muito além do campo da Física, impactando a cultura.

Heisenberg trouxe o princípio da incerteza como a dúvida radical do pesquisador: não podemos observar uma coisa sem influenciá-la - quando se tenta estudar a posição de uma partícula subatômica, a tentativa da medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula.

Esse princípio quântico da incerteza está lá no gênero fílmico noir, na construção seminal do novo personagem do Detetive nos thrillers policiais de mistério do século XX - embora ele tente manter a racionalidade, objetividade e imparcialidade da investigação, sempre ao final acaba descobrindo que ele próprio é uma peça do mistério que precisa ser solucionado. Sempre há algo que o arrasta para alguma coisa deixada solta em seu próprio passado. O Detetive faz parte do próprio objeto que tenta investigar.

A pequena série sueca de comédia de humor negro Gente Ansiosa (Folk Med Ångest, 2021, com apenas seis episódios), dirigido por Felix Herngren e adaptado de romance homônimo de Fredrick Backman, é mais um exemplo do impacto desse Princípio da Incerteza no herói modernista que representava o Detetive – ele até tenta se apegar à racionalidade do método combinado com algum conhecimento da natureza humana. Porém, sempre descobre que a natureza humana se confunde com as aparências e o método é sempre uma ilusão: no final, o enigma que o detetive deve resolver envolve ele próprio.

Os romances de Fredrick Backman são conhecidos pela capacidade do autor entrelaçar eventos e incidentes: um cosmos tão entrelaçado da qual nem o detetive consegue escapar.

Gente Ansiosa explora conexões improváveis entre oito personagens que estão visitando um apartamento à venda e involuntariamente se envolvem com um assaltante de banco desajeitado em fuga que, sem alternativa, toma a todos de refém. Tudo se passa numa pequena cidade próxima da capital Estocolmo e a polícia local, não acostumada com esse tipo de crime, é tão desajeitada quanto o ladrão para resolver o problema.

Uma dupla também improvável de policiais (um pai de coração mole e um filho mais preocupado com o corte de cabelo) tenta dar conta do caso e depois fazer as investigações para tentar descobrir quem era o misterioso assaltante de bancos.

A tragicômica situação do policial investigador tem como pano de fundo a tragédia da exclusão sócio-econômica europeia desde o crash de 2008: dificuldades do cidadão comum conseguir empréstimos das instituições financeiras e os altos preços do mercado imobiliário. Cujo drama será o pano de fundo de Gente Ansiosa.

O Filme

Por que “gente ansiosa”? Porque as ansiedades e os pequenos dramas de cada um dos reféns daquele apartamento à venda vão criar situações tragicômicas e todo um conjunto de aparências que vai dificultar as investigações do protagonista promovido repentinamente à condição de detetive.

Porém, em vez de transformar essas sensibilidades em risos (transformando-as em uma piada), o roteiro as usa por meio de situações orgânicas. Os constrangimentos que surgem em nosso dia a dia devido às inibições (aquelas que nem sempre são reais, mas demônios imaginários em nossas mentes) são desenvolvidos no roteiro com simplicidade e naturalismo.

A série abre de forma impactante: um jovem Jack experimenta um acontecimento que marcará toda a sua vida – flagra alguém que vai pular de uma ponte. Antes de se matar, pede para o jovem entregar uma carta para a gerente de um banco que recusou o seu pedido de empréstimo.

Corta para o presente, quando vemos Jack adulto (Alfred Svensson) como policial numa barbearia preocupado com o corte de cabelo que usará para as festas de final de ano. Junto com o seu pai Jim (Dan Ekborg), um policial veterano, discute se aceitarão Julia de volta à família – ela é viciada em drogas e sofreu uma recente overdose. Coração mole, Jim quer recebê-la de volta, enquanto Jack não aceita. A não ser sob rígidas condições.

Nesse meio tempo, está ocorrendo o caos nas ruas da pequena cidade: um ladrão com o rosto ocultado por uma bataclava corre pela rua após um assalto frustrado em um banco. Na fuga, invade um apartamento em exposição à venda e pega todos os visitantes de refém.

Sem terem experiência em negociações desse tipo, Jack e Jim chamam a Swat de Estocolmo, enquanto o sequestrador faz uma bizarra exigência: quer pizzas para os reféns e queima de fogos no céu. Então, libertará todos.

Logicamente Jim cumpre as exigências e os reféns são libertados. Quando a Swat chega, sobe as escadarias do prédio e não consegue mais achar o ladrão: ele parece que desapareceu no ar!

Bem diferente do pai, Jack é razoável e lógico e toma a investigação como uma implacável questão pessoal. Ele terá que montar um quebra-cabeças de personagens excêntricos e dominados por medos, frustrações e ansiedades: o velho casal Anna-Lena (Marika Lagercrantz) e Roger (Leif Andree), uma bancária ansiosa Zarah (Anna Grannath), uma excêntrica Estelle (Lottie Ejebrant), Lennart (Per Andersson) que está em uma fantasia de coelho bondage , a grávida Julia (Carla Sehn) e sua esposa Ro (Petrina Solange) e uma corretora imobiliária falida Maria Oredsson; todos presos com o ladrão segurando uma arma.

Anna Lena e Roger são parceiros há muito tempo: juntos, tentam baixar os preços das casas para poderem comprá-las e revenderem por valor maior. O relacionamento deles fica estressado quando Roger descobre que Anna Lena está pagando Lennart fantasiado de coelho para cumprir sua missão de fazer o preço do apartamento cair.

Zarah é assombrada pela carta que recebeu do suicida da cena que abre a série, temendo ser ela a culpada pelo suicídio.

Julia e Ro têm um bebê a caminho. Após ser questionado sobre o ladrão, Ro desaparece. Julia acha que Ro pode ter sido infiel a ela, enquanto Jack se pergunta se Ro pode realmente ter laços com o ladrão.

Quando questionadas, Estelle e Maria enfatizam que não sabem nada sobre o ladrão, mas parecem ter motivos para tentar roubar um banco.

O Detetive pós-moderno e gnóstico – alerta de spoilers à frente

Enquanto isso, o pai Jim inexplicavelmente apaga as imagens da câmera de segurança onde o ladrão pode ser visto no banco pedindo dinheiro com uma arma. Jack suspeita de todos os que foram mantidos como reféns. Poderá resolver esse quebra-cabeça maluco formado por peças tão excêntricas?

Jack vivencia o drama do detetive pós-moderno (e existencialmente, o drama gnóstico humano): ele tenta se apegar à lógica e ao método como um bom investigador modernista, inspirado nas ciências exatas como um Sherlock Holmes. Tenta deduzir motivações e comportamentos dos suspeitos a partir da psicologia humana. Mas tudo que recebe são aparências, máscaras que escondem ansiedade, medo e muitos problemas de auto-estima.

“Não devemos acreditar nas aparências”, fala a certa altura Estelle, dando o mote do argumento da série.

O pano de fundo de Gente Ansiosa (a crise sócio-econômica europeia do custo de vida caro e excludente pós-crash 2008) será o grande motivador do crime frustrado, fazendo o detetive Jack conectar-se com a ferida psíquica da cena que abre a série – a cena traumática do suicídio de um desconhecido.

Mais do que solucionar o mistério do assalto frustrado ao banco, o que o detetive Jack aprenderá é a importância das emoções e das conexões humanas. Diferente do Detetive clássico e herói da Modernidade com sua lógica e intelecto, o Detetive pós-moderno e gnóstico descobre que a solução do mistério envolve a própria compreensão da sua ferida psíquica.

Afinal, compreender as motivações do assalto ao banco frustrado, o porquê do seu pai tentar acobertar a identidade do assaltante, a necessidade de aceitar o retorno ao lar da sua irmã problemática e o trauma da cena do suicídio estão conectados.

Abraçar a sua irmã e compreender a tentativa de assalto diante do cenário de exclusão e desigualdade europeia pós-2008 envolverá a conquista de dois sentimentos que Jack ainda não possui, pela ambição do começo de uma carreira policial: empatia e compaixão.