domingo, março 30, 2014

Neurogadget que promete sonhos lúcidos é sintoma da cultura dos aplicativos

Um aplicativo que promete para o usuário sonhos lúcidos. É o “Aurora”, criado por uma start up californiana e previsto para ser lançado no segundo semestre desse ano, que promete tornar os sonhos tão produtivos e eficientes que farão a terça parte da vida que passamos dormindo valer a pena. O neurogadget Aurora é um sintoma tanto da cultura atual dos aplicativos que cria nos usuários uma falsa ilusão de racionalidade e planejamento de onde nem os sonhos parecem escapar; e de uma agenda tecnognóstica que une neurociências, ciências computacionais e Inteligência Artificial com o propósito de efetuar a cartografia e topografia da mente com objetivos de manipulação e controle social.

Em postagem anterior discutíamos como o cinema parece antecipar uma espécie de agenda tecnocientífica – sobre isso clique aqui. Dessa vez, os diversos filmes que abordaram o tema dos sonhos lúcidos (Vanilla Sky, A Origem, Sonhando Acordado, entre outros) parecem ter se antecipado ou inspiraram um aplicativo criado pela IWinks, uma start up de San Diego, nos EUA: o “Aurora”, aplicativo que promete ao usuário criar sonhos lúcidos a partir de um dispositivo que mede as ondas cerebrais e o movimento dos olhos.

O sonho lúcido ocorre no momento em que o sonhador começa a ter uma relação de estranheza com o fluxo dos acontecimentos oníricos e passa a questionar a própria realidade. Consciente que se encontra num sonho, passa então a interferir na lógica onírica. O aplicativo “Aurora” supostamente promete criar essa situação para o usuário a partir do momento em que o dispositivo percebe os movimentos REM e a alteração das ondas cerebrais, enviando jogos de luzes e sons personalizados para o usuário que, sem despertar, perceberá que está num sonho - veja abaixo o video promocional do aplicativo.  

sábado, março 29, 2014

A filosofia do ressentimento em "Um Homem com Duas Vidas"

Um olhar tragicômico sobre o ressentimento. Com uma complexa narrativa repleta de flash backs onde memórias e fantasias se misturam (marca registrada do belga Jaco Van Dormael, diretor do filme “Sr Ninguém” de 2009), “Um Homem Com Duas Vidas” (Toto Le Héros, 1991) conta a história de Thomas, um homem que acredita que a sua vida foi roubada e, com a ajuda de um agente secreto imaginário chamado Toto, pretende vingar-se. Embora a constelação de afetos que formam o ressentimento (raiva, inveja, amargura e vingança) seja tratada pelo filme de forma leve e cômica, a complexidade narrativa que funde o passado com o presente levanta uma questão central: o esquecimento. Freud e Nietzsche deram respostas diferentes: para o pai da psicanálise o esquecimento negaria a chance de compreender o passado enquanto para Nietzsche era a única chance de nos libertarmos das garras do ressentimento. Além de levantar esse tema “Um Homem Com Duas Vidas” ainda vai conectar o ressentimento individual com o social ao mostrar como as memórias de um super-herói midiático se confundem com memórias e fantasias da infância.

O diretor belga Jaco Van Dormael  já é conhecido por esse blog pelo filme Sr. Ninguém (Mr. Nobody, 2009) onde o protagonista vê a sua vida como um gigantesco hipertexto com diversos futuros alternativos e luta contra os eventos aleatórios que podem interferir no livre-arbítrio das decisões.


Um Homem com Duas Vidas (Toto Le Héros, 1991) marcou a estreia do diretor em longa metragens. Situada em um futuro próximo, Van Dormael nos conta a história de um homem idoso chamado Thomas que olha para trás na sua vida através de uma espécie de fluxo de consciência construído por um complexo mosaico de flash backs intercalado com fantasias de como os acontecimentos poderiam ter sido diferentes.

quarta-feira, março 26, 2014

Revisitando o documentário "Muito Além do Cidadão Kane"

Aos 50 anos do golpe militar de 1964 é necessário revisitarmos o documentário “Muito Além do Cidadão Kane” (Beyond Citizen Kane, 1993), dirigido por Simon Hartog para o Channel Four da Inglaterra. A Globo venceu na justiça e o filme foi banido do País, mas acabou assistido e debatido nos meios universitário e acadêmico. Tornou-se um documento fundamental para conhecermos o Brasil e a nossa TV. Ficou famoso internacionalmente pelas suas denúncias sobre as manipulações do telejornalismo da Globo e o favorecimento econômico da emissora de Roberto Marinho desde o início do regime militar. Mas o documentário de Hartog diz mais, que só o olhar de um estrangeiro poderia ver: os detalhes que contribuíram para a Globo formar a primeira rede de TV do país, capaz de criar um conteúdo tão genérico que passou por cima da diversidade cultural e regional brasileira. “A estranha combinação” do entretenimento dominical, a TV em cores e o projeto de modernidade e integração nacional dos militares e o condicionamento da vinheta do plim-plim e da linguagem do globês que alterou a identidade idiomática do brasileiro.

Às vésperas dos 50 anos do golpe militar de 1964, é oportuno fazermos uma revisita ao lendário documentário televisivo britânico Muito Além do Cidadão Kane. Produzido e distribuído pelo canal privado Channel Four em 1993 e dirigido por Simon Hartog, o documentário foca as relações entre a grande mídia e o poder no Brasil e detalha a posição monopolista da rede Globo que cresceu à sombra do regime militar. Analisa a figura do proprietário Roberto Marinho, suas relações políticas com o Estado (aproximando-o do personagem Charles Foster Kane, personagem criado por Orson Welles para o filme Cidadão Kane de 1941) e o poder da emissora em formar e manipular a opinião pública.

A ideia da produção do documentário surgiu quando Hartog visitou o Brasil nos anos 80 e ficou impressionado com o império midiático da Globo, Roberto Marinho e o seu pragmatismo político. Hartog  fazia parte de um grupo de cineastas de esquerda da London Coop. Antes de produzir Muito Além do Cidadão Kane ele já havia realizado Brazil: Cinema, Sex and the Generals  (1985) sobre o papel político das pornochanchadas na época do regime militar. Para os amigos, Hartog confidenciava a surpresa pelos brasileiros até então nunca terem feito um documentário sobre o poder da Globo.

domingo, março 23, 2014

"Aurora" supera "A Origem" e inova as representações do inconsciente no cinema

É inevitável a comparação entre “Aurora” (Vanishing Waves, 2012) da lituana Kristina Buozyte com “A Origem” (Inception, 2010) de Christopher Nolan: enquanto a produção hollywoodiana abordava o mundo onírico pelo viés das neurociências (jamais a palavra “inconsciente” era citada), a produção lituana aborda o mesmo tema, mas fiel ao ponto de vista freudiano sobre a dinâmica do psiquismo, inovando as representações do inconsciente no cinema através de engenhosos efeitos inspirados em MC Escher e expressionismo alemão. Se Freud considerava o inconsciente como o “Isso” e o “Estranho”, “Aurora” mostra como uma neurociência atual munida de interfaces digitais e mapas neuronais tenta ignorar essa origem de toda atividade humana impossível de ser apreendida pela ciência racionalista.

Em postagem passada quando discutíamos o filme A Origem (Inception, 2010) observamos que a grande deficiência do filme de Nolan era abordar o tema dos estados imersivos de alteração de consciência e o mundo onírico dos sonhos sob um ponto de vista associado à engenharia do espírito das neurociências: embora tudo ocorresse no mundo dos sonhos, nunca se tocava na palavra inconsciente e o psiquismo era abordado pela possibilidade pragmática de manipulação neurocientífica comandada por interesses corporativos.

O que tornou A Origem num filme estéril e assexuado onde a presença feminina tornou-se masculinizada ou, então, um objeto abstrato tal como uma princesa de contos de fadas. Bem diferente é o filme da lituana Kristina Buozyte Aurora (Vanishing Waves) em que a narrativa revisita alguns conceitos das viagens no mundo dos sonhos de A Origem. Porém, em Aurora, o psiquismo do mundo dos sonhos é uma mix de surrealismo e de uma primitiva psicossexualidade que faria Freud ficar corado. Kristina se aproxima muito mais do funcionamento do psiquismo humano do que Nolan ao capturar como a experiência real do sonho pode ser assustadora e desagradável, mesclada com primitivas e incontroláveis fantasias eróticas. O que torna Aurora um filme diferenciado no gênero de ficção científica: uma erótica e surreal viagem mental.

quinta-feira, março 20, 2014

Documentário "O Abraço Corporativo": o jornalismo está nu

Uma das maiores barrigas da grande mídia passou despercebida para o grande público e na época sua repercussão acabou restrita a veículos especializados em jornalismo e revistas acadêmicas. O documentário “O Abraço Corporativo” (2009) do jornalista Ricardo Kauffman descreve o passo a passo da criação de uma “pegadinha” sobre um suposto executivo de Recursos Humanos que estaria introduzindo no Brasil uma revolucionária terapia motivacional baseada nos poderes curativos de um simples abraço. Explorando os vícios de uma imprensa baseada no jornalismo declaratório que está sempre em busca de bons personagens, o suposto representante da chamada “Confraria Britânica do Abraço Corporativo” expôs as mazelas de um jornalismo onde a ambição de ascensão na carreira de jornalistas está na relação direta com a sua precarização profissional.

O filósofo Louis Althusser dizia que ideologia é quando as respostas precedem as questões. Se isso for verdade, então a prática jornalística se tornou a maior indústria de produção ideológica, mais perigosa que o entretenimento porque opera sob a chancela da informação e da realidade. Raramente o jornalista “descobre”. Na maioria dos casos ele sempre encontra o que procura: tenta confirmar uma ideia, uma hipótese ou, então, encaixar acontecimentos a um certo script que já tem em mente.

E para mostrar que não está enganado, a melhor forma é produzindo um personagem por meio de uma calculada busca de “desconhecidos”. Seus rostos na tela podem ser desconhecidos, mas seus personagens são familiares. Um atentado? Procure um bombeiro heroico e uma pessoa que por um lapso do destino não estava no local da explosão porque acordou naquela manhã cinco minutos mais tarde. Uma manifestação? Procure o líder (mesmo que ele não exista) ou aquele manifestante que saiu às ruas pela primeira vez. Greve de ônibus? Procure uma mulher simples e ofegante, desesperada porque seu patrão pode despedi-la caso não chegue ao trabalho.

segunda-feira, março 17, 2014

Em Observação: "Olhos de Rinoceronte" (2003)

O filme “Olhos de Rinoceronte”, estreia de Aaron Woodley, sobrinho do famoso diretor canadense David Cronenberg, é uma excelente oportunidade para se discutir como os filmes gnósticos atuais exploram na sua estética a combinação de elementos do gênero barroco e romântico, resultando naquilo que alguns autores chamam de “neobarroco”: um protagonista que vive imerso num gigantesco depósito de antiguidades e relíquias alugadas para produções cinematográficas, onde o amor por uma cenógrafa tentará arrancá-lo daquele mundo de ilusões. Mas os objetos, em bizarras animações em stop motion, tentarão mantê-lo prisioneiro naquela alegoria de caverna platônica.

sexta-feira, março 14, 2014

Videocassete, controle remoto e as oportunidades perdidas

O DVD passou e já estamos na geração do Blu-Ray. Mas parece que no Brasil ninguém entendeu as potencialidades de antigos dispositivos tecnológicos como o controle remoto e o finado videocassete. As promessas do controle remoto de “se livrar de comerciais chatos” graças à “magia negra da eletrônica”, como era divulgado o novo dispositivo na década de 1950, se equivalem às perspectivas de que o videocassete era a “libertação do vídeo” e que transformaria o espectador no “senhor da TV” na década de 1980. Muitas teorias conspiratórias sustentam que foi muito conveniente para o monopólio televisivo da Rede Globo que tais inventos não fossem compreendidos na sua plenitude pelo telespectador. Com a possibilidade de gravações programadas que o videocassete oferecia, certamente a grade de programação da Globo (introjetada tão profundamente no psiquismo do brasileiro que foi capaz de diminuir a taxa de natalidade) certamente sofreria grande impacto. Mas essa oportunidade foi perdida.

O ano era 1972. Após o sucesso editorial do Manual do Escoteiro Mirim (publicação infantil inspirada na atividade do escotismo dos sobrinhos do pato Donald, Huguinho, Zezinho e Luizinho), a editora lançava o Manual do Professor Pardal no qual eram contadas as histórias de muitas invenções, sempre ilustradas pela presença do simpático personagem da galeria Disney.

Folheando as coloridas páginas com várias curiosidades do mundo dos inventores e invenções, a certa altura deparamo-nos com um pequeno texto sobre o videocassete, até então uma invenção recente da Sony e introduzida no mercado norte-americano um ano antes. O texto sobre o novo dispositivo tecnológico tinha um tom futurista e revolucionário que prometia mudar a televisão tal como até então se conhecia:

segunda-feira, março 10, 2014

A nostálgica bomba semiótica do retrofascismo

Depois das manifestações de rua onde foram produzidas bombas semióticas pontuais (fusca incendiando, coreografia desafiadora dos black blocs etc.) acompanhamos a mídia repercutir imagens de racismo, linchamentos, intolerância e crimes cometidos por menores principalmente por meio de vídeos amadores produzidos por telefones celulares. Todas as imagens seguidas de comentários alarmistas em telejornais que incitam soluções ainda mais radicais. Sob a aparência neutra de informação, as imagens a longo prazo suscitam uma estranha nostalgia que se espalha na grande mídia e redes sociais. “Marcha da Família”, depreciação da política e intervenção militar ou o revival de alucinadas conspirações comunistas cubanas e Guerra Fria são sintomas de um complexo psíquico mais profundo e preocupante: o protofascismo colocado em movimento por meio do mecanismo semiótico do “retrofascismo” – nostalgia pós-moderna + protofascismo.
·           O jogador Arouca, disputando uma partida em Mogi Mirim/SP pelo time do Santos, assim como o árbitro Márcio Chagas em jogo pelo campeonato gaúcho foram alvos de insultos racistas por parte de torcedores;
·         Após o episódio de defesa do ato de linchamento contra um garoto negro que havia cometido furtos em um bairro no Rio de Janeiro, a apresentadora de um telejornal do canal SBT Rachel Scherazade sai nas redes sociais apoiando a convocação da “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade” para o dia 22 que defende, entre outras coisas, a destituição da presidenta Dilma e do vice Michel Temer, dissolução do Congresso Nacional e intervenção militar, ressuscitando antigos fantasmas como conspirações cubanas e comunistas;

sábado, março 08, 2014

Há um fantasma na máquina no filme "Ela"

No filme “Ela” (Her, 2013 - Oscar de melhor roteiro original), o diretor Spike Jonze retorna ao tema da intimidade e incomunicabilidade das relações humanas abordadas pelo filme “Quero Ser John Malkovich” (1999). Só que dessa vez sem alegorias, mas com a mediação tecnológica de um sistema operacional que parece adquirir inteligência e desenvolver emoções autênticas. Será que o software desenvolve uma verdadeira inteligência ou será que nós estamos rebaixando nossas expectativas sobre a inteligência para as máquinas parecerem mais espertas? Se isso for verdade, isso não prejudicaria também nossas expectativas em relação aos relacionamentos e o amor? Mas para Spike Jonze há um fantasma na máquina que pode subverter as programações algorítmicas e encontrar uma dimensão espiritual no espaço quântico entre o “0” e o “1” da codificação binária.

Em meados da década de 1990 um hacker americano em Berlin e um colega francês colocaram em prática uma curiosa experiência em ciber-sexo: criaram um traje especial para o corpo imergir numa experiência de sexo à distância. Uma perfeita máquina de ciber-sexo que possibilitaria uma relação sexual virtual entre Paris e Berlin. O experimento foi divulgado e atraiu uma multidão nas duas cidades. O que se sucedeu foram pessoas vetorizando seus corpos, supostamente sentindo toques e penetrações de seus parceiros remotos como fossem experiências presenciais.

Mas algo curioso aconteceu. Ao final do segundo dia um ciber-parceiro de Paris mandou uma mensagem dizendo que estava tendo um problema com os códigos: uma falha na programação estava fazendo o programa funcionar em loop, em um feedback fechado. O que significava que em dado momento o usuário não estava mais fazendo sexo com algum parceiro remoto, mas com suas próprias sensações digitalizadas em looping. E os participantes estavam adorando! Em síntese, a experiência europeia de ciber-sexo converteu-se em um evento autístico, uma ciber-masturbação (leia KROKER, Arthur. Hacking the Future. New York: St. Martin Press, 1996).

quarta-feira, março 05, 2014

Futebol e a decadência do entretenimento dominical

Às vésperas de uma Copa do Mundo no Brasil, fica evidente que existem dois tipos de inimigos do futebol: os mortais e os morais. Ambos professam uma nova religião em ascensão graças a ética da penúria favorecida pelo quadro de recessão internacional. Uma religião que vê a realidade como uma existência dura e triste e que o pecado do futebol é proporcionar a alienação e fuga dessa verdade. Mas não percebem que na atualidade o futebol, tanto no estádio como na TV, transformou-se no espelho da decadência do entretenimento dominical – o futebol não afugenta a realidade, mas, ao contrário, a reproduz de forma repetida e amontoada. O futebol atual deixou de ser uma festa de participação popular, um teatro grego ou alguma espécie de catarse coletiva para ser conectado ao quadro de austeridade global. O futebol deixou de ser um espaço lúdico de fuga da realidade para ser algo inseparável do dia-a-dia.

Às vésperas da realização da Copa do Mundo no Brasil, podemos perceber que existem basicamente dois inimigos do futebol: os mortais e os morais.

Os inimigos mortais dizem que o futebol é uma fuga. Para eles nada deve escapar da realidade. O único tipo de vida reconhecível seria o fardo da vida adulta, o chumbo da razão. Quem lograr fugir será morto pela inconsistência e infantilização.

segunda-feira, março 03, 2014

Oscar 2014 apresenta sincronicidades e recorrências

O esperado duelo entre os filmes "Gravidade" e "12 Anos de Escravidão" na categoria Melhor Filme acabou se confirmado na 86o Cerimônia do Oscar. O prêmio da categoria acabou confirmando uma recorrência observada pelo menos desde 2010: além do fato que a Academia parecer não gostar muito de premiar filmes em 3D, percebe-se que filmes de História sempre vencem. Como explicar esse padrão? Talvez começando por uma curiosa sincronicidade que envolve a comediante Ellen DeGeneres e Hollywood: ela sempre é convidada a apresentar cerimônias um ano após grandes tragédias nacionais. Talvez aí encontremos uma conexão ideológica entre os filmes-catástrofe, os chamados filmes históricos e o atual quadro econômico mundial recessivo.

Desde o primeiro cinema se estabeleceu a oposição entre ficção e realidade, ilusão versus documentário: de um lado os irmãos Lumiére que acreditavam que a verdadeira natureza da câmera era documental; do outro lado o ilusionismo das trucagens, cortes e sobreposições das imagens do ex-mágico Méliés que acreditava que a essência do cinema era ficcional. De um lado o realismo documental das imagens da saída de operários no final de um dia de trabalho captadas pelos Lumiére; e do outro, os efeitos mágicos da primeira viagem à Lua criados por Méliès.

Não é à toa que os primeiros gêneros populares no primeiro cinema fossem tão opostos: o fervor religioso dos filmes sobre a paixão de Cristo versus prazer voyeurístico das primeiras imagens pornográficas. Ficção e não-ficção, ilusão versus realidade e formalismo versus realismo foram oposições que a história do cinema acabou criando, ajudando a construir uma forma de entretenimento não totalmente “irreal”, mas carregado de verossimilhança e plausibilidade. Uma forma de entretenimento que divertiria, mas, ao mesmo tempo, seria capaz de dizer “verdades”.

domingo, março 02, 2014

Em Observação: Oscar 2014 - "É a economia, estúpido!"

Ao contrário de 2013, esse ano há poucos filmes entre os indicados ao Oscar que abordam temas mitológicos, místicos ou religiosos. Se no ano passado tivemos “Django Livre”, “As Aventuras de Pi”, “O Mestre” entre outros, no Oscar 2014 temos apenas o filme “Gravidade”, “Ela” e a animação japonesa “Vidas ao Vento” de Hayao Miyazaki (“A Viagem de Chihiro”, 2001). Por que essa mudança conceitual entre os filmes indicados ao prêmio máximo da indústria do cinema? Será que a expressão “É a economia, estúpido!” sintetizaria essa guinada de Hollywood para esse ano?

Comparado com a premiação do Oscar do ano passado, a presença de filmes indicados com temas mitológicos, religiosos, místicos e esotéricos é sensivelmente menor. Em 2013 tínhamos filmes como Django Livre (o encontro do spaghetti-western de Tarantino com temas bíblicos e vingança), Indomável Sonhadora (a jornada do herói de uma menina lutando contra a ameaça do caos e das águas), O Mestre (a história da espiritualidade contemporânea através da ascensão de uma seita chamada Cientologia) e ainda As Aventuras de Pi (onde os relatos de diversas religiões nada mais são do que signos diante de um cosmos hostil e violento que cria no protagonista uma nova experiência do sagrado).

sábado, março 01, 2014

Por que celebramos a velocidade?


“Quicklube”, “Quick Cash”, “American Express”, “Federal Express”, “Mach 3”, “Slimfast”, “Speedo”, “Speed Dial”, “Crédito Rápido”. “Entregamos em 20 minutos ou você não precisa pagar por ele”. “Você precisa agir AGORA!”. “Corra! Restam alguns dias. Acabarão muito em breve!” Ser veloz é moralmente bom, como diariamente nos dizem as mensagens publicitárias. Se a velocidade tornou-se uma força psicológica que afeta nossas relações com o mundo, como uma sociedade pode pretender humanizar o trânsito e a vida urbana se ela mesma promove a celebração da velocidade e da aceleração? Através dessa celebração da velocidade e da glamorização da lei do menor esforço, a obsessão pelo "maior é melhor" é substituída pela compulsão do "mais rápido é melhor“. Situações velozes se tornam significantes naturais do desejo, superioridade e eficiência, enquanto a lentidão é sinônimo de frustração e impotência. 

Onde Guy Debord via a “sociedade do espetáculo”, Paul Virilio (urbanista e pensador francês) via uma “sociedade da velocidade”. Nesta abordagem, velocidade é um meio ambiente e uma força sócio-psicológica que transformam o que fazemos, como o fazemos, como nós pensamos e sentimos e, assim, como nos tornamos.

Os estados velozes se tornam o significante do desejo, capacidade, superioridade, eficiência, energia libidinal, performance e inteligência. Ao contrário, lentidão torna-se o significante da frustração, falta, inferioridade, deficiência, impotência, fraqueza, ou ainda – pensando em termos infantis – retardamento mental.

Velocidade se torna um novo imperativo cultural, disciplina, forma de dependência e submissão. Virilio também vê a velocidade como uma força psicológica e social ou uma pressão que altera a visão de mundo, desorienta-nos, deixa-nos num estado de concussão mental e promove uma profunda crise que afeta nossas relações com o mundo, sociedade e democracia. Para ele, a natureza não é apenas destruída por uma poluição química ou térmica mas também por uma poluição dromosférica – uma invisível poluição através da velocidade (veja VIRILIO, Paul. “Velocidade e Política”).

terça-feira, fevereiro 25, 2014

Não existe almoço grátis para o remake "RoboCop"

“Não existe almoço grátis”, diz uma frase popular americana que sintetiza bem o espírito pragmático daquele país. E José Padilha, diretor brasileiro de Tropa de Elite (2008), deve ter comprovado isso ao ser convidado pelos estúdios da MGM para dirigir o remake do clássico de ficção científica “RoboCop” dirigido pelo holandês Paul Verhoeven em 1987. Atravessando séria crise financeira, o estúdio não quis se arriscar em fazer uma refilmagem com o mesmo tom crítico visceral da versão original: os temas da ganância corporativa, do desmanche e da privatização da segurança pública estão diluídos em um roteiro onde os vários coadjuvantes se equivalem em meras opiniões ou pontos de vista. Mais ainda, o filme parece apresentar um estranho ato falho: ao colocar o papel da mídia como o principal instrumento de manipulação corporativa, sugere que o próprio filme estaria mostrando que o seu herói RoboCop poderia ser o instrumento de um lobby bastante atuante em Hollywood, o da indústria de armas.

Na verdade o filme seria dirigido por Darren Aronofsky ("Cisne Negro" e "Pi"), que abandonou o projeto no meio do caminho (o roteiro já estava pronto) diante das sérias dificuldades financeiras do estúdio – segundo a revista Financial Time a MGM possui uma dívida atual de 3,7 bilhões de dólares e grande parte dos seus lucros são atualmente drenados para o pagamento dos juros – sobre isso clique aqui. As especulações sobre o motivo da desistência de Aronofsky foram muitas: resistências fazer um filme em 3D, recusa da MGM em pagar alto salário a um consagrado diretor e rejeição do estúdio pelo roteiro apresentado por Aronofsky.

O fato é que José Padilha acabou trabalhando com o roteiro do estreante Joshua Zetuner e como protagonista escolheu o sueco Joel Kinnaman. As locações foram feitas fora dos EUA, no Canadá – as más línguas diriam que todas essas alternativas mais em conta teriam sido escolhas naturais de um estúdio pendurado sobre um abismo financeiro.

sábado, fevereiro 22, 2014

A miséria da estética e da linguagem do trabalhador precarizado

No passado era o proletariado, os explorados e os excluídos. Hoje temos os precarizados: trabalhadores terceirizados, estagiários, temporários e todo um conjunto de profissionais treinados espontaneamente para suas funções através da manipulação de ícones em telas de celulares e mensageiros instantâneos usados no dia-a-dia, desde o velho ICQ até o atual Skype. Participantes incautos de uma ordem que foi secretamente gestada no interior de gigantescos prédios espelhados, com o apoio de uma estética e linguagem igualmente precarizadas criadas por planilhas eletrônicas e elegantes gráficos e tabelas projetadas em reuniões onde orgulhosos gestores professam discursos que misturam efeitos de ciência, religião, misticismo e fenômenos da natureza.

“Aquele que é duro consigo mesmo também é com os demais” (Theodor Adorno)

No início foi o gerundismo dos telemarketings e SACs de empresas que invadiu a fala cotidiana. Ao mesmo tempo, imensos prédios corporativos em concreto e vidros espelhados tomavam a paisagem urbana como fossem bunkers isolados do contato com o mundo exterior por meio de seguranças privados e sistemas centrais de climatização.

E no interior desses prédios foi secretamente gestada uma nova ordem estética e linguística para dar sentido imaginário a um novo tipo de organização de trabalho: a precarização – trabalhadores terceirizados, temporários, por tempo parcial, estagiários, trabalhadores da “economia subterrânea” etc.

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Quando fantasmas aparecem quem você chama: The Ghost Busters ou Ghostbusters?

Poucos sabem, mas o filme “Ghostbusters” de 1984 foi inspirado em uma série de TV exibida em 1975 nos EUA e no Brasil, chamada “The Ghost Busters”. Baseado no humor “pastelão” e “trash” a série contava as aventuras e desventuras de um trio (entre eles um gorila!) que perseguia fantasmas e seres sobrenaturais com um “desmaterializador de fantasmas”.  O roteiro original do filme “Ghostbusters” escrito por Dan Aykroyd e Harold Ramis (mais fiel ao espírito da série de TV de 1975) foi recusado pela Columbia Pictures e recriado dentro de um tom bem diferente, dessa vez cínico e marcado pelos valores do “cinema recuperativo” dos anos 1980 – os valores do empreendedorismo, individualismo, fama, sucesso e ambição misturados com os fantasmas que deveriam ser exorcizados em um país que tentava se reerguer através do neoliberalismo após a recessão da década de 1970.

Se o historiador francês Marc Ferro estiver certo de que o filme pode ser considerado um verdadeiro documento primário por expressar por meio de imagens e movimento o imaginário e sensibilidades de uma determinada época, então encontraremos uma expressão cinematográfica das diferentes sensibilidades de cada década em remakes ou adaptações.

Podemos fazer um exercício dessa análise comparativa com dois filmes, o original e o remake, dentro do subgênero “caçando fantasmas”: a série original The Ghost Busters (1975) e Ghostbusters (1984).

Esse verdadeiro subgênero tem uma longa tradição no cinema norte-americano onde fantasmas ou seres sobrenaturais surgem para perturbar a ordem do mundo dos vivos para depois serem caçados por heróis especializados nos fenômenos paranormais (ou nem tanto) e despachados para o outro mundo de onde não deveriam ter saído.

segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Por que somos seduzidos pelo virtual?



“É a verdade... a digitalização da vida real. Você não vai só a uma festa. Vai a uma festa com uma câmera digital. E seus amigos revivem a festa on line.” Essa afirmação de Sean Parker (criador do Napster, interpretado no filme por Justin Timberlake), que aparece solta nas frenéticas linhas de diálogo no filme “A Rede Social” (The Social Network, 2010), é a síntese do “desejo de virtualidade”, essa motivação individual que sustenta todo o projeto tecnognóstico que domina a atual agenda tecnológica e científica. O desejo pela digitalização da vida seria a recorrência de uma milenar aspiração gnóstica pela transcendência da carne e a imortalidade da espécie. Mas essa aspiração por transcendência transforma-se em má consciência ao ser capturada por sistemas econômicos e políticos. Transforma-se em ideologia, como questiona o pesquisador canadense em ciência política, tecnologia e cultura Arthur Kroker.

sábado, fevereiro 15, 2014

Projeto inédito no Brasil promete imersão real do espectador no cinema

3D, 4D, 5D, IMAX. A indústria cinematográfica atual vem mobilizando toda uma parafernália tecnológica para capturar o desejo de quebra da rotina e fuga da realidade do espectador. Imersão e interatividade são as palavras de ordem da indústria do entretenimento. Nesse mês uma inédita experiência de imersão cinematográfica em São Paulo pretende ir além dessas estratégias industriais padronizadas, mostrando que o espectador pode de fato imergir no espaço das sequências de um filme: é o audacioso e complexo projeto Cine Imersão. Inspirado no conceito de teatro interativo existente no Canadá, Austrália e Inglaterra, a fusão de cinema, performances, música e narrativas ao vivo em um só universo propiciaria uma experiência real de participação. Bem diferente da imersão tecnológica proposta pela indústria hollywoodiana onde mente e corpo permanecem passivos todo o tempo.

Filmes em tecnologia 3D e IMAX. Salas de projeção onde cadeiras se mexem e produzem efeitos reais como aromas, vento, fumaça etc. Tudo isso parece demonstrar uma coisa: o desejo crescente dos espectadores e não apenas assistir passivo, mas imergir no próprio filme.

Mas ainda assim nessas tecnologias a imersão é simulada: o corpo do espectador ainda está passivo na poltrona e ele não pode explorar o espaço. A tecnologia provoca os sentidos visuais, olfativos e táteis, mas o espaço permanece inalterado e sem interatividade.

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

A rua se tornou uma extensão do estúdio de TV?

A grande mídia coloca a morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade num quadro mais geral de supostos “ataques arbitrários a jornalistas” que representaria uma “ameaça à liberdade de informação”. Esse discurso parece cumprir um duplo propósito: esconder o fato de que essas manifestações apontam para uma profunda mudança nas relações entre mídia e sociedade e, também, encobrir o aproveitamento oportunista do episódio com o objetivo de reforçar ainda mais a escalada da percepção do medo e instabilidade que colocaria em xeque a legitimidade de um governo democraticamente eleito. A morte do cinegrafista poderia ser o sintoma de uma tendência mais generalizada onde as ruas se transformam em extensões do estúdio da TV e a mídia acaba se transformando na própria notícia. Se isso for verdade, estamos diante de mais uma bomba semiótica que demonstra que a atual guerra semiológica travada para a conquista da opinião pública passou para a fase da guerra total.

Certa vez o teórico e estrategista da ditadura militar brasileira, Golbery do Couto e Silva, disse: “Tudo, menos um cadáver!”. Era o período tenebroso da repressão política e do desaparecimento de ativistas políticos. Aparecer um cadáver que se transformasse em mártir era tudo que a ditadura não queria naquele momento e, por isso, a mídia era duramente controlada e censurada.

Era uma época em que a informação era perigosa para o Estado militar. A informação era um bem escasso, alienado e submetido às formas de dissimulação como a manipulação, mentira, censura etc.

Hoje, esse cenário de dissimulações da informação foi deixado para trás. Vivemos o momento da simulação ou daquilo que o pensador francês Jean Baudrillard chamava de “obscenidade” e “êxtase da comunicação”: não só as imagens de acontecimentos se proliferam e se multiplicam como, principalmente, começam a surgir relações cada vez mais promíscuas entre os acontecimentos e as mídias a tal ponto que não sabemos mais quem transmite e o que é transmitido – é o império da simulação.

terça-feira, fevereiro 11, 2014

Em Observação: "Computer Chess" (2013) - Inteligência Artificial e cultura nerd

Softwares de xadrez tentam imitar a inteligência humana enquanto programadores de computador discutem o que os motivam a procurar a Inteligência Artificial. Ambientado no início dos anos 1980, “Computer Chess”, o filme faz um mergulho ao mesmo tempo sério e bem-humorado na cultura nerd dos engenheiros do Vale do Silício: suas motivações, esquisitices e a estranha relação fetichista com os computadores que estava por trás do início da explosão da indústria da tecnologia nos EUA. Filmado em preto e branco, o filme cria uma estranha atmosfera retro como se testemunhássemos a intimidade de pessoas que acreditavam que a matemática e algoritmos poderiam reproduzir a complexidade humana.

domingo, fevereiro 09, 2014

Publicidade explora a geometria sagrada subliminar

Atualmente a inteligência visual publicitária vem mobilizando técnicas cada vez mais sofisticadas que exploram recursos não apenas psicológicos ou comportamentais, mas agora atinge uma dimensão de simbolismo mais profundo: a chamada “geometria sagrada”, expressão usada pelo esoterismo e gnosticismo para designar toda uma área de estudos de como as formas geométricas básicas representam conteúdos arquetípicos e padrões (modelos, ritmos e proporções) que integram o repertório que permite tanto a Natureza como o psiquismo humano se expressar. Com o auxílio das técnicas da semiótica visual, círculos, quadrados e triângulos estariam sendo instrumentalizados para criar uma verdadeira geometria subliminar.

Quantos de nós veem? Em uma cultura onde a informação é transmitida numa forma predominantemente visual, enxergar ou olhar para telas, displays, outdoors, placas, impressos etc. parece ser uma função natural e espontânea. Não nos importamos muito com essa função, a não ser nos seus aspectos oftalmológicos quando necessitamos de lentes corretoras ou de intervenções cirúrgicas.

Continuamos a enxergar ou olhar, mas, de fato, realmente vemos? Essa simples pergunta abrange uma longa lista de atitudes ou funções multilaterais como observar, perceber, compreender, reconhecer, contemplar, descobrir, entre outras. Pesquisadores como Donis A. Dondis sugerem uma complexa “inteligência visual” por trás do simples ato de olhar e aponta para a necessidade de uma “alfabetização visual” para que possamos compreender mais facilmente os significados assumidos pelas formas visuais - Leia DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual, Martins Editora, 2009.

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Comercial "Eu Sou O Futebol" é uma bomba semiótica?

O novo vídeo publicitário da Brahma alusivo à Copa do Mundo no Brasil intitulado “Eu Sou O Futebol” surge no momento de pesada atmosfera política do “Não Vai Ter Copa” nesse início de ano. Numa coincidência significativa, o vídeo toma emprestados clichês midiáticos da cobertura das manifestações para compor o protagonista “Futebol” e a torcida brasileira nas ruas: o “Futebol” como uma figura encapuzada, vestida de preto e calçando coturno e a torcida representada através de uma composição visual ambígua que em alguns planos de câmera parece se assemelhar a manifestantes. O que significaria essa coincidência? Intertextualidade? Ressignificação de signos negativos em imagens positivas tal como no vídeo do ano passado? Um ato falho da criação publicitária? Ou mais uma deliberada “bomba semiótica” para reforçar o pesado ambiente político?

Nosso leitor Francisco Freire se diz intrigado com o novo comercial da Brahma intitulado “Eu Sou O Futebol”, alusivo à Copa do Mundo no Brasil nesse ano. Ele suspeita que  haveria algo de muito errado nesse filme: uma figura protagonista encapuzada, de coturno carregando uma mala preta representando o futebol.

Instigado por esse estranhamento demonstrado pelo nosso leitor, vamos analisar essa peça publicitária e submetê-la uma análise semiótica: será que o comercial da Brahma poderia ser mais uma bomba semiótica? E, o que seria surpreendente, dentro do campo publicitário?!

domingo, fevereiro 02, 2014

Filme "Trabalhar Cansa" disseca as superstições da classe média

O filme brasileiro “Trabalhar Cansa” (2011) a princípio confunde o espectador: É terror? Drama social? Realismo fantástico? A sensação de estranhamento a que são submetidos tanto espectadores quanto os protagonistas Otávio e Helena ajuda formar um tragicômico quadro dos pesadelos das classes médias. Ele, um homem de meia idade desempregado enquanto ela se apega ao ideário do empreendedorismo abrindo um pequeno mercado de bairro. De um lado Otávio se submete ao irracionalismo da religião autoajuda para suportar a realidade da precarização do trabalho; e do outro, Helena tenta compreender fenômenos supostamente sobrenaturais no seu mercadinho onde ao mesmo tempo crescem tensões trabalhistas. Dois instantâneos de uma classe social ao mesmo tempo agarrada no racionalismo da meritocracia e na irracionalidade da autoajuda, magia e astrologia. Na verdade, os dois lados de uma mesma moeda.

Na sua pesquisa sobre a coluna de astrologia do jornal Los Angeles Times em 1952, o pensador Theodor Adorno (principal membro da chamada Escola de Frankfurt) chegou à conclusão de que as previsões que as estrelas faziam para cada signo do zodíaco nada tinham a ver com o Oculto. Para Adorno, a astrologia de massas se tratava de uma “superstição secundária”: o oculto deixa de ser “o estranho” para se tornar institucionalizado, objetivado e amplamente socializado – Leia ADORNO, Theodor. As Estrelas Descem à Terra, São Paulo: Editora Unesp, 2007.

Mais ainda: a busca da felicidade por meio da “supertição secundária” não seria uma irracionalidade que operaria numa esfera exterior à Razão – ilusão, viciosidade, dependência emocional etc. Pelo contrário, ela resultaria dos próprios processos racionais do cotidiano das pessoas: o trabalho, competição, ascensão social, busca pelo mérito, sobrevivência material e sucesso financeiro.

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