domingo, abril 29, 2012

Somos todos Estrangeiros no filme "O Homem Que Caiu na Terra"

Um filme desafiador, abstrato e místico de uma época em que diretores idiossincráticos procuravam fazer grandes filmes. “O Homem Que Caiu na Terra” (The Man Who Fell To Earth, 1976) do diretor Nicolas Roeg estrelado por David Bowie é o ápice de uma cena pop onde grandes bandas de rock como Van Der Graaf Generator, Genesis e King Crimson (e o próprio Bowie de personagens musicais como Star Man e Ziggy Stardust) construíam longas suítes místicas e de inspiração ocultista, que expressavam a condição humana do “Estrangeiro”: tal como o protagonista no filme, o homem sente-se nesse mundo como um exilado, um alien que sonha em retornar para o seu verdadeiro lar, mas é desviado dos seus propósitos por meio do poder entorpecedor da TV e do gin.

O personagem do Estrangeiro é um dos temas arquetípicos da nova mitologia pop a partir do pós-guerra: Rebeldes sem causa, “heroin heroes”, punks gritando “no future”, ácido e música techno em “raves” associadas ao “trance” (transe) com conotações espiritualista ou “new age” são representações midiáticas dessa sensação de alienação, estranhamento e deslocamento em relação ao país, família e amigos.

O Estrangeiro é aquele que não se sente em casa em lugar algum. Procura sempre esquecer o seu passado, sua história, o que é. Passa a maior parte do tempo em silêncio, fechado no seu drama, tenso, crispado. Quieto observa o mundo cair em pedaços. 

Esse verdadeiro arquétipo contemporâneo é o núcleo espiritual de toda tendência midiática que explora a melancolia adolescente nas mais variadas tendências em moda, comportamento, filmes e videoclipes: dark, punk, gótico, emo etc.

A cultura pop e o rock’roll irão celebrizar o personagem do estrangeiro, tornando-o o motor da criatividade poética que destila desde as dores do amor incompreendido até o sentimento de estranhamento em um mundo frio e cruel. Dos rebeldes sem causa da década de 1950 aos rebeldes com causas políticas dos anos 1960, o centro espiritual é o mal estar do jovem em uma sociedade que prolonga a adolescência o máximo possível por causa de um mercado de trabalho que não consegue absorver a todos rapidamente. O resultado é um jovem que não é criança e nem adulto, à margem e alheio aos controles sociais.

Mas é na década de 1970 que esse sentimento de estrangeiro ganha suas expressões mais refinadas na cultura pop quando o rock começa a se inspirar no ocultismo e misticismo para criar letras, músicas e marcantes álbuns conceituais. Compositores como Peter Hammil do Van Der Graaf Generator (longas suítes místicas como em “The Plague of the Lighthouse Keepers” onde o homem é comparado a um guardião de um farol perdido no fim do mundo) ou a longa composição de Peter Gabriel do Genesis chamada “Supper is Ready” (todo um lado de um LP) sobre a eterna luta espiritual entre o Bem e o Mal.

sexta-feira, abril 27, 2012

Uma trilogia do Tempo no cinema

O tempo como uma falha cósmica responsável pela inércia e entropia, o tempo como um hipertexto, o tempo como interface para universos paralelos manipulado por uma máquina antiterrorismo e, finalmente, o tempo como uma prisão criada pela ilusão de ralidade de um programa computacional militar. Essas são as diferentes facetas sobre o tempo no cinema em três produções cinematográficas: "O Feitiço do Tempo" (Groundhog Day, 1993), "Déjà Vu" (Déjà Vu, 2006) e "Contra o Tempo" (Source Code, 2010). Nesses três filmes um ponto temático comum: a luta do protagonista em fugir da ilusão da flecha temporal que permita criar um tempo/espaço alternativo e alterar o destino. Mas nem sempre o cinema mostrou a questão do Tempo dessa maneira.


Até a década de 60 temos a visão clássica da viagem no tempo onde apenas podemos testemunhar os eventos do passado e futuro sem poder alterá-los. Podemos até ser mortos, mas jamais conseguiríamos alterar a seta do tempo. Por exemplo, na cultuada série de TV “O Tunel do Tempo” (The Time Tunnel, 1966-67) isso é marcante: os dois protagonistas (Phillip e Doug) tentam alterar eventos do passado, mas, no último momento, fatos providenciais impedem a mudança da História. Seria a providência divina?
A partir da clássica trilogia “De Volta para o Futuro” (Back to The Future, 1985) temos a definitiva mudança dessa concepção clássica do tempo. Podemos voltar ao passado, alterar os fatos para, simultaneamente, alterar o presente. Mais do que isso, em filmes como “O Efeito Borboleta” (The Butterfly Effect, 2004) ou o “O Exterminador do Futuro” (The Terminator, 1984) o tempo transforma-se em um hipertexto onde cada opção cria um futuro ou um passado alternativo, configurando um complexo tempo/espaço com uma série de universos paralelos que, potencialmente, poderiam se tangenciar ou interagirem-se.

quarta-feira, abril 25, 2012

Scorsese faz crítica à cultura das celebridades no filme "O Rei da Comédia"

O filme mais injustiçado da carreira do diretor Martin Scorsese, “O Rei da Comédia” (The King of Comedy, 1983) na época foi um fracasso de bilheteria. Ao contrário da sexualidade e violência de personagens dos filmes anteriores “Taxi Driver” e “Touro Indomável”, o diretor apresentou ao público um Robert De Niro contido e o comediante Jerry Lewis enfadado e amargo. Scorsese mergulha fundo na cultura da celebridade contemporânea ao nos mostrar um fã que vive até o extremo a fantasia de tornar-se um astro da TV. Como? Sequestrando o próprio ídolo. À frente do seu tempo, Scorsese antecipa o atual interesse mórbido pelas celebridades onde elas são mais invejadas do que admiradas. E por trás da inveja escondem-se a solidão e o ressentimento.
O solitário é aquele que tem tempo de sobra para pensar em sua total insatisfação, o infeliz é aquele que jamais terá essa oportunidade. (Alfred Adler)
Para ser feliz, é preciso ser conhecido? Em um mundo atual onde o número de “seguidores” no twitter ou de “amigos” no facebook cada vez mais se torna a medida da própria identidade do indivíduo, parece que sim. Essa medida de felicidade se insere na chamada “cultura da celebridade” onde a vida real acabou misturando-se com categorias do entretenimento como a “fama”, “sucesso”, “desportividade”, “passatempo”, “escapismo” etc.

E a busca dessa celebrização de si mesmo implica em um novo ascetismo, dessa vez mundano: esforço diário em cultivar uma rede de “amigos”, esforços logísticos em criar acontecimentos que atraiam a atenção de todos (e se possível da própria mídia), dedicação e esforço em focar seu pensamento ao sucesso, capacidade em desprezar fatos reais que entrem em contradição com a imagem que o indivíduo quer criar para todos etc. Tudo isso cria uma luta brutal contra si mesmo, em negar a própria solidão e insatisfação através da hiperatividade voltada ao mundo exterior.

O diretor Martin Scorsese vai a fundo nessa espécie de psicologia da moderna cultura da celebridade em “O Rei da Comédia” (The King of Comedy, 1983), um filme árido e doloroso ao representar tão bem a miséria interior de um protagonista que faz de tudo para alcançar a celebridade para escapar de uma vida vazia e infeliz. Depois de Scorsese apresentar personagens repletos de violência e sexualidade nos filmes anteriores “Taxi Driver” (1976) e “Touro Indomável” (1980), em “O Rei da Comédia” vemos personagens agonizando na solidão e raiva, porém, contidos e emocionalmente estéreis. O diretor conseguiu arrancar performances contidas e sutis de um comediante (Jerry Lewis) e um ator (Robert De Niro) que, até então, notabilizaram-se por representar personagens urgentes e intensos.

sábado, abril 21, 2012

Jerry Lewis, o riso e o horror


Todo riso está próximo do horror que o prepara”, disse certa vez Theodor Adorno, destacado membro da chamada escola de Frankfurt, ao homenagear o 75° aniversário do seu amigo Charles Chaplin. Jerry Lewis, legítimo decendente da comédia “slapstick” de Chaplin e Buster Keaton, tornou explícita essa proximidade com o seu projeto de 1972 que hoje tornou-se uma lenda no meio de cinéfilos e pesquisadores: o filme “The Day The Clown Cried” (O Dia em que o Palhaço Chorou), um projeto não concluído, jamais exibido e apenas assistido por um grupo restrito de críticos e produtores hollywoodianos cuja opinião foi unânime na época – “isso é simplesmente errado!”.

Um filme cuja sinopse poderia ser assim resumida: um decadente palhaço de circo — interpretado pelo próprio Jerry Lewis — no começo da Segunda Guerra Mundial, é despedido e preso por zombar de Hitler. Acaba parando em um campo de concentração para presos políticos em Auschwitz. E sendo um palhaço com algum sucesso entre as crianças, ele arranja um trabalho por lá: levar as crianças quietas e comportadas enquanto se divertem com o palhaço, sem suspeitar que estão, na verdade, indo para a câmara de gás.

O roteiro de 164 páginas sobre a estória de um palhaço que leva criança para fornos em Auschwitz virou objeto de lenda, lido e partilhado através de uma rede de cinéfilos pelo mundo. Desde o filme de 1968 de Mel Brooks “Primavera para Hitler”, ninguém do mundo do cinema poderia imaginar que seria possível outra comédia envolvendo a Alemanha nazista.

quinta-feira, abril 19, 2012

O Fascismo Espiritual no filme "Ink"


Uma espécie de organização fascista, os Incubus, habita o plano astral da humanidade, instigando pesadelos relacionados com humilhação e ressentimentos nos humanos no plano físico. Isso faz dois personagens, simultaneamente nos diferentes planos, serem consumidos pela vaidade e orgulho colocando em perigo a alma de uma criança raptada pelos Incubus. Ela será defendida por "Storytellers", guardiões dos bons sonhos. Esse é o filme independente "Ink" (2009) que revoluciona as tradicionais representações do cinema sobre as relações entre os mundos espiritual e físico. Fiel ao moderno hermetismo, o filme mostra a interpenetração entre os dois planos, com consequências que lembram a psicologia do nazi-fascismo tal como discutida por Alfred Adler e Erich Fromm.

domingo, abril 15, 2012

O Homem Diante da Queda no Filme "Dublê de Anjo"

Em plena era dos efeitos especiais digitais no cinema, o indiano Tarsem Singh (veterano diretor de videoclipes e filmes publicitários) resolveu fazer um filme de fantasia baseado unicamente em figurinos, fotografia e locações buscadas em 28 países que acreditamos serem impossíveis. Aparentemente somente poderiam ser imagens geradas em computador.  Mas são reais! Com as escadas infinitas e labirintos sem saída que mais parecem gravuras saídas da imaginação de M.C. Escher, o filme "Dublê de Anjo" (The Fall, 2006) narra a tentiva de suicídio de um amargo dublê de cinema hospitalizado após um acidente em filmagens. A improvável amizade com uma menina de quatro anos cria um mundo imaginário, uma simbólica narrativa da Queda e Redenção humanas.

Tarsem Singh Dhabdwar arriscou quase tudo que tinha para fazer um filme que durante anos ninguém estava disposto a financiar. Tarsem fez muito dinheiro como diretor de filmes publicitários e videoclipes de bandas como Green Day e REM (por exemplo, o videoclip “Losing My Religion”) e via o projeto do filme “Dublê de Anjo” (The Fall, 2006) como a realização de “um sonho de todos no meio publicitário, o de um dia fazer um grande filme”.

Por quatro anos Tarsem capturou imagens de 28 países em locais que, acreditamos, não seriam possíveis. O diretor afirma que não usou computadores para criá-los: eles existem. Planos subaquáticos de um elefante nadando graciosamente enquanto carrega homens nas costas, pátios de palácios construídos a partir de escadas interligadas que parecem ter saído de gravuras de M.C. Escher, uma aldeia agarrada a uma montanha onde os prédios parecem ter sido individualmente pintados em tons sutilmente diferentes de azul.

São imagens surpreendentes porque reais, com detalhes que escapariam até de um artista digital. Diferente do seu filme anterior, “A Cela” (The Cell, 2000), Tarsem decidiu fazer um filme baseado unicamente na fotografia, locações e figurino.

Por isso, o filme é quase impossível de descrevê-lo. Podemos dizer o que acontece, mas não conseguimos transmitir o espanto de como isso acontece. Para um dos produtores do filme, o diretor David Fincher (“O Clube da Luta” e “A Rede Social”), o filme é um cruzamento de “O Mágico de Oz” com Tarkowsky.

sábado, abril 14, 2012

Por Que os Pais Desapareceram do Imaginário Infantil?

Animações para o publico infantil apontam para uma característica recorrente: o desaparecimento dos pais no imaginário infantil. Dos "Flintstones" dos anos 1960 aos atuais "Backyardigans" ou "Charlie e Lola" encontramos o progresssivo desparecimento simbólico e literal dos pais nas narrativas. É o sintoma do anacronismo da família como agência sociaizadora, suplantada pela indústria cultural das celebridades e entretenimento que oferecem modelos mais atraentes de "superpais".

Nessa semana discutia com os alunos do curso de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi algumas ideias da Escola de Frankfurt. Mais precisamente, discutia a atualidade dos famosos “Estudos sobe a Autoridade e a Família” que Theodor Adorno e Max Horkheimer empreenderam na década de 1950. 

Nesses estudos os autores encontraram uma tensão dialética no interior da família no capitalismo tardio: de um lado, a família podia ser vista como a terrível matriz dos mecanismos de internalização da submissão (agência psicológica da sociedade), mas, do outro, a possibilidade de se tornar uma oposição crítica ao Estado Totalitário.

Principalmente no momento atual em que a chamada Indústria Cultural esvazia a autoridade e competência da família, tornando-a um suplemento supérfluo já que toda a indústria das celebridades e entretenimento suplantaram a figura paterna ao oferecer novas figuras de “super-pais” como modelos de internalização da autoridade.

Exatamente nesse momento em que a função de socialização da família desaparece para transformar-se em meras imagens paródicas em filmes publicitários de cereais matinais e margarinas (imagens congeladas de felicidade), a instituição familiar pode tornar-se uma instância “negativa”: libertar a inteira estrutura familiar da sua tradicional função repressiva e “realizar o princípio do amor”, como afirmava Adorno.

sexta-feira, abril 06, 2012

O Sabor Gnóstico dos Muppets

A longevidade dos Muppets, que resistiram à concorrência das modernas animações digitais, parece apontar para uma mudança da sensibilidade infantil em relação aos universos ficcionais: muito mais metalinguística, reflexiva e irônica. A percepção de que a realidade não é mais estável e perene, mas uma construção artificial, plástica, que pode a qualquer momento ser alterada pela força da imaginação. Mas os Muppets parecem atribuir um valor a mais a essa força, um sentido místico.

Nessa Páscoa resolvi inovar. Ao invés de dar ovos de páscoa para meus filhos, resolvi dar dois DVDs clássicos dos Muppets: “Os Muppets: o filme” de 1979 e “Os Muppets Conquistam Nova Iorque” de 1984. Para quem não conhece, a série “Os Muppets” é um universo ficcional criado por Jim Henson que iniciou na TV norte-americana nos anos 1970. A principal característica das narrativas é que os diversos personagens que compõem o universo Muppets (Caco, Miss Piggy, Gonzo, Urso Fozzie etc.) convivem com humanos de uma forma natural. O que já é suficiente produzir uma série de situações cômicas e inusitadas.

Assistimos juntos aos filmes: o primeiro que narra a ascensão dos Muppets, do anonimato de Caco, o Sapo, nos pântanos até o sucesso em Hollywood e o outro onde eles tentam fazer um musical de sucesso na Broadway.

A primeira questão levantada por eles: por que ninguém no mundo humano preocupa-se com o fato de os Muppets serem diferentes dos seres humanos?  A questão levantada chamou-me a atenção de uma espécie de sensibilidade metalinguística ou irônica das crianças contemporâneas em relação aos filmes e animações.

terça-feira, abril 03, 2012

Religião e a Origem do Totalitarismo Moderno

O livro “The New Inquisitions” do professor da Michigan State University Arthur Versluis localiza as origens do Totalitarismo moderno e das práticas de controle do pensamento no século II com a institucionalização da Igreja Católica e o surgimento da ortodoxia que iria identificar heresias e hereges. As primeiras vítimas foram os gnósticos, herdeiros de uma anterior tradição religiosa pluralista. Se no passado os Impérios dominavam exclusivamente recursos naturais e escravos, a partir da Igreja Católica em II DC surge também a necessidade do controle do pensamento, aprimorado até chegar à Inquisição no século XII. Hoje não são mais necessárias câmaras de torturas já que a Internet e redes sociais tornaram os pensamentos mais acessíveis do que nunca.

A institucionalização da Igreja historicamente se fundamentou na ortodoxia que criaria figura do “herege” e a identificação das “heresias”. Mas antes do Cristianismo institucionalizado havia outro modelo bem diferente. 

Olhando para o cristianismo oriental e, mais a leste, para as religiões da Índia, China e Tibet havia toda uma tradição muito mais pluralista: o Hinduísmo abrigava uma variedade de tradições (vedanta, védica, tântrica etc.); o pluralismo chinês onde budismo, taoismo e confucionismo conviviam lado a lado.

No Cristianismo primitivo havia também um modelo pluralista fundamentado nas antigas tradições da Ásia (Platonismo, Hermetismo, misticismo judaico etc.) que foi denominado “Gnosticismo” porque a sua unidade não era dada por uma forma externa – organização burocrática ou histórica – mas por um conhecimento interior, a “gnosis”.


Mas tudo mudou com a institucionalização da Igreja no século II DC: os padres da primeira Igreja como Tertuliano de Cartago pressentiram a necessidade de racionalizar os dogmas da religião através de termos como “ortodoxia” oposta da “heresia”. Pela primeira vez surge a necessidade do controle do pensamento por meio de uma forma de Poder. Além de conquistar terras, escravos e riquezas, pela primeira vez as estratégias políticas de dominação passaram a ter necessidade de reprimir por diversos instrumentos qualquer pensamento divergente da norma. Essa é a origem das modernas formas de Totalitarismo como o fascismo, nazismo até instrumentos contemporâneos da “nova inquisição” como as redes sociais na Internet e teorias conspiratórias como a “illuminatifobia”.

sexta-feira, março 30, 2012

A Ironia do Foguete de Brinquedo da NASA

Depois da corrida espacial que culminou com a chegada do homem na Lua em 1969 e de toda a construção da mitologia em torno dos astronautas como “eleitos” e símbolos da ideologia do “destino manifesto” norte-americano, ironicamente tudo isso se converteu em brinquedos e souvenirs licenciados pela NASA. Foguetes retros e nostálgicos de uma época que acabou, onde os riscos e gastos econômicos substituiriam o espaço sideral pelo ciberespaço . Toda a tele-exploração através de sondas automáticas e robôs desde o Projeto Viking em Marte nos anos 1970 resultaram na aposentadoria dos heroicos astronautas e o desenvolvimento da tecnologia telemática aplicada à endocolonização do planeta Terra por meio de satélites, estações orbitais e GPS para finalidades de monitoramento e controle.

Nessa semana meu filho de quatro anos chegou da escola acompanhado de seu amiguinho que, percebi, segurava um brinquedo colorido e brilhante. Aproximei-me para recebê-los e observei mais atentamente o brinquedo: era um foguete espacial, grande, aerodinâmico, com belas asas arredondadas. Atentei a um detalhe na fuselagem do foguete. Era o logo da NASA, a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço dos EUA, em destaque no centro do foguete, o que dava ao brinquedo um ar de ser licenciado pela agência americana.

O brinquedo havia sido comprado pela Internet em um site chamado “Space Store & NASA Gift Shop” com produtos licenciados pela agência aeroespacial: roupas de astronauta, jogos e tudo o que envolve a conquista do espaço para crianças e jovens.

Uma franquia da NASA? Sim. Todo o imaginário da corrida espacial transformado em brinquedos e souvenirs. Há uma ironia nesse brinquedo: toda a heroica e épica aventura da conquista do espaço que culminou, em 1969, com a chegada do homem na Lua transformado em uma franquia que vende brinquedos com um indiscutível ar retro ou nostálgico. O design aerodinâmico e as asas arrojadas do brinquedo lembram os velhos tempos do início da corrida espacial representados em desenhos animados do Pica-Pau ou séries de TV como “Jornada nas Estrelas” das décadas de 1950-60.

sábado, março 24, 2012

°°°°°°°°°A Paranoia Gnóstica de Philip K. Dick no Filme "O Homem Duplo"

Baseado no livro escrito por Philip K. Dick em 1977, o filme “O Homem Duplo” (A Scanner Darkly, 2006) foi profético, principalmente após as recentes notícias do projeto da CIA em fazer uma “Internet das coisas” a partir da tecnologia de “computação em nuvem”: o monitoramento total a partir dos objetos que utilizamos no dia-a-dia. “O Homem Duplo” narra uma sociedade devastada por uma droga sintética e monitorada integralmente por um “scanner holográfico” e apresenta a paranoia como a única possibilidade de encontrar a “centelha interior” em um mundo onde a tecnologia supera todos os pesadelos criados pela literatura ou pelo mundo onírico. 

 Desde 1982 com o filme “Blade Runner – O Caçador de Andróides” roteiristas e produtores de Hollywood passaram a ter um nítido interesse pela obra do escritor de sci fi assumidamente gnóstico Philip K. Dick. As diversas adaptações posteriores dos livros do autor (“O Vingador do Futuro”, “Minority Report”, “O Pagamento” etc.) sempre acabaram ressaltando os atributos heroicos dos protagonistas em tramas movimentadas para se conformar aos ditames de Hollywood. 

Em “O Homem Duplo”, adaptação do livro de 1977 “A Scanner Darkly”, encontramos o mesmo protagonista dividido, tema recorrente em sua obra – como era o próprio autor que tinha a vida marcada pela divisão esquizofrênica: a ambiguidade que as pessoas devem assumir em uma sociedade de vigilância total onde a paranoia diante de um inimigo invisível rege a vida de todos. 

Temos um filme focado não mais nas ações hollywoodianamente heroicas dos protagonistas, mas na paranoia de “losers” imersos em uma sociedade totalitária.

No caso do livro “A Scanner Darkly”, K. Dick foi profético ao mostrar uma sociedade monitorada integralmente por um “scanner holográfico” e ao apresentar a percepção paranoica como a única possibilidade de verdade em um mundo onde a tecnologia supera todos os pesadelos criados pela literatura ou pelo mundo onírico. 

sexta-feira, março 23, 2012

O Fim do "Modelo Matrix" de Gnosticismo Pop

A partir do bombástico lançamento do Windows 95, tivemos o crescimento especulativo das potencialidades da Internet e das tecnologias computacionais. Paralelo a isso, o crescimento das técnicas motivacionais e de auto-ajuda explicitamente inspirados em modelos de programação de computadores. Em 2.000 tivemos a quebra das empresas “ponto com” e da bolsa Nasdaq e, com isso, a desaceleração de toda uma ciberutopia. Os filmes gnósticos refletem essa mudança com a crise do "modelo Matrix" de gnosticismo pop e a mudança na busca da gnose, cada vez mais focada em conflitos internos do protagonista.

Para o historiador francês Marc Ferro todo filme é um documento porque representaria o imaginário de uma determinada sociedade ou período histórico: "o imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos" Não importa se o filme refere-se a um passado remoto ou imediato, pois sempre vai além do seu conteúdo.

Fortemente conectado com o imaginário social deste final e início de novo século, a produção cinematográfica atual, em particular a norte-americana, refletiria não apenas o imaginário tecnológico transcendentalista como, também, questões existenciais, éticas e espirituais decorrentes de tal imaginário.

Percebe-se uma nítida alteração temática nos filmes gnósticos na passagem de final de século para início de novo século. Os anos de 1999-2000 marcam uma mudança da representação da irrealidade do mundo no qual o protagonista vive.

quarta-feira, março 21, 2012

A Metástase do Mal no Filme "REC 2 - Possuídos"

A crítica especializada é unânime em afirmar que “REC 2 - Possuídos” ([REC]2, 2009) decepciona em relação ao primeiro filme. Por outro lado, sua virtude parece ser a de confirmar as teses do sociólogo polonês Zygmunt Bauman a respeito da era da “modernidade líquida” onde as noções de “saúde” e “doença” tornaram-se instáveis e imprecisas. O resultado é uma cultura obcecada pela saúde cujo horror à contaminação viral é a sua melhor metáfora, explorada nas últimas décadas por uma galeria de filmes onde “REC 2” torna-se o mais novo integrante. O vírus como o “outro lado” da saúde, aquilo que está adormecido como uma bomba relógio pronta para entrar em metástase a qualquer momento. Assim como os zumbis possuídos pelo Mal que, de repente, pululam por todos os lados no prédio em quarentena de “REC”. O Mal como metástase, dessa vez demoníaca.

Quando o filme espanhol “REC” estreou em 2007 todos se surpreenderam com a proposta da dupla de diretores Jaune Balagueró e Paco Plaza. Um filme que fugia dos pastiches dos filmes de zumbis atuais, fazendo juz à saga iniciada com “A Noite dos Mortos Vivos” de George Romero em 1968: os zumbis agora vistos pelo ponto de vista da epidemiologia e vigilância sanitária. Repórter, cinegrafista e bombeiros presos em um prédio posto em quarentena enquanto uma espécie de vírus se propaga e zumbis pululam por todos os lados. A narrativa fazia realmente a câmera existir na realidade do filme com imensos planos sequência e forte sensação de realismo documental.

Três anos depois, e com mais dinheiro para a produção, a dupla de diretores retorna para o mesmo prédio momentos depois do término do primeiro filme. Agora vemos as imagens da própria SWAT espanhola que vai entrar no prédio posto em quarentena com a função de proteger o Dr. Owen, um suposto sanitarista que vai procurar uma resposta para a estranha contaminação.

Como avisa o título, Dr. Owen vai descobrir que as pessoas que se transformaram em raivosos e violentos zumbis não estão meramente infectados: elas podem estar possuídas por uma entidade demoníaca que se propaga viralmente.

domingo, março 18, 2012

A controvérsia sobre a definição do termo "Gnosticismo"

Mestrando pela Universidade de Lisboa, o nosso leitor Douglas Remonatto nos envia uma contribuição para a discussão em torno de termos tão fugidios como Gnosticismo e Gnose. De heresia cristã, hoje reconhece-se o Gnosticismo como um sistema autônomo e paralelo às grandes religiões, embora  composto por diversas correntes. Portanto, é necessário compreender como cada corrente interpreta concepções associadas ao Gnosticismo como dualismo, centelha divina presente no homem, entre outros.


ATUALIDADES DO GNOSTICISMO
Por Douglas A. Remonatto

Hoje, mais que nunca, sabe-se que muitos problemas circundam uma possível definição do termo “Gnosticismo”. É necessário, para bem compreender a complexidade conferida a esse termo, possuir uma visão ampla do fenómeno, observando-o em cada momento de sua especificidade histórica.

A tentativa de uma análise mais profunda, no campo filosófico, do fenómeno que hoje denominamos “gnosticismo” é algo relativamente novo. No entanto, mesmo em meio a sua contemporaneidade, muitas das abordagens académicas disseminadas já encontram-se ultrapassadas. Isso por que os critérios metodológicos utilizados por alguns pesquisadores[1] há três décadas atrás, já não se enquadram dentro da perspectiva critica histórico-filosófica actual.

Nos primeiros séculos cristãos era possível encontrar um número muito grande de correntes ditas gnósticas (Ásia Menor, Síria, Palestina, Egito…). Esta diversidade esteve presente de tal maneira ao longo da história que hoje, os pesquisadores, já não se propõem a encontrar uma única definição para o termo “gnosticismo” e passaram a assumir a sua pluralidade. Logo, o mais correto seria falar de gnosticismos.

sexta-feira, março 16, 2012

Uma Estranha Distopia no Filme "O Homem Que Incomoda"

É uma alegoria religiosa? Uma declaração política? Um filme de horror e fantástico? Ou uma sátira surrealista sobre a superficialidade da sociedade de consumo? Certamente é tudo isso, o que torna o filme norueguês “O Homem Que Incomoda” (Den Brysomme Mannen, 2006) uma estranha distopia: um homem sem memórias preso em uma espécie de mundo alternativo que, de tão perfeito e correto, a comida não tem sabor ou cheiro e o álcool não embriaga. Não temos o tom de crítica política explícita sobre estados totalitários como em livros ou filmes como “1984” ou “THX 1138”. Mas presenciamos o esgarçamento da noção de realidade ao representá-la como algo fabricado, artificial e essencialmente corrompido (um simulacro), como uma armadilha cósmica criada por alguém que não nos ama. O resultado do ardil de alguma divindade maquiavélica.

Com seu terno amarrotado, despenteado barba e boné de beisebol puxado para baixo sobre os olhos, Andreas Ramsfjellf (Trond Fausa Aurvaag) desembarca de um ônibus em um posto de gasolina em ruínas no meio do nada. Ele não lembra como veio parar ali e quem ele é. Ao chegar é saudado por um estranho sob uma faixa estendida escrito "Bem Vindo". O estranho leva Andreas em um carro, passando por arredores rochosos e áridos até chegar a uma cidade nas cercanias de um verde luxuriante, onde os casais felizes jogam badminton e todos sorriem e passam o tempo discutindo sobre consumo e decoração. O estranho entrega para Andreas as chaves do seu novo apartamento e o endereço do seu novo emprego.

Tudo sobre a vida nova Andreas parece perfeito, mas durante a sua hora de almoço, ele começa a sentir que algo não está certo. Ninguém parece notar um homem morto, brutalmente empalado pelas grades da cerca de um prédio. Os transeuntes passam indiferentes diante do sangrento cenário, enquanto calmamente o corpo é removido por estranhos agentes que nunca demonstram emoções.

Naquela noite em um bar, Andreas percebe que não importa o quanto ele consuma bebidas alcoólicas: ele permanece sempre sóbrio.  Alimentos não têm qualquer gosto ou cheiro. No dia seguinte no trabalho, Andreas submete-se a um impulso perverso de enfiar o dedo em uma máquina trituradora de papéis. Seus colegas de trabalho reagem com uma estranha calma. Quando volta a si, Andreas percebe que o dedo de alguma forma foi recolocado no lugar e está completamente curado. 

sábado, março 10, 2012

O filme "REC" e a Natureza dos Monstros Contemporâneos

Longe dos pastiches dos atuais filmes sobre zumbis, o espanhol “REC” (2007) faz jus à saga iniciada por George Romero em 1968 com “A Noite dos Mortos Vivos”: os zumbis são vistos por um ângulo diferente como um problema de epidemiologia e vigilância sanitária (repórter, cinegrafista e bombeiros presos em um prédio posto em quarentena enquanto o vírus se propaga e zumbis pululam por todos os lados). Por isso, “REC” faz parte de imensa galeria de novos monstros que vão dos zumbis de Romero à criatura de “Cloverfield – Monstro” (2008) que romperam com o paradigma clássico da monstruosidade (“o disforme, o feio e o mau”). O que há por trás dessa mudança da representação dos monstros no cinema contemporâneo?


O filme inicia com uma jovem e telegênica apresentadora (Angela Vidal) do programa “Enquanto Você Dorme” que apresenta a vida daqueles que trabalham nas madrugadas. Nessa noite Angela, junto com o seu cinegrafista Pablo, vai passar a noite em um agrupamento de bombeiros para mostrar sua rotina. Percebemos que a narrativa transcorrerá por meio da tensa estética de ponto de vista de uma câmera de mão, pontuada pelo liga-desliga da câmera, trepidações, e longos plano-sequência tal como a estética dos já clássicos filmes como “A Bruxa de Blair” e “Cloverfield-Monstro”.


Tudo transcorre em amenidades sobre a vida dos bombeiros até o agrupamento receber um chamado sobre uma senhora que supostamente estaria presa em um apartamento, gritando histericamente e deixando os vizinhos assustados. Angela, Pablo e mais dois bombeiros entram no prédio e são recebidos por um apavorado grupo de moradores e dois policiais diante de uma sinistra escada em espiral que conduzirá ao apartamento onde se iniciará o pesadelo: lá encontram uma senhora idosa, em pé, transtornada e enraivecida com a pele repleta de espécie de feridas e pústulas. Ela investe contra um deles e morde violentamente o pescoço provocando uma hemorragia fatal.


De um momento para o outro a situação se converte em um infernal pesadelo: quando tentam sair do prédio descobrem que a polícia fechou todas as saídas, agentes sanitários estão lacrando o prédio sob um inédito “protocolo NBC” que se usa frente a ameaças de armas nucleares, biológicas e químicas. Todos caem em si. O prédio está infectado por uma bizarra doença que enlouquece tornando-as espécie de zumbis raivosos que atacam as vítimas para comê-las ou apenas mordê-las, transmitindo a doença por meio de sangue e saliva.

sexta-feira, março 09, 2012

Resposta ao Post "A Dialética Negativa: Theodor Adorno Gnóstico"

Por Douglas A. Remonatto 
Uma resposta de Douglas Remonatto (mestrando em Filosofia pela Universidade de Lisboa) à postagem anterior "Dialética Negativa  Theodor Adorno Gnóstico": Se Adorno revela-se gnóstico em sua Negative Dialektik (1966), mais gnóstico ainda é Hegel. Este esquema especulativo apresentado por Hegel é de origem claramente gnóstica, análoga à peregrinação pela qual a centelha alienada (pneuma) dos gnósticos regressa de seu exílio no cosmo à plenitude original (pleroma) via a um autoconhecimento essencialista e absoluto (gnosis)                                     
Se para Adorno a dialética positiva de Hegel erra ao abandonar a realidade concreta, ignorando a experiência do particular em prol de uma busca por transcendência através da “síntese do Espírito Absoluto”, para Hegel não buscar nada além da experiência pessoal é iludir-se com fragmentos do processo teleológico, sem nunca ter a possibilidade de contemplar o processo como um todo, nos privando assim de autodescobrirmos nossa essencialidade. 


E se Adorno revela-se gnóstico em sua Negative Dialektik (1966), mais gnóstico ainda é Hegel cujo pensamento filosófico tem por base o processo pelo qual, de uma situação alienada, o espirito passa a se encontrar em si mesmo através do conhecimento de sua verdadeira natureza absoluta. Este esquema especulativo apresentado por Hegel é de origem claramente gnóstica, análoga à peregrinação pela qual a centelha alienada (pneuma) dos gnósticos regressa de seu exílio no cosmo à plenitude original (pleroma) via a um autoconhecimento essencialista e absoluto (gnosis). 

quinta-feira, março 08, 2012

"A Dialética Negativa": Theodor Adorno Gnóstico (atualizado)

Ao ler dois tópicos do livro “Dialética Negativa” de Theodor Adorno ("Experiência Metafísica e Felicidade"e "Niilismo") encontramos uma crítica à religiosidade vulgar, aquela que iguala o impulso por transcendência à busca do chamado "sentido para a vida". Para Adorno, se manifestamos a dúvida se a vida poderia ser dotada de sentido é porque a existência não tem sentido mesmo: através dessa “via negativa” ele identifica nessa religiosidade vulgar um movimento que apenas reforça a Totalidade que cria em nós o mal estar e o desespero que nos faz em vão buscar um sentido para a dor. Mas Adorno surpreendentemente busca uma alternativa de libertação: o niilismo gnóstico e elege Marcel Proust como o exemplo para o seu projeto da "Dialética Negativa".

"O Todo é a Verdade" (Hegel)
"O Todo é o Falso" (Adorno)

Considerada a obra de maior envergadura do filósofo e expoente da chamada Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, “A Dialética Negativa” (1966) é não somente um acerto de contas com o hegelianismo no último livro da sua vida. É também uma supreendente busca de esperança de saída após obras apocalíticas como “A Dialética do Esclarecimento” e todos os estudos em torno do conceito de Indústria Cultural que apontavam para cenários monolíticos de dominação do Capitalismo Tardio.

Através da “via negativa” Adorno vai buscar a alternativa na “metafísica em queda”, ou seja, ao invés de buscar a transcendência no Absoluto, ele vai encontrar a Verdade no particular, no precário, no singular, na experiência irreprodutível. Isto é, em tudo aquilo que a filosofia Ocidental liquidou em nome das abstrações (Logos, Deus, Mercadoria e Capital) e dos conceitos.

sábado, março 03, 2012

As Feridas da Civilização do Automóvel no Filme "Crash - Estranhos Prazeres"

Ao mostrar pessoas que constroem uma estreita relação entre acidentes automobilísticos, prazer sexual e morte o  filme “Crash – Estranhos Prazeres” (Crash, 1996) do cineasta David Cronenberg torna-se perturbador não somente por explorar os limites entre a pornografia e a violência. O que há de inquietante nesse filme é a possibilidade de estarmos não apenas diante de perversões e obsessões de personagens perdidos em um submundo, mas diante do fato de que a tecnologia atual torna-se um atraente fetiche e objeto de fantasias de fusão entre metal e carne, despertando forças do inconsciente que estavam adormecidas.

Desde a Revolução Industrial e a invenção de máquinas cada vez mais poderosas e fascinantes, críticos, teóricos, artistas plásticos e cineastas têm explorado os efeitos das tecnologias. Fundador do movimento futurista, Marinetti defendia os efeitos da tecnologia: velocidade, mudança, limpeza e purificação. Os surrealistas foram rápidos em explorar as conexões entre tecnologia e desejo. Buñuel em seu escandaloso filme “Um Cão Andaluz” (Un Chien Andalou, 1929) retrata um homem sexualmente excitado pela visão de uma jovem mulher atropelada por um automóvel em alta velocidade.

Três décadas antes, Emile Zola fazia uma conexão similar no livro “A Besta Humana” onde escrevia: “Ela adorava acidentes: qualquer menção de um animal atropelado, um homem cortado em pedaços por um trem, obrigava-a a correr para o local”.

Épicos envolvendo desastres produzidos por máquinas fascinaram o cinema desde o início: “Titanic” (versões 1953 e 1997), “Inferno na Torre” (1994), Aeroporto (1970), sem falar os filmes sci fi que exploram as relações entre homem e robô (“Metrópolis”- 1927), homem e ciborgue (“Exterminador do Futuro”, 1984), carne e metal (“Tetsuo, The Iron Man”, 1989) e o amor entre homem e uma replicante (“Blade Runner”, 1982)

Baseado no livro homônimo de J.G. Ballard, o filme “Crash – Estranhos prazeres” do diretor canadense David Cronenberg vai associar-se a esse rico patrimônio, porém de uma forma radicalmente diferente ao erotizar os dois principais fundamentos da modernidade: a tecnologia e o acidente. Se o pesquisador francês Paul Virilio estiver correto, esses dois fundamentos estruturam a experiência da modernidade: “toda tecnologia que é inventada, toda nova energia que é aproveitada, todo novo produto que é fabricado, também inventa uma nova negatividade, um novo tipo de acidente” (Veja VIRILIO, Paul. “Velocidade e Informação - Cyberspace Alarm!”)

quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Em "Mais Estranho Que a Ficção" Deus é um Mau Escritor

Mais Estranho que a Ficção (Stranger Than Fiction, 2006) propõe uma interessante ironia: e se nossas vidas não passarem de plots de uma narrativa literária? Tramas da obra de um mal escritor, uma divindade, um "Deus Ex-Machina" (termo para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos). É o velho tema da batalha do ser humano contra um Demiurgo que quer impor uma narrativa fatalista  e luta pelo despertar do livre-arbítrio dentro do reino da fatalidade. Um irônico paralelo entre Teologia e Literatura: Deus é uma má escritora que tenta matar o protagonista da sua obra.

Harold Crick (Will Ferrell) é um auditor da Receita Federal que leva uma vida solitária e rígida, governada por números (ele sempre conta o número de vezes que escova os dentes verticalmente e horizontalmente), pelo seu relógio de pulso e pela rotina. Seu apartamento é impessoal como um quarto de hotel, sem objetos pessoais, fotografias, memórias ou desordem.

Mas, em uma manhã, Harold começa a ouvir uma voz narrando suas ações: “um modesto elemento da sua vida considerada normal poderá ser o catalisador para uma nova vida”, diz a estranha voz vinda aparentemente do céu. Imerso num cotidiano de números e cálculos, pela primeira vez cria uma nível meta (ou consciência de transcendência espiritual?) na sua vida: quem é esse narrador onisciente? De que plano provém? Harold passa a ser perseguido por essa voz em off, até descobrir seu propósito: narrar a iminente morte de Harold.

sábado, fevereiro 25, 2012

Uma Jornada Espiritual Vira Pesadelo no Filme "Beyond The Black Rainbow"

Uma das mais estranhas sci fi dos últimos tempos, o filme canadense “Beyond The Black Rainbow” (2010) do estreante Panos Cosmatos explora dois paradoxos: primeiro de ser uma ficção científica que não é ambientada nem no futuro ou passado, mas em uma espécie de “futuro do passado” envolta em uma atmosfera kubrickiana de “2001” e nos mistérios metafísicos dos filmes do russo de Tarkovsky; e segundo ao mostrar como uma jornada espiritual pode se converter em um pesadelo autoritário. Com isso Cosmatos faz um acerto de contas com a chamada geração “baby boomer” que teria fracassado em buscar a espiritualidade em “ocultas e sombrias regiões”.

“Ela abriu estranhas portas que nunca mais se fecharam”
(David Bowie, “Scary Monsters” - 1980)

Lançado em 2010 “Beyond The Black Rainbow” (passou por alguns festivais na Europa e no ano passado teve sua premier no Tribeca Film Festival nos EUA) é um sci fi paradoxal: retro e ao mesmo tempo futurista, uma espécie de “futuro do passado”. Grande parte da narrativa se passa em um “futurista” ano de 1983 e em uma estranha e opressiva clínica onde um estranho homem realiza estranhas experiências com uma garota.

A narrativa procura desvendar os mistérios do Instituto Arboria onde uma bela jovem chamada Elena (Eva Allan) com poderes psíquicos é mantida prisioneira por um cientista chamado Barry Nyle (Michael Rogers) envolvido em uma complexa experiência psicológica. Nyle tem um objetivo místico-espiritual: a busca da “paz interior” por meio de uma delirante e alucinógena jornada em estilo LSD controlada por uma sinistra tecnologia à base de drogas.

O filme é a estreia do diretor e roteirista Panos Cosmatos (filho de George P. Cosmatos, diretor de filmes na década de 1980 como “Rambo: First Blood”, “Stallone Cobra” e “Tombstone”), onde cuidadosamente reproduz a atmosfera futurista de Kubrick em “2001” com salas e corredores sinistramente brancos e assépticos, o design clean e geométrico de clássicos futuristas como “THX 1138” e referência aos enigmas metafísicos dos filmes sci fi do russo Tarkovsky (“Solaris” e “Stalker”). Isso sem falar nas referências do lado terror do filme: Cronenberg, Argento e John Carpenter.

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

As Nuvens Atônitas: Temas Gnósticos no Cinema Popular

As sequências em "bullet time" do filme "Matrix" ("The Matrix", 1999) teriam se inspirado em trechos dos Evangelhos Apócrifos Gnósticos do início da Era Cristã? As narrativas do cinema hollywoodiano atual parecem se estruturar em dois mitos: o "monomito" da jornada do herói (Queda,Martírio, Morte e Ressurreição) e o "insight"  místico de que a realidade é uma ilusão.

Em minhas pesquisas iniciais sobre Cinema e Gnosticismo no Mestrado, o texto “The Clouds Astonished – Gnostic Themes in Popular Cinema” (As Nuvens Atônitas – Temas Gnósticos no Cinema Popular) foi um dos primeiros subsídios encontrados na Internet. O problema é que o texto parece ser apócrifo, apenas assinado por iniciais ou pseudônimo. Há tempos esse texto circula por fóruns de discussão sobre cinema, sem se saber exatamente a fonte.

A despeito da sua natureza não-científica, o texto oferece um interessante paralelismo entre as visões criadas em trechos dos evangelhos apócrifos gnósticos e sequências de filmes, como no filme “Matrix”: os efeitos em “bullet time” e o congelamento de ações e objetos enquanto a câmera gira comparado com a imagem descrita no Evangelho “Atos de João” que descreve o momento do nascimento de Cristo onde as “nuvens ficaram atônitas” e os “pássaros pararam” em pleno voo.

Além disso, o texto sugere uma estrutura mítica a partir da qual os filmes gnósticos são construídos: em primeiro lugar esses filmes partilhariam de um “monomito” comum a todos os filmes, a narrativa do “herói de mil faces” tal como descrita pelo historiador e mitólogo Joseph Campel (veja CAMPBEL, Joseph. “O Herói de Mil Faces”, Pensamento, 1995) – o drama da jornada de queda, martírio, morte e ressurreição do herói. Sobre essa narrativa comum o filme gnóstico construiria outra narrativa arquetípica: o súbito “insight” do herói de que a realidade seria uma ilusão.

O texto ainda lança uma hipótese para o súbito aparecimento de temas míticos gnósticos no cinema popular contemporâneo: esses filmes expressariam uma nova sensibilidade a partir do surgimento das interfaces virtuais e os efeitos com imagens geradas em computador: o crescimento dessas tecnologias no horizonte cultural que sugere uma noção plástica da realidade, como uma estrutura ilusória que poderia ser construída e manipulada.

Confira abaixo esse texto:

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

O Sono da Ciência no filme "Ladrão de Sonhos"

“Ladrão de Sonhos” (La Cité dês Enfants Perdus, 1995) é um dos poucos filmes a representar o cientista longe dos clichês do “louco” ou do “diabólico”, condenado à punição por tentar se equiparar a Deus. A dupla de diretores Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet ("O Fabuloso Destino de Amelie Poulain", 2001) cria uma estranha comédia de humor negro onde o cientista é retratado como um Demiurgo: através de uma Ciência prometéica, cria um cosmos corrompido onde o sono não tem sonhos. Por isso, ele terá que raptar crianças para extrair delas as imagens dos sonhos e trazer algum élan para um mundo sem vida. 

Na história do cinema há uma longa tradição em representar “cientistas” (sábios, gênios, magos, alquimistas, mágicos ou o cientista propriamente dito) como personagens enlouquecidos, estranhos, sociopatas, manipuladores ou simplesmente amorais e anti-éticos. De qualquer forma, todos eles são punidos ou por ultrapassarem os limites estabelecidos pela moral da civilização ou por tentarem se equiparar a Deus. Exemplos não faltam através dos mais diversos gêneros: “Frankenstein”(1931), “O Cérebro Que Não Queria Morrer” (The Brain That Wouldn’t Die, 1962), “O Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993), “A Ilha do Dr. Moreau” (The Island of Dr. Moreau, 1996) etc. 

Mas poucos filmes apresentam estes personagens como “Demiurgo” (para Platão era aquele que modela a matéria caótica e para o Gnosticismo o criador do Mundo Inferior onde o homem está aprisionado ), isto é, não mais como personagens puníveis moralmente por tentarem se equiparar a Deus, mas como artífices que fracassam pela presença do Mal nas suas criações. 

Essa elaboração do personagem do cientista no cinema como um Demiurgo tem suas origens em narrativas míticas das escrituras gnósticas: o Demiurgo como uma forma híbrida de consciência emanada dos planos superiores, criadora do cosmos como uma cópia imperfeita de Planos Superiores e essencialmente corrompida. Inebriado pelo Poder, julga ser a única divindade do Universo porque esqueceu as suas origens. Sabendo que o seu cosmos é uma criação física imperfeita, necessita da fagulha de Luz humana para pô-lo em funcionamento. Por isso, mantém a humanidade prisioneira através do sono. 

Cristoff, o poderoso diretor de um gigantesco reality show que aprisiona o protagonista no filme “Show de Truman” (The Truman Show, 1998) é um exemplo de filme que apresenta uma experiência televisiva por uma perspectiva simbólica do Demiurgo. 

O filme “Ladrão de Sonhos” (La Cité dês Enfants Perdus, 1995) da dupla Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet (“O Fabuloso Destino de Amelie Poulain”, 2001) é um outro exemplo. Como veremos, o filme praticamente segue a descrição que fizemos acima sobre o personagem gnóstico do Demiurgo.

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