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domingo, julho 21, 2019

Do Estado Mínimo ao Estado Líquido: bullying midiático "pilha" as esquerdas


Não existe fome no Brasil? Vai acabar com a Ancine ou criar “filtros culturais”? Fritar hambúrgueres é credencial para ser embaixador? Como ficaram as multas de motoristas que trafegam sem cadeiras infantis? E os radares móveis nas estradas? Vão desaparecer? Depois das bombas semióticas que marcaram a bem-sucedida guerra híbrida brasileira, agora estamos acompanhando a essência da atual guerra criptografada: o “bullying midiático”. Assim como a psicologia do bullying, na qual a vítima deve ficar “pilhada” (gritar, chorar, correr etc.) para retroalimentar a dinâmica do assédio, também como estratégia diversionista de comunicação essa psicologia encontra sua aplicação como tática de guerra: caos de informações dissonantes e provocações do inimigo através do sequestro da pauta da mídia por uma agenda conservadora. Principalmente no campo cultural e de costumes. “Pilhar” as esquerdas, que reagem com o fígado, gastando tempo e indignação com questões periféricas. Para desviar da atenção do distinto público do drama principal: o assalto do Estado pelo sistema financeiro. Depois da dívida pública, tomar a Previdência e o FGTS. Depois do Estado Mínimo o futuro será o Estado Líquido.

É bem conhecida a dinâmica do bullying num ambiente escolar: busca-se uma vítima dentro de um grupo não apenas pelas suas características fóbicas - físicas, raciais ou comportamentais: o(a) “gordo”, o(a) “nerd”, o(a) “caladão”, o(a) tímido, e assim por diante. 
É necessário mais uma coisa: que a vítima “se queime”, assim como a cabeça de um palito de fósforo – que reaja de forma “desproporcional” (do ponto de vista do assediador), gritando, chorando, acovardando-se, entrando em pânico, correndo, xingando etc.
Quanto mais a vítima reage “pilhada”, mais a fobia do grupo é gratificada de forma auto-realizadora. Como se alimentasse a psicologia fóbica coletiva, provocando escárnio e mais agressividade num movimento de retroalimentação.
Como é própria da cultura “alt-right” (destruir toda forma de consenso estabelecido), o “politicamente correto” foi execrado como uma grande conspiração das esquerdas, supostamente hegemônicas no campo educacional, inspiradas por alguma coisa intitulada “marxismo cultural”.  E as críticas incisivas do “politicamente correto” contra o bullying na Educação foram denunciadas como forma de controle orweliano de um Estado tido como “esquerdista” e “stalinista”.
O bullying passou a ser encarado pela direita alternativa como forma positiva de socialização masculina numa sociedade naturalmente competitiva e darwinista social – a alt-right gosta muito mais de ver a seleção natural darwinista aplicada na sociedade do que na natureza criada por Deus. 
E se o bullying é o ritual de passagem necessário para todo homem (o paradigma do novo neo-patriarcalismo – paradoxalmente, o patriarcado sem pai), logo torna-se mais do que uma visão de mundo: é também uma estratégia de ação política e de comunicação da extrema-direita.

Bullying: paradigma de comunicação para a extrema-direita

Bullying midiático

O “bullying midiático” pode ser considerado a ferramenta central da guerra semiótica criptografada: criar sistematicamente crises, contradições, dissonâncias, declarações com posteriores recuos. 
Mas, essencialmente, fazer provocações. Tomar como refém a pauta midiática para que seus apresentadores, analistas e colunistas gastem tempo e energia em profundas análises sobre factoides, superfícies. Enquanto a esquerda, “pilhada”, se queime como o palito de fósforo, sempre de maneira reativa. Sempre pautada pelo bullying midiático.

Sistema financeiro, Previdência e FGTS

Sabemos que todo o terrorismo dos economistas-chefe dos bancos e empresas de investimento (que a grande mídia chama genericamente de “mercado”) em torno da necessidade da aprovação da “reforma da previdência” é a óbvia evidência de que a extrema-direita somente chegou ao poder para permitir que o sistema financeiro ataque o Estado e o transforme em banco particular – encher os cofres privados com dinheiro público para que os bancos alavanquem a especulação financeira através do dinheiro-crédito – voltaremos a esse tema à frente.
Por isso, duas demandas recentes do “mercado” (Reforma da Previdência e liberação dos saques do FGTS) foram cercadas pela tradicional guerra criptografada de informações com dois objetivos: 
(a) fazer bullying midiático com as esquerdas; 
(b) criar a chamada cortina de fumaça diante dos olhos do distinto público, desviando a atenção para a agenda pessoal conservadora (“alt-right”) do capitão da reserva.

Bullying midiático: chamar as esquerdas para participarem da cortina de fumaça

Guerra criptografada e Reforma da Previdência

A guerra criptografada do Governo em torno da Reforma da Previdência passou uma ideia de que “esforços” estariam sendo feitos numa conjuntura de “crises”, como se tudo estivesse no fio da navalha. Como num bom roteiro cinematográfico para criar teasers, tensão, conflitos que sempre serão resolvidos no último ato. 
A prisão preventiva do ex-presidente Temer e do ex-ministro Moreira Franco; o bate-boca entre o presidente da Câmara Rodrigo Maia e o presidente Bolsonaro nas redes sociais; ataques do filho Carlos Bolsonaro contra o vice General Mourão; o julgamento da Quinta Turma do STJ sugerindo redução da pena de Lula; a autorização do STF liberar a entrevista de Lula à Folha...
Sem falar nas polêmicas provocadas por questões como acabar com radares móveis em rodovias (“para que o povo brasileiro tenha prazer em dirigir”, afirmou o presidente) e a proposta de não multar motoristas que trafeguem sem cadeirinha infantil – “todo pai é responsável”, asseverou o capitão da reserva.
Enquanto as esquerdas se assanharam com uma suposta crise que revelaria sinais de um governo que cairia por si mesmo, o “tic-tac” preciso dos azeitados mecanismos de aprovação da Reforma funcionaram – a prisão de Temer supostamente assustaria o Congresso e dificultaria a Reforma; subitamente Maia e Mourão viraram vozes racionais num governo de napoleões de hospício; Lula poderia finalmente ser libertado e... até a deputada Tabata Amaral (PDT) virou progressista... Sucessivos factoides para iludir as esquerdas, desviar sua atenção e energia para pautas periféricas.
Diante de tudo, a “opinião pública” sempre ficou alheia lutando pela própria sobrevivência (fazendo os “corre” para garantir ou achar emprego) e a esquerda, “pilhada”, gastando toda sua indignação na superficialidade das “caneladas” e factoides. 


Guerra criptografada e saques do FGTS

Depois da banca facilmente conseguir encaminhar a privatização da previdência para o segundo turno na Câmara, o saco de maldades neoliberais continua com a aparente boa notícia da liberação do FGTS para a patuleia desempregada e endividada.
Até a escultura dos candangos em frente ao Palácio do Planalto sabe que o pretenso “aquecimento da economia” não passa de um álibi para o destino certo deste dinheiro liberado: a choldra endividada e desempregada se apressará em pagar suas dívidas ao invés de fazerem os comerciantes sorrirem – segundo IBGE, 62 milhões estão negativados no Serviço de Proteção ao Crédito, SPC.
O pior é que macroeconomicamente o suposto benefício resulta em soma zero: o FGTS representa 60% do financiamento imobiliário e do mercado da construção, já que as grandes obras de infraestrutura praticamente pararam.
Estrategicamente, esse outro assalto da banca contra o Estado veio nos últimos dias acompanhado de uma sequência de provocações de Bolsonaro, num verdadeiro bullying midiático contra as esquerdas: 
(a) Bolsonaro diz que pretende “beneficiar” o filho Eduardo com a indicação ao posto de embaixador em Washington. O tom das declarações é de provocação e escárnio: “Lógico, que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé mignon, eu dou...”.
Enquanto Eduardo afirma que, entre suas credenciais para o cargo, está no fato de ter “fritado hambúrguer” nos EUA. E Bolsonaro ainda “amplia seu currículo”: “ele ainda entregou pizza”.
(b) Bolsonaro declara em um encontro com jornalistas estrangeiros em Brasília que “não existe fome no Brasil, é uma grande mentira”. Numa provocação frontal ao “Mapa da Fome” da FAO, organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.
(c) Ao receber relatos de projetos aprovados pela Ancine (Agência Nacional de Cinema), Bolsonaro se diz “insatisfeito” com “Born to Be Fashion”, reality para revelação de modelos trans. E fala em transferir a Ancine do Rio para Brasília e a necessidade de criar “filtros culturais” (eufemismo para censura) para que o cinema nacional trate de “heróis nacionais” ao invés de “pornografia, como o filme Bruna Surfistinha”, atacou o presidente.
O tom das declarações sempre é provocativo, em estilo rompante, acompanhado pelas indefectíveis expressões fáticas “pô”, “tal quei”, rosto crispado e mãos com gesticulação indignada. Como se estivesse sempre respondendo a algum inimigo imaginário.


Factoides na guerra semiótica

São estocadas para pilhar ainda mais as esquerdas e ocupar a pauta midiática – até num esforço de jornalismo investigativo, a revista Época descobriu que americana Lanchonete Popeyes, na qual Eduardo Bolsonaro supostamente trabalhou, não tem hambúrguer... temos agora o “hambúrguer leaks”...
E com chiliques de indignação as esquerdas gastam espaço e energia para rebater essas provocações, citando estatísticas da ONU, denunciando como a imprensa mundial está chocada com o Brasil, fazendo análises sobre o estrago na diplomacia brasileira, as perplexidades no Palácio do Itamaraty, acusando nepotismo e assim por diante.
A grande diferença dos velhos factoides na Política (como aqueles criados por nomes como Jânio Quadros, Cesar Maia etc.) é que os atuais os factoides podem sair do campo do virtual e se realizarem – se colar, colou: até Eduardo Bolsonaro poderá fritar hambúrgueres em Washington. Por que não? Mas, mesmo que o bom senso e a vergonha alheia eventualmente impeçam, tudo bem! O objetivo de comunicação já foi atingido: assediar as esquerdas até deixa-las fora de controle, reagindo mais pelo fígado do que pela mente. 

Estado líquido: o assalto do sistema financeiro

Em meio a esse bullying massivo, silenciosamente o sistema financeiro toma de assalto o Estado para roubar dinheiro público, não só como credor da dívida a juros escorchantes, mas também privatizando a previdência e recebendo aportes do FGTS. 
A questão é que até agora as esquerdas não conseguiram compreender que a estratégia de comunicação da extrema-direita mundial (Trump, Bolsonaro, Duterte, Orban etc.) é capturar a oposição no interior da sua agenda conservadora da guerra cultural e de costumes. Torná-la reativa ao bullying, provocações, escárnios, insultos. Seja ao bom senso, à realidade factual ou à própria História.


As esquerdas deveriam se perguntar: por que o sistema financeiro precisa tão urgentemente tomar de assalto o Estado? Por que essa investida tão organizada, sistemática, com uma inédita estratégia semiótica que começou com as primaveras da guerra híbrida para desembocar na atual guerra criptografada? Por que os bancos se tornaram as eminências pardas, sempre distante dos noticiários e das próprias análises das esquerdas?
Em postagem anterior (“O Fetichismo da Liquidez”, clique aqui) discutíamos que desde que o presidente Richard Nixon, em 1971, rasgou o Acordo de Breton Woods ao decidir pelo fim do lastro-ouro para o dólar, criou-se condições para a extrema liquidez das transações financeiras globais.
Para o sistema financeiro, isso representou se libertar das amarras das Casas da Moeda, Bancos Centrais e regulamentações nacionais – os próprios bancos passaram a emitir livremente sua moeda: converter todas as dívidas (estatais, jurídicas, físicas) em papéis especulativos que, por sua vez, se convertem em novas dívidas numa espiral especulativa sem precedentes.
A condição estrutural para que esse sistema de financeirização funcione é a liquefação acelerada: a princípio das operações econômicas (cartões de débito/crédito, integração em tempo real das praças financeiras do planeta etc.). Depois, forçando politicamente a desregulamentação de amplos setores especulativos, como o imobiliário, por exemplo.
E hoje, acompanhamos a drenagem dos recursos do Estado: primeiro, como credor da dívida pública. E, segundo, com a privatização a toque de caixa dos recursos previdenciários, seguridade e fundos públicos, como o FGTS.
A essência desse movimento global de financeirização é a liberdade dos bancos criarem moeda: o “dinheiro-crédito”. A oportunidade de abrir créditos dezenas de vezes superiores ao montante de dinheiro efetivamente existente nos cofres bancários. Sabendo-se que a cada conta aberta, o cliente não irá sacar todo o dinheiro. Como sempre, em média 10% desse valor será sacado em espécie. O restante será movimentado através de cheques ou transações eletrônicas, os quais na maioria das vezes entrarão em outras contas correntes.
Uma espiral especulativa cuja base está na predação e parasitismo: drenar riqueza real para, a partir dela, inventar “dinheiro-crédito” que nada mais é do que números que aparecem nas telas dos bancos e empresas de investimento.
Ao lado da geopolítica do petróleo dos EUA, por detrás das ações de guerra híbrida na América Latina, há, portanto, uma outra guerra semiótica: a criptografada. Tática diversionista de criação de quadros caóticos de informações não só para confundir, mas para fazer também o oponente dispersar sua energia e atenção em questões periféricas que escondem a questão mais essencial: o assalto do Estado pela banca. 
Depois do sistema financeiro liquefazer a economia, chegou ao momento de se voltar contra Estado – do Estado Mínimo ao Estado Líquido.
Por isso, diante do bullying midiático diário da estratégia de comunicação da extrema-direita, as esquerdas precisam, por assim dizer, ser em mais “zen”: respirar fundo e contar até dez. E passar a agir mais pela mente do que com o fígado.

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