Pages

segunda-feira, abril 22, 2019

Comediante ganha eleições presidenciais na Ucrânia: quando guerra híbrida vira "gamecracia"

“Prometo que nunca vou desapontar vocês!”... Mas também ele garantiu na campanha eleitoral: “Se não tem promessas, não tem decepção!”. Ele nada prometeu. Nem debateu ou deu entrevistas. Ele venceu as eleições presidenciais na Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, comediante e ator da série televisiva “Servo do Povo”: na ficção ele é presidente da Ucrânia desde 2015. Na vida real ganhou as eleições nesse domingo, 21. Mais uma confirmação do célebre clichê de que “a vida imita a arte”? Quando sabemos que o cenário político ucraniano é estratégico para a guerra híbrida engendrada pela geopolítica dos EUA, começamos a perceber que a realidade vai muito além desse clichê. Principalmente quando também sabemos que a quatro dias antes das eleições, o Canal 1 + 1 lançou a última temporada da série de Zelenskiy. Trump, Bolsonaro, e agora Zelenskiy, são espécimes de um novo paradigma da política: a gamecracia - realidade e ficção se confundiram a tal ponto que se transformaram em jogo.

Ele já presidia o país desde 2015. Pelo menos no campo da ficção, o que nesses tempos de midiatização da política (primeiro pelas mídias de massas, depois através das redes sociais), que se transformou num importante instrumento de guerra híbrida, a diferença realidade/ficção parece pouco importar.
Ao lançar-se como candidato à presidência, transformou sua inexperiência como ponto forte de campanha. Criou a imagem de si mesmo como um outsiderque desafiava a “velha política”. Aos 41 anos, fez questão de demonstrar que não tinha conhecimento aprofundado sobre qualquer tema. Limitou-se à narrativa de ser o “novo”, o “diferente” e insistir na necessidade do combate à corrupção.
Nada prometeu, não fez comícios, fugiu de debates e não deu entrevistas. Usou principalmente redes sociais para atrair os votos dos mais jovens com vídeos divertidos.
Não, isso não foi no Brasil. Estamos falando sobre a vitória de Volodymyr Zelenskiy nas eleições presidenciais da Ucrânia nesse domingo (21). Ator e comediante, bateu no segundo turno o atual presidente Petro Poroshenko, depois de também vencê-lo no primeiro turno.
Zelenskiy se tornou famoso no país pela série televisiva Servo do Povo (Sluga Naroda, 2015-) sobre a história de um professor de ensino médio que acidentalmente se torna presidente depois que seu personagem faz um ardoroso discurso contra a política ucraniana e viraliza nas redes sociais. 

Comediante que vira presidente por acaso numa série de TV, continuou como ator durante a campanha

Detalhe: o canal de TV 1 + 1 (emissora do bilionário empresário Igor Kolomoyskyi e que francamente apoiou o comediante) começou a exibir a última temporada do Servo do Povo quatro dias antes das eleições ucranianas.

Sem promessas, sem decepção!

“Se não tem promessas, não tem decepção!”. Essa foi uma das frases memoráveis da campanha de Zelensky, claramente bebendo na fonte do niilismo político que atravessa um dos países mais pobres da Europa, com 45 milhões de habitantes.
Tudo poderia ser apenas um bizarro fato curioso, não fosse a Ucrânia, ao lado da Síria, um dos palcos da guerra híbrida da geopolítica dos EUA para dificultar o projeto conjunto da Rússia e China para criar uma nova Rota da Seda.
Mais digitais da guerra híbrida (a guerra convencional transposta para o campo semiótico da sociedade), sempre com o mesmo modus operandi.
Para começar, a insólita estratégia discursiva da “autoproclamação”. Juan Guaidó, líder da oposição parlamentar na Venezuela, repentinamente se autoproclamou presidente do país: se no mundo real a derrubada do presidente Nicolas Maduro não deu certo, a mídia empossou Guaidó criando um inusitado golpe virtual – sem falar no detalhe da semelhança fisionômica e física com o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, numa óbvia tática de criação imaginária de identificação e empatia.
Numa variante desse “golpe virtual”, o canal 1 + 1 promove o ator Zelenskiy a presidente no campo da teledramaturgia: estratégia psy opde pré-condicionamento político. Campanha de guerra psicológica que sempre está nas bases das “revoluções coloridas” com o mesmo discurso ambíguo da depreciação da política ao lado do discurso do “novo” na política, de forma recorrente por meio de candidatos que desprezam os canais democráticos de mediação e representação – debates, comícios, partidos etc.


Inversão Ficção/Realidade

A guerra híbrida apenas potencializou um fenômeno que Walter Benjamin já havia detectado no nazi-fascismo: a estetização da política. O que esse humilde blogueiro conceitua como “canastrice política” – Hitler e Mussolini emularam personagens dos filmes mudos com seus gestos que quase se assemelhavam às pantomimas das comédias pastelões.
Jânio Quadros no Brasil, eleito presidente em 1961 para depois renunciar, emulava os trejeitos do humor físico do comediante francês Jacques Tati. Bolsonaro, emulando o humor tosco de stand up pseudo espontâneo (do tipo “pronto, falei!”) e assim por diante.
Líderes políticos caricatos, canastrões que sempre no início das suas ascensões nunca foram levados à sério. Até a ficção normatizá-los – para as massas, são reais porque se parecem com a ficção – clique aqui.
Essa inversão ficção/realidade (ou “a vida imitando a arte”) cria o pré-condicionamento político: figuras canastronas ou bizarramente divertidas ganham legitimidade ou verossimilhança porque emulam entidades ficcionais. A ficção legitima a realidade.
Mas o fenômeno Zelenskiy se junta aos casos Donald Trump nos EUA ou Dória Jr em São Paulo: chega de intermediários ou emulações! A mídia colocará seus próprios personagens ficcionais diretamente no poder. Trump e Dória Jr construíram seus personagens ficcionais no reality show O Aprendiz. E Zelenskiy, como o incauto professor da série Servo do Povo.

Série "Servo do Povo" (2015-)

Espiral do silêncio

Essa autoproclamação de um candidato através da midiatização invoca uma espécie de democracia plebiscitária: candidatos chegam ao poder através das formalidades de uma democracia (votos, eleições, um partido etc.), mas graças a uma engenharia social que manipula climas de opinião, efeitos de manada e bodes expiatórios. Sua legitimidade viria de um “clamor popular”, muito mais uma percepção construída pela espiral do silêncio do que pela realidade – “espiral do silêncio”: conceito da cientista alemã Elisabeth Noelle-Neumann – tendência de opinião pública em que os indivíduos omitem sua opinião quando pensam estar conflitantes com uma suposta tendência majoritária, devido ao medo do isolamento, crítica ou zombaria.
Candidatos cuja única “plataforma política” que oferecem é o combate à corrupção e o achincalhamento dos políticos.
Muitos analistas observam que o calcanhar de Aquiles de Zelensky é o controverso oligarca empresarial empresário Igor Kolomoyskyi - vive em um autoexílio em Israel enfrentando inúmeras investigações na Ucrânia que apuram inúmeros negócios ilícitos. O ator e comediante seria nada mais do que um mero fantoche dos interesses do dono do Canal 1 + 1.


Gamecracia

Mas nesse contexto de guerra híbrida no qual a Ucrânia é cenário estratégico para a geopolítica dos EUA, Zelenskiy é o típico instrumento de uma guerra criptografada – embaralha uma cena política. Assim como Bolsonaro, Zelenskiy diz nada entender e a única proposta é combater à corrupção e substituir “a velha política”. Ou seja, o ator delegará poderes: prato cheio para dissonâncias, informações e contra-informações. As famosas “caneladas” de Bolsonaro, que apenas escondem sob uma cortina de fumaça de polêmicas na pauta midiática os verdadeiros agentes.  
E muito menos podemos considerar Zelensky algum tipo de “voto de protesto” como análogos brasileiros como “voto cacareco” ou o voto no palhaço Tiririca-pior-do-que-está-não-fica.
A origem pode até ser a mesma: o niilismo político. Mas figuras como Trump, Bolsonaro e, agora, Zelenskiy, são resultantes de uma elaborada operação psicológica que transforma a política em um game, a gameficação da Política, a “Gamecracia” na definição de Alex Gekker – a política de comunicação numa era inerentemente lúdica com a grande proliferação de jogos (principalmente eletrônicos), aplicativos etc – leia GEKKER, Alex. Gamocracy: Political Communication in the Age of Play, Master Thesis, Faculty of Humanities, Utrecht University – clique aqui
O elemento lúdico que vai além dos jogos formais, transformando-se num paradigma: a política como uma simples partida, como um jogo de futebol cujo resultado sai num final de domingo. Sem os torcedores se darem conta de que as consequências do resultado desse jogo vão perdurar por, no mínimo, quatro anos.


Postagens Relacionadas