quarta-feira, abril 21, 2010

Por que o Filme Gnóstico é uma Tendência Norte-Americana?

O fato de o filme gnóstico ser uma tendência eminentemente norte-americana pode ser explicado pelo fato de ser o resultado de um peculiar mix de religião e misticismo com origens nas formas literárias populares naquele país desde o puritanismo do século XVIII passando pelos períódicos renascimentos de religiosidade e misticismo como Mórmons e Pentencostais na virada do século XIX até o tecno-misticismo originado nos anos 60.

Em qualquer discussão sobre cinema, quando exponho a existência do filme gnóstico (a existência de uma tendência de filmes cuja característica é a recorrência de temas inspirados nas narrativas míticas do gnosticismo clássico e suas variantes e ecletismos – alquimia, esoterismo etc.) surge uma questão: por que a esmagadora maioria dos filmes gnósticos tem origem na produção cinematográfica norte-americana e hollywoodiana? Na verdade, nesta pergunta estão contidas duas interrogações: primeiro, por que Estados Unidos e, segundo, como essas narrativas gnósticas, que possuem mensagens de rebelião e desconfiança em relação ao status quo, podem chegar ao mainstream hollywoodiano? Sintetizando: por que só nos Estados Unidos encontramos esse fenômeno de “gnosticismo para massas”?

Responder a essas perguntas requer compreender a história do amplo gênero da literatura fantástica e os divergentes destinos na Europa e Estados Unidos e toda uma complexa série de migrações entre um continente e outro.

Podemos compreender que o primeiro florescimento do gnosticismo na modernidade (dentro da literatura fantástica que incorpora elementos do sobrenatural, grotesco e do inominável) foi na era romântica entre os séculos XVII e XVIII na Europa. Este renascimento surge numa combinação entre a especulação esotérica gnóstica e o pragmatismo esotérico no Romantismo. Figuras como William Blake e Percy Shelley beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas, desafiando o status quo. Podemos compreender o modo narrativo do Romantismo como uma revolta contra a ascensão do racionalismo no século XVIII.

Nesse período encontramos na Europa a segunda variante da literatura fantástica: o Gótico. Suas vitorianas estórias de fantasmas talvez tenham sido a primeira forma de literatura ficcional a penetrar na cultura popular.

Na Europa, esta literatura romântica e Fantástica, especialmente na França e Alemanha, vai servir de veículo para o avanço das vanguardas artísticas tais como o Surrealismo e o Expressionismo. Em termos cinematográficos corresponderia ao período Cult e europeu dos filmes gnósticos, tal como descrita por Erik Wilson ("Secret Cinema: gnostic visions in film"). Para ele, o gnosticismo cinematográfico europeu passou por dois períodos bem distintos: no promeiro período temos os filmes que constituem “reacionários avisos” contra o gnóstico desejo de transcender a matéria (The Revenge of the Homunculus - Otto Rippert’s, 1916 - sobre as trágicas conseqüências de um experimento alquímico mal sucedido; The Golem - de Paul Wegener’s, 1920 - mostrando os trágicos resultados da magia cabalística).

Os temas gnósticos retornam mais tarde, desta vez através de filmes não-comerciais ou rotulados como cults que endossam valores heterodoxos que os antigos filmes condenavam. Blow Up (Antonioni, 1966) é uma exploração gnóstica de como a cultura consumida pelas aparências suplanta a realidade. Confundindo forma e conteúdo através de uma narrativa altamente ambígua e alucinante que incomoda tanto os personagens do filme quanto o público, 8½ (Fellini, 1963) explora a cabalística crença de que um ideal humano pode ser alcançado através do artifício, a criação de um Adão cinemático; Zardoz (John Boorman, 1974) uma verdadeira fábula gnóstica onde, em um futuro pós-apocalipse, o protagonista alcança a iluminação ao descobrir que o deus em que acreditava (Zardoz) era, na verdade, uma criação artificial de uma elite imperfeita e decadente; e The Man Who Fell to Earth (Nicholas Roeg, 1976) apresenta um extraterrestre que vem para a Terra em busca de água para o seu planeta que está morrendo. Incapaz de cumprir sua missão acaba prisioneiro de uma rede de corrupção em uma América corporativa. Diferentes dos antigos filmes, estes filmes gnósticos cults criticam o status quo, sugerindo que a cultura pós-moderna é um desolado mundo de ilusões que produz conformismo.


A Religião Americana


Enquanto isso, nos Estados Unidos, o fantástico e o sobrenatural pode ser encontrado quase que inteiramente nas formas culturais populares. Tem suas origens nas chamadas “Providências” (formas narrativas anedóticas puritanas que descreviam milagres que ilustravam como a vontade divina se manifesta na vida cotidiana), estórias sobre magias africanas e fatos bizarros e escândalos presentes em jornais sensacionalistas, magazines e livros de bolso. Em um breve momento na alta literatura norte-americana (no período literário chamado de “Renascimento Americano” no início do século XIX) esse amálgama do fantástico e grotesco da cultura popular vai fornecer inspiração para grandes autores como Poe, Dickson, Emerson e Hawthorne.

Victoria Nelson, ao descrever a “estranha história do Fantástico norte-americano”, observa que o fervor religioso e místico sofre constantes renascimentos:

“O Grande Despertar em meados do século XVIII tem sido acompanhado por no mínimo três outros renascimentos de acordo com Robert Fogel: o segundo, na virada do século XIX, com as repercussões religiosas e filosóficas do Transcendentalismo na alta literatura como também nas inúmeras manifestações da literatura popular, incluindo o movimento Espiritualista, Teosofia e novas religiões e cultos como os Mórmons e os gnósticos “Christian Scientists” e “Shakers”. O terceiro Grande Despertar, diz Fogel, ocorreu entre 1890 e 1930 e nós ainda estamos no meio do quarto que se iniciou nos anos 1960” (NELSON, Victoria. The Secret Life of Puppets. Havard University Press, 2001, PP. 76-7).

Todo esse amálgama religioso e místico resultou naquilo que Harold Bloom chamou de “Religião Americana”: uma gnóstica tensão originada na combinação entre sulismo Batista, Pentencostalismo e Mormismo que preconiza uma espécie de “auto-divinização” através de um encontro pessoal com o Sagrado.

“Joseph Smith descreve essas aventuras sagradas novelisticamente no Livro dos Mormons, para produzir, como John Brooke já observou, uma particular americanização da teologia Renascentista ao juntar aspectos do Hermeticismo, Gnosticismo, Alquimia e magia popular para produzir uma ‘totalmente plena’ alternativa para o Cristianismo” (NELSON, Victoria. IDEM).


Como bem observou Robert Fogel, estamos em meio ao quarto despertar místico e religioso norte-americano originado nas utopias primitivas e tribais do acid rock e psicodelismo dos anos 60. Uma peculiar leitura Zen-Taoísta de um misticismo da natureza, um renascimento dos mitos da Terra e do elogio dos seus ciclos naturais, combinados com um socialismo cristão, mitos comunais e, paradoxalmente, combinado com o impulso transcendentalista das viagens alucinógenas e estados alterados de consciência.

Associado ao discreto movimento do Gnosticismo no meio científico a partir das universidades de Pinceton e Pasadena durante a II Guerra Mundial, a princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação, temos o surgimento de um típico fenômeno norte-americano: o Tecnognosticismo. Isto é, a convicção mística e tecnófila da possibilidade da experiência transcendência e da experiência do Sagrado por meio do desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da informação. Como afirmou ironicamente Theodore Roszak, é a tecnologia como o “atalho para Satori” a tecnologia como quintessência da superação da condição humana (finitude, contingência, mortalidade, corporalidade e limitação existencial) sem a necessidade de disciplina, meditação ou ascese.

Neste quarto Grande Despertar temos, finalmente, o encontro de toda a tradição da “Religião Americana”, no sentido dado por Harold Bloom, com a pujança tecnocientífica do complexo industrial-militar norte-americano.


Gnosticismo para as Massas


A partir da popularização das tecnologias tecnognósticas e da alteração radical de todo o ambiente sensorial e perceptivo cotidiano com dispositivos como Internet, interfaces gráficas, realidade virtual etc. temos uma nova sensibilidade em relação ao religioso e místico. Por um lado, temos a autodivinização da busca pessoal pelo sagrado substituída pelas tecnologias espirituais da auto-ajuda (representada por diversas produções fílmicas e audiovisuais) e, por outro, a popularização dos mitos do gnosticismo clássico não só para fazer uma reflexão crítica sobre o destino do homem diante da tecnognose (Show de Truman e Matrix como exemplos) como abordar formas particulares de gnose que se distinguem da auto-ajuda (A passagem, A Fonte da Vida etc.).

Como já vimos em uma postagem anterior (clique aqui para ler), este quarto Grande Despertar produziu uma cisão no ressurgimento do Gnosticismo no século XX: de um lado o Gnosticismo Cabalístico (representado pela busca fáustica da tecnologia como forma mais rápida de busca do pós-humano e da transcendência absoluta e rápida do espírito em relação à prisão do corpo) e, do outro, o Gnosticismo Alquímico (a crença que a matéria deve ser redimida e não simplesmente superada e a necessidade de denúnciar esse imaginário tecnológico fáustico como sendo mais uma forma do Demiurgo aprisionar o ser humano nas ilusões do mundo material).

Surpreendentemente, o lócus dessa tematização vem sendo a produção recente cinematográfica hollywoodiana. Essa constatação nos leva a uma última questão: o que faz diretores e produtores da indústria cinematográfica ter esse súbito interesse no universo temático gnóstico, particularmente o alquímico? Por que estas narrativas míticas da antiguidade foram parar nas sinopses, roteiros e nas mesas de produtores de filmes mainstream hollywoodianos? Por que Hollywood abraçaria esta particular visão gnóstica que questiona o gnosticismo tecnocientífico?

Uma pista para começar a responder a essa questão talvez esteja nas considerações de Boris Groys sobre uma “guinada metafísica” da produção hollywoodiana recente: deuses, demônios, alienígenas e máquinas pensantes defrontando-se com heróis movidos, sobretudo, pela questão do que possa estar oculto por trás da realidade sensível. Nesta temática metafísica se esconderia uma pretensão auto-referencial. Filmes como Show de Truman ou Matrix tematizam a própria produção midiática. Podemos considerar os heróis desses filmes como verdadeiros críticos da mídia.

“Hollywood, pois, reage à suspeita de manipulação estética que lhe é dirigida reativando uma suspeita metafísica ainda mais antiga e profunda - a suspeita de que todo o mundo perceptível poderia ser um filme rodado numa metahollywood remota. Nesse caso, os filmes hollywoodianos seriam "mais verdadeiros" que a realidade, pois ela não nos mostra geralmente nem o caráter artificial que lhe é próprio nem o que lhe está além. O novo filme hollywoodiano, ao contrário, elabora, ao refletir sobre seus procedimentos próprios, uma nova metafísica que
interpreta o ato de criação como uma produção de estúdio.” (GROYS, Boris. “Deuses Escravizados – a guinada metafísica de Hollywood”, In: Mais! Folha de São Paulo, 03/06/2001, p. 5.)

Enquanto o filme europeu preocupa-se, como de hábito, com o “demasiado humano”, Hollywood ingressa na atual fase metafísica ou auto-referencial. Com a proximidade de a tecnologia digital intervir no tradicional ramo cinematográfico extinguindo o seu próprio suporte (a película), ou seja, eliminando sua própria especificidade que a distingue diante dos outros veículos de comunicação, talvez nesse momento Hollywood esteja dando uma resposta à tecnociência que a ataca. Talvez seja este o sentido da tendência metafísica do cinema comercial atual: ao trazer para as telas a antiga suspeita gnóstica de que o mundo perceptível possa ser uma ilusão e de que uma “metahollywood” high tech seja o novo Demiurgo, denunciar os escrúpulos da tecnociência cabalística – o secreto projeto de aliar a indústria cinematográfica com as novas tecnologias.

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segunda-feira, abril 19, 2010

Reunião do Grupo de Pesquisas da UAM discute relações entre Gnosticismo e Cinema

No seminário avançado na última reunião do Grupo de Pesquisas sobre Religião e Sagrado no Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi (UAM) aprofundou-se as discussões em torno da recorrência de elementos gnósticos na recente produção cinematográfica. Foi abordado desde a natureza do Sagrado na experiência da gnose presente nas narrativas fílmicas até a experiência tecnognóstica propiciada pela introdução do 3D no dispositivo cinematográfico.

Dando continuidade aos seminários avançados do grupo de pesquisas sobre Religião e o Sagrado no Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi, apresentei os resultados das minhas pesquisas sobre Cinema e Gnosticismo. Participaram das intensas discussões do seminário na tarde do último sábado (17/04) o Prof. Dr. Luiz Vadico (professor do Mestrado da UAM), a Profa. Ilca Moya da UAM e Geraldo de Lima (Mestre pela UAM).

A apresentação se iniciou com a minha proposta sobre a busca pela “Negatividade do Sagrado”, já discutido em postagens anteriores neste blog (clique aqui para ler sobre o conceito de “negatividade do sagrado”). A partir da tese de doutorado de Eduardo Losso “Teologia Negativa e Adorno – a secularização da mística na arte moderna” (Faculdade de Letras da Universidade federal do RJ) onde se discute as diferenças entre Teologia Positiva, Teologia Negativa e Metafísica dentro do pensamento de Theodor Adorno, procurei traçar o gnosticismo como uma Teologia Negativa ou herética e como essa natureza se manifesta no filme gnóstico.

O primeiro aspecto é a diferença entre gnose e auto-conhecimento (tal como preconizado pela literatura de auto-ajuda) nos filmes gnósticos. Embora possamos qualificar a gnose como uma “reforma íntima” do protagonista, não se confunde com o auto-conhecimento. Enquanto a gnose se origina na Teologia Negativa (onde o indivíduo não se submete à Totalidade mas rompe com essa ordem criada pelo Demiurgo), ao contrário, o auto-conhecimento busca inserir o indivíduo numa totalidade racionalizante e confortadora (seja religiosa ou científica). Essa é a Teologia Positiva onde a verdade está na Totalidade e não na existência individual. Por isso, esse discurso da auto-ajuda ou New Age (“Somos todos um”) se converteria numa falsa experiência do sagrado, porque totalitária: o sagrado como uma percepção intuitiva do Todo. Diferente desse ideário, a gnose é a percepção intuitiva de uma ausência de sentido no Todo, porque constructu arbitrário e corrompido de um Demiurgo (o reality show de Show de Truman ou o mundo virtual da Matrix).

O segundo aspecto está na construção narrativa dos filmes gnósticos onde não há restabelecimento da ordem: nos filmes gnósticos o protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem é dominante, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade material.

Filmes 3D, Imersão e estado de suspensão gnóstica

Vadico propôs se os recursos digitais e do 3D no cinema estariam introduzindo não apenas a alteração da relação do público com o filme (de espectador passivo a uma relação de jogo) mas de criar uma experiência gnóstica de transcendência do corpo ao simular uma situação de imersão. Teríamos, dessa forma, a alteração não apenas da recepção como também do próprio dispositivo cinematográfico.

Para mim, essa aproximação das inovações tecnológicas do dispositivo cinematográfico e uma experiência espiritual tecnognóstica lembra o estado de “suspensão” de Basilides (filósofo gnóstico de Alexandria - 117-138 DC- possivelmente originário de Antioquia). Para ele, a gnose somente poderia ser buscada por um específico estado alterado de consciência: o silêncio, o esvaziamento da mente de todo ou qualquer pensamento pois a linguagem e o conhecimento são fontes de erro (Deus é inapreensível e icogniscível) e o estado mental de suspensão. Essa hipótese tecnognóstica no dispositivo cinematográfico mostrou-se interessante nas discussões, pois se associou ao personagem gnóstico do Viajante. A simulação de imersão do espactador no filme lembra um estado de suspensão (entre o corpo físico e a narrativa fílmica, isto é, o espectador tem a sensação de estar sendo impelido para uma outra dimensão sensorial mas, ao mesmo tempo, sabe estar em uma situação ficcional).

Como vimos em postagens anterioras desse blog a respeito dos protagonistas nos filmes gnósticos (clique aqui para ler), essas são características do personagem Viajante e o tema é “O Jogo”. Se a experiência de imersão do 3 D cria uma relação de jogo entre espectador e narrativa fílmica, estaríamos diante de uma tendência onde o filme gnóstico (como Avatar, por exemplo) estaria explorando a recorrência de elementos do gnosticismo não apenas na narrativa, mas, inclusive, na relação do público com o dispositivo ao simular estados alterados de consciência tecnognósticas.

Isso suscitou outra questão: qual o sentido dessa experiência “tecnognóstica”? É uma verdadeira experiência de gnose ou de sagrado? Isso levou a lembrar das críticas de autores como Erick Felinto e Theodore Roszak (veja de Felinto o livro “Religião das Máquinas” e de Roszak o livro , “From Satori to Silicon Valley: San Francisco and the American Counterculture”) fazem dessa aproximação paradoxal entre novas tecnologias e o impulso místico do Gnosticismo. Roszak, ironicamente, afirma que a tecnologia seria um “atalho para Satori”, um atalho para mais rapidamente alcançar o descarte da existência física do corpo.

Lembrei que devemos diferenciar entre duas vertentes históricas do Gnosticismo, a partir do Gnosticismo clássico do início da era cristã: o Gnosticismo Cabalístico e o Gnosticismo Alquímico. Enquanto o primeiro vê a matéria como disforme, caótica e sem vida própria, necessitando ser organizada e vivificada pelo espírito (e, por esse motivo, encarada como grilhões que confinam a plenitude espiritual), no segundo a matéria não deve ser simplesmente descartada, mas redimida (a manipulação alquímica da matéria tem a ver com o próprio refinamento espiritual). Esse tecnognosticismo cinematográfico se enquadraria nessa busca de um atalho para a gnose, de forma rápida, lúdica e irrefletida. Essas formas tecnognósticas levariam a conseqüências como o solipsismo e a uma liquidação do indivíduo no interior de uma totalidade tecnocientífica.

segunda-feira, abril 12, 2010

Em "Mais Estranho Que a Ficção" Deus é um Mau Escritor

Mais Estranho que a Ficção (Stranger Than Fiction, 2006) explora o profundo simbolismo do “Oceano da Gnose” e dos limites de uma Escritora/Demiurgo, incapaz de solucionar os limites do tempo e do devir. É a velha batalha gnóstica do ser humano contra um Demiurgo que quer impor uma narrativa fatalista, a gnose que luta pelo despertar do livre-arbítrio dentro do reino da necessidade.

Harold Crick (Will Ferrell) é um auditor da Receita Federal que leva uma vida solitária e rígida, governada por números (ele sempre conta o número de vezes que escova os dentes verticalmente e horizontalmente), pelo seu relógio de pulso e pela rotina. Seu apartamento é impessoal como um quarto de hotel, sem objetos pessoais, fotografias, memórias ou desordem.

Mas, em uma manhã, Harold começa a ouvir uma voz narrando suas ações: “um modesto elemento da sua vida considerada normal poderá ser o catalisador para uma nova vida”. Imerso num cotidiano de números e cálculos, pela primeira vez cria uma nível meta (ou consciência de transcendência espiritual?) na sua vida: quem é esse narrador onisciente? De que plano provém? Harold passa a ser perseguido por essa voz em off, até descobrir seu propósito: narrar a iminente morte de Harold.

Após desistir de procurar apoio terapêutico, Harold busca uma solução menos ortodoxa: busca o auxílio de um eminente professor de Teoria Literária, o professor Jules Hebert (Dustin Hoffman). A partir daí o filme estabelece uma interessante ironia narrativa: mais do que a preocupação com seu estado mental, Harold percebe que a sua vida parece estar dentro de um propósito maior, como a narrativa de uma obra literária. Portanto, com o auxílio de Julius, deve descobrir em qual plot e gênero literário está envolvido, para, dessa maneira, descobrir como seria o desfecho mortal para evitá-lo.
A voz off é da escritora Karen Eiffel (performada por Emma Thompson - famosa por matar todos os seus protagonistas em seus livros). Suas imagens iniciais no filme são simbolicamente sugestivas (observa o protagonista do alto dos edifícios, como o Demiurgo gnóstico criando uma trama cósmica para confinar o protagonista anthropos).

De início, dois elementos dos filmes gnósticos estão presentes em “Mais Estranho que a Ficção”: a solidez e regularidade da realidade que se esfacela ao descobrir que tudo consiste numa narrativa literária e arbitrária de um Demiurgo e a desconstrução irônica da própria narrativa fílmica – na estória constantemente criam-se níveis meta como, por exemplo, a discussão dos próprios elementos do roteiro do filme (Ironia Dramática, Deus “ex-machina” etc.) e a busca de Harold e Julius em determinar em qual gênero o filme que o espectador assiste se insere (comédia? Drama? Tragicômico?).

Karen Eiffel é o Demiurgo que, de tão inebriado pelo poder de matar seus protagonistas, entra em crise e sofre um bloqueio criativo: não sabe agora como matar Harold de forma criativa. Tal como na mitologia gnóstica, todo o poder do Demiurgo não é capaz de solucionar a falha principal do seu universo material: o devir, o tempo. A editora envia uma assistente para ajudá-la a superar o bloqueio e pressioná-la quanto aos prazos para entrega dos originais.

Para a mitologia gnóstica, o Demiurgo aprisiona o homem em seu cosmos físico com um objetivo principal: roubar-lhe as partículas de luz, reminiscência do verdadeiro plano superior da Pleroma contido no ser humano, plano este que está além dos poderes do Demiurgo. Isso é representado na timidez e ingenuidade de Harold, que fará cada vez mais a escritora Karen fascinar-se pelo seu próprio protagonista ao ponto de relutar em matá-lo. Aos poucos vai libertando-se da rigidez do mundo burocrático e certinho (na medida em que descobre a artificialidade do mundo em que vivia).

Essa pureza da sensação do “olhar da primeira vez” é emblematicamente trabalhada com vários simbolismos bíblicos do Gênesis. A maçã na boca de Harold ao sair apressado para o ponto de ônibus toda manhã; o encontro com Anna Pascal (Maggie Gyllenhaal - confeiteira auditada pela Receita) que lhe oferece cookies cujo sabor fará ainda mais Harold abrir-se para um mundo de novas sensações (o pecado original do Paraíso bíblico); a atração por uma velha guitarra Fender da mesma cor da maçã que toda manhã está na boca de Harold etc.

Aliás, a personagem Anna Pascal ocupa importante papel para a gnose de Harold. Assim como na mitologia gnóstica o personagem feminino de Sophia ocupa importante papel ao trazer sabedoria para o cosmos físico, o personagem de Ana Pascal ao oferecer a “Maçã do pecado original” (os cookies) que abrirá a mente de Harold.

O “Oceano da Gnose”

O principal tema do filme é a gnose de Harold. Ele tem uma vida vazia, burocrática e repetitiva (típica caracterização do personagem “O Viajante” nos filmes gnósticos) cujo processo de gnose deve ser através de um Jogo (o processo metalingüístico da descoberta do plot narrativo da sua vida) onde os limites entre a ficção e a realidade se confundem, como uma viajem através do qual o protagonista despertará. Tal ambigüidade é o caminho aberto para a gnose.

Essa gnose de Harold se inicia na simbólica cena onde Harold folheia as fichas da gaveta de uma imensa sala de arquivos da Receita federal. A voz off de Karen Eiffel narra: “O som do papel contra o separador tinha o mesmo tom de uma onda a rebentar na areia. E quando Harold reparou nisso, percebeu que já tinha escutado ondas o suficiente para constituir o que ele imaginou como sendo um profundo e interminável oceano”. Temos aqui o simbolismo do “Oceano da Gnosis”, o cerne de inúmeros ensinamentos metafísicos Sufis (Sufismo, corrente mística e contemplativa do Islamismo que se ocidentaliza através do hinduísmo) como, por exemplo, do poeta e místico muçulmano Jalal AL-Din Rumi. Para ele, percebemos Deus não através de ensinamentos mas pelo “coração”, como se estivéssemos “imersos num oceano”.

Harold sabe que vai morrer, luta contra esse destino narrativo imposto pela escritora/demiurgo. Tal como no filme “Blade Runner” (filme de 1982, baseado em livro do gnóstico escritor Philip K. Dick onde um robô replicante luta para encontrar seu criador para reivindicar por mais tempo de vida), Harold vai ao encontro do seu criador, a escritora Karen Eiffel. Chocada, ela se confronta com sua própria criação.

O professor Julius e Harold lêem os originais da escritora e chegam à conclusão: Harold tem que aceitar a morte, afinal, o novo livro é a obra-prima de Karen Eiffel. Novamente, o recurso meta-narrativo da estória: como em qualquer roteiro, o protagonista deve se sacrificar por uma causa maior, no caso, a obra-prima de Eiffel. Julius Hebert, como professor de Teoria Literária, tenta convencer Harold da inevitabilidade da sua morte. Tem a ver com um “Plano Maior”, o desfecho de uma excelente obra literária, o ponto alto da carreira da Escritora/Demiurgo.

Com tantas referências bíblicas e místicas que o filme faz, é inevitável a comparação com a Paixão de Cristo. Harold, assim como Cristo, sabe que vai morrer. Jesus Cristo deve morrer por uma causa maior (a salvação da humanidade) assim como Harold deve morrer por causa de um “Plano Maior”: a necessidade imposta por uma engenhosa narrativa. Mas, estamos em um filme gnóstico: assim como no Gnosticismo onde Cristo não veio para nos salvar (sua morte nada teve a ver com isso), mas para nos “curar” (trazer a gnose, mostrar que estar no mundo não é ser dele), Harold não veio ao mundo para morrer por um “Plano Maior”, mas para alcançar a gnose.

Ao descobrir a “sensação oceânica” na banalidade dos gestos cotidianos, Harold interpõe o elemento do acaso na causalidade narrativa: o fragmento do relógio estanca uma hemorragia que seria fatal ao protagonista em um acidente ironicamente genial elaborado por Eiffel. Novamente a limitação do poder do Demiurgo: o tempo, representado pelo relógio despedaçado.

“Mais Estranho que a Ficção” explora o gnosticismo tanto no conteúdo como na forma: a realidade que aprisiona Harold como um “constructu” arbitrário e a desconstrução metalingüística do próprio roteiro fílmico ao longo da narrativa.

Créditos:
  • titulo original: (Stranger than Fiction)
  • lançamento: 2006 (EUA)
  • direção: Marc Forster
  • atores: Will Ferrell , Denise Hughes , Tony Hale , Maggie Gyllenhaal, Emma Thompson
  • duração: 113 min
  • gênero: Comédia
  • estúdio:Mandate Pictures / Three Strange Angels / Crick Pictures LLC
  • distribuidora:Columbia Pictures / Sony Pictures Entertainment
  • direção: Marc Forster
  • roteiro:Zach Helm
  • produção:Lindsay Doran

sábado, abril 10, 2010

O Fim do "Modelo Matrix" de Gnosticismo Pop

A partir do bombástico lançamento do Windows 95, tivemos o crescimento especulativo das potencialidades da Internet e das tecnologias computacionais. Paralelo a isso, o crescimento das técnicas motivacionais e de auto-ajuda explicitamente inspirados em modelos de programação de computadores. Em 2.000 temos a quebra das empresas “ponto com” e da bolsa Nasdaq e, com isso, a desaceleração de toda uma ciberutopia. Os filmes gnósticos refletem essa mudança com a crise do modelo Matrix de gnosticismo pop e a mudança na busca da gnose, cada vez mais focada em conflitos internos do protagonista.

Para o historiador francês Marc Ferro todo filme é um documento porque representaria o imaginário de uma determinada sociedade ou período histórico: "o imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos" Não importa se o filme refere-se a um passado remoto ou imediato, pois sempre vai além do seu conteúdo.

Fortemente conectado com o imaginário social deste final e início de novo século, a produção cinematográfica atual, em particular a norte-americana, refletiria não apenas o imaginário tecnológico transcendentalista como, também, questões existenciais, éticas e espirituais decorrentes de tal imaginário.

Percebe-se uma nítida alteração temática nos filmes gnósticos na passagem de final de século para início de novo século. Os anos de 1999-2000 marcam uma mudança da representação da irrealidade do mundo no qual o protagonista vive.

No primeiro período (1995-1999) temos um mundo simulado por poderosas tecnologias onipresentes e oniscientes, capazes de criar uma contrafação da realidade tão perfeita que se confunde com o original, pelos menos para a percepção dos protagonistas. Temos nessa primeira fase a clássica narrativa gnóstica de um mundo criado por um Demiurgo (a tecnologia) para aprisionar seres humanos. A narrativa apresenta um caráter maniqueísta (no sentido atribuído às narrativas gnósticas de Mani) e vemos um explícito e dramático confronto do humano contra uma divindade enlouquecida pelo poder espiritual e tecnológico.

Em O Quarto Poder (Mad City, 1997) vemos toda uma supra-realidade criada pelo circo midiático envolta de um seqüestro involuntário que aprisiona o protagonista. O filme salienta o poder tecnológico onisciente e onipresente da mídia versus a inocência e pureza do protagonista, seduzido pelo caráter meta dos monitores de TV colocados no interior do próprio palco das ações (Sam via-se a si próprio no museu onde mantinha os reféns). Show de Truman (Truman Show, 1998) reforça essa visão da tecnologia midiática, capaz de simular um mundo para criar um novo Adão. Explicitamente inspirado na expriência tecnognóstica do Oracle (O Projeto Oracle consistiu em colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área cm Tucson, no deserto do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes), esse filme é um nítido exemplo da representação do imaginário tecnológico utópico e transcendentalista de final de século.

Em A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998) o poder, não exatamente tecnológico, mas mágico do Sr. Técnico de TV transporta os protagonistas para uma série de TV dos anos 50, um microcosmo de simulação da realidade perfeita de adãos e evas midiáticos. Indiretamente, Vidas em Jogo (The Game, 1997)vai tocar nesse mesmo tema ao apresentar uma empresa com tal onipotência e onisciência tecnológica que é capaz de interferir nas transmissões de TV abertas (fazendo a programação interagir com o protagonista) e produzir uma espécie de jogo que também interage com a vida real.

Matrix e o Décimo Terceiro Andar (The Thirteenth Floor, 1999) explicitamente representam o imaginário tecnognóstico de final de século. Aproximam tecnociência e misticismo ao apresentarem a tecnologia computacional como mediação possível para a transcendência espiritual. A metáfora das unidades autônomas e autodidatas que passam a ganhar consciência nos mundos simulados e a possibilidade dessa consciência transcender de um mundo simulado inferior para um superior são, explicitamente, tecnognósticas. Em ambos os filmes vemos criadores de simulações que se tornam Demiurgos inebriados pelo poder que, novamente, procuram extrair de seus prisioneiros a inocência ou energia de novos “adãos”.

O evidente simbolismo gnóstico maniqueo é Cidade das Sombras (Dark City, 1998). Novamente demiurgos (dessa vez uma raça alienígena) aprisionam humanos em uma cidade-laboratório para buscar neles a essência da alma humana. A cidade é uma gigantesca cenografia recriada a partir de fragmentos das memórias humanas de todas as épocas, assim como a Seaheaven de Show de Truman é a cópia da cópia da imagerie publicitária.

Embora sem referência explícita ao universo tecnológico, Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999) é uma verdadeira parábola dos destinos das identidades que buscam mediações ou avatares, representados pela figuras das marionetes e do interior da cabeça de John Malkovich. É o contexto midiático-tecnológico formado pela busca da fama (somente pode se ficar 15 minutos na cabeça de Malkovich, irônica referência a frase célebre de Andy Warhol sobre a fama) e da identidade por meio de avatares em ambientes virtuais como Second Life.

A Crise do "Modelo Matrix"

O chamado “modelo Matrix” de gnosticismo pop parece se encerrar em 1999 com o próprio filme Matrix. Em 2000 temos a desaceleração da euforia utópica em relação às tecnologias computacionais com a quebradeira das empresas “ponto com” e a revelação de que a maioria dessas empresas jamais dera lucro e de que o modelo utópico de uma internet com potencial socializante dentro do capitalismo estava com seus dias contados . Segundo Erik Davis, temos uma perda da euforia tecnocultural:

“O colapso da bolha das ‘ponto com’ pôs os visionários de volta para suas confortáveis casas, e esse ‘retorno ao real’ foi cimentado ainda pelo 11 de setembro. Euforia utópica e a vertigem pós-humana são out; estabilidade e valores familiares são in. Ao invés da ambição pela dissolução das fronteiras, vemos, pelo menos na política americana, a restauração da ansiedade pela defesa das fronteiras: nação, propriedade intelectual, religião cristã”. (DAVIS, Erik, Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information. London: Serpents Tail, 2004, p. 400).

Simultaneamente, a partir de Amnésia (Memento, 2000), apesar de Clube da Luta de 1999 já ser um prenuncio, temos uma alteração quanto à natureza do mundo ilusório no qual o protagonista é prisioneiro. Agora, a origem está na mente do próprio protagonista. O mundo ilusório pode ser resultante de uma desordem neurológica ou psíquica (perda das memórias de curto prazo como em Amnésia ou a esquizofrenia em IdentidadeIdentity, 2003), conflitos interiores (o sentimento de culpa como em A PassagemStay, 2005), poderes extra-sensoriais (como o dom da ubiqüidade espaço-temporal em Donnie Darko, 2001) ou o mergulho em um mundo interior de memórias tal como em Vanilla Sky (2001) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004).

A importância (ou o temor) simbólica das novas tecnologias e dos mundos simulados parece deflacionar. Esse movimento de “retorno ao real” parece também atingir os filmes gnósticos. Se, como Erik Davis observou, o gnosticismo pop do “modelo Matrix” trazia uma reinterpretação paradoxal do gnosticismo (enquanto no gnosticismo o mundo a ser transcendido é o material, no cinema o mundo que aprisiona o homem é o das mediações, das simulações, e a transcendência é o retorno à realidade física), após ano 2000 temos nos filmes gnósticos um retorno a uma visão mais próxima do conceito de gnose: como salvação individual e transformação íntima. Toda a narrativa mítica gnóstica (Queda e Ascensão) é transposta para o interior do protagonista na procura do eu oculto aprisionado que foi e que ainda é parte da Plenitude.

Embora em todos os filmes gnósticos esteja presente o tema da fé em si mesmo (o que se opõe ao catolicismo onde a fé somente pode ser em Deus), somente após o ano 2000 temos um aprofundamento desse aspecto da gnose. No modelo Matrix a “fé em si mesmo” é tratada de forma rápida, próxima à filosofia de auto-ajuda (libertar-se dos medos ou das limitações pessoais). Embora os mundos simulados tecnologicamente sejam a prisão do protagonista, a tecnologia assume um papel importante para essa libertação: a tecnologia da simulação que produz consciência e transcendência em O Décimo Terceiro Andar ou os jogos de simulação de lutas em Matrix que ajudam Neo a superar seus medos e libertar a consciência.

Ao contrário, a safra dos filmes gnósticos pós-2000 apresentam essas verdadeiras “tecnologias do espírito” de forma crítica chegando até ser ridicularizadas. Elas não só são impotentes para possibilitar a reforma íntima, mas constituem-se em verdadeiros Arcontes ou Demiurgos que aprisionam o protagonista. A impotência dos psiquiatras em A Passagem e Identidade, a perplexidade da terapeuta e a pedofilia do autor de livros de auto-ajuda em Donnie Darko, a manipulativa forma terapêutica de apagamento de memórias em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, o fracasso da tecnologia da empresa que vende “sonhos lúcidos” por não prever a irrupção do inconsciente em seu cliente no filme Vanilla Sky. A crítica apresentada a essas “tecnologias do espírito” lembra as advertências de Mani de evitar as tentações consoladoras da religião e do hedonismo como formas anestésicas de combater a melancolia. Em Donnie Darko os seguidores do pedófilo escritor de auto-ajuda são apresentados quase como fanáticos religiosos e a técnica de apagar memórias em Brilho Eterno é, na verdade, uma forma de eliminar sentimentos de culpas para o cliente viver a vida de forma hedonista.

Como já apresentou Sfez (Thomas Sfez, Crítica da Comunicação, São Paulo: Loyola, 2000) , essas “tecnologias do espírito” possuem uma secreta aliança com as novas tecnologias computacionais ao comparar o psiquismo humano a um software, o cérebro a um hardware e a interioridade humana como uma máquina expressiva governada pelo mesmo princípio das redes telemáticas: rede, paradoxo, simulação e interação. Estas “tecnologias do Eu” chegam na crista da onda eufórica em relação à Internet e às tecnologias computacionais e de simulação. Aparentemente, as críticas em relação às tecnologias do espírito nos filmes gnósticos pós-2000 se alinham ao refluxo dos sonhos utópicos tecnocientíficos.

sexta-feira, abril 02, 2010

O Destino da Religião no Mundo Pós Atentados de 11 de Setembro de 2001

O Livro de Eli (Book of Eli, 2010) reflete em cada cena o imaginário pós atentados de 11/09/2001 onde a religião e o choque de civilizações são os responsáveis pelos conflitos mundiais. Por isso, resta à religião ser neutralizada no seu cerne libertário (a Mística e o Sagrado) e se transformar em modelo de ascetismo e disciplina marcial para os “novos padres”. Aviso: esse post contém spoilers!

Se nos anos 80 os filmes com temas pós-apocalipse como Mad Max refletiam o narcisismo anabolizado do conservadorismo da era Reagan, filmes similares do final dessa década continuam a refletir o imaginário pós atentados de 11 de setembro e toda a ideologia justificadora da política internacional anti-terror dos EUA. Como sabemos, o álibi das ações anti-terrorismo norte-americanas se baseia na existência de um “choque de civilizações” entre oriente e ocidente, entre o fundamentalismo islâmico ou de outras culturas teocráticas e as sociedades liberais e democráticas ocidentais. A questão iria além do político, passando para o plano cultural e religioso: nosso deus é mais tolerante e liberal que o dos outros. Países fazem guerras e atentados em nome de um deus, enquanto nós construímos instituições políticas democráticas que refletiriam um sistema religioso de um deus tolerante, que pratica a compaixão e o amor.

O filme O Livro de Eli explicitamente se assenta nesse ideário conservador em plena era supostamente liberal do governo Obama (o que significa que, em relação à era Bush, nada deve mudar nas relações internacionais dos EUA).

O protagonista Eli (Denzel Washington) cruza, solitário, os EUA devastados por uma catástrofe aparentemente nuclear (os personagans falam em “Grande Clarão”, “o céu que se abriu e o sol baixou sobre a terra”, etc.). De qualquer forma, a origem de tudo teria sido uma guerra de proporções mundiais com motivações religiosas. Por isso, após a guerra, todas as cópias da Bíblia (e de outros livros religiosos) foram caçados e queimados, sobrando uma edição que é transportada por Eli, dentro da sua mochila.

Esta única cópia é ansiosamente procurada por Carnagie (Gary Oldman), misto de prefeito e gangster, que vê na Bíblia como um conjunto de palavras com poder persuasivo mágico, suficiente para arregimentar a cidade em seu favor, conseguindo ainda mais poder de influência e controle.

Eli (uma clara alusão ao profeta Elias descrito no velho testamento como o campeão do monoteísmo e modelo para o ascetismo e reclusão na busca do contato com Deus por meio da oração) é solitário, guiado por uma fé cega (uma voz teria revelado-lhe que deveria levar sua única edição da bíblia a algum lugar a Oeste), monossilábico e dotado de coragem e habilidades de um lutador de artes marciais.

Até aqui o filme associa três efeitos da religião: primeiro, produziu uma guerra mundial apocalíptica devido (o filme sugere) ao fundamentalismo e intolerância; segundo, o discurso religioso é apresentado como potencial ferramenta de propaganda que produz persuasão e, em conseqüência, uma espécie de “cimento social” que motiva as pessoas a um objetivo comum; e terceiro, a religião como um drive ético e moral que produz valores como o ascetismo, auto-disciplina e motivação a partir de uma fé cega que induz à sublimação dos desejos e necessidades individuais em nome de um propósito maior.

Aqui a alusão ao profeta Eias é proposital. O movimento monástico do séc. IV tomou a Elias como seu modelo, pondo em relevo a continência, a pobreza, a vida no deserto, o jejum, sua oração. O protagonista Eli no filme vai de encontro a uma linhagem de protagonistas calados, idealistas e ascetas, de Clint Eastwood a Mad Max.

Os “Novos Padres”

O roteirista do filme, Gary Whitta, é originário do universo dos games como jornalista e escritor de games como “Pray”, “War” etc. É interessante perceber a influência no roteiro do Livro de Eli não somente da linguagem do universo dos games, mas, inclusive, do que podemos chamar de um novo ascetismo de uma nova classe que lida com as novas tecnologias. O Pesquisador canadense Arthur Kroker falava sobre o surgimento dos “novos padres”, membros da chamada “nova classe virtual” que possuem uma auto-imagem mística e messiânica como arautos de uma terra prometida: o paraíso digital. Missão que requer renúncia e ascetismo: isolamento, renúncia aos prazeres mundanos e necessidades fisiológicas (sono e sexo), mas, diferente do jejum, uma dieta junk a base de café, cigarros e fatias de pizza em intermináveis sessões em frente às telas do computador.

O pastiche que constitui o protagonista Eli (um misto de característcias dos heróis de Western com heróis de filmes como Kung Fu com David Carradine dos anos 70 – pacifista e lutador) é uma projeção dessa auto-imagem dos “novos padres” da era digital.

O Retorno à Ordem

Essa ideologia neoconservadora sobre a religião vai se concretizar na própria estrutura narrativa, convencional e hoolywoodiana: quebra da ordem e retorno à ordem. O filme inicia mostrando sequências de anomia, caos e desordem (gangues de canibais, tentativas de estupro, roubos, saques), tudo provocado pela religião que jogou o mundo no pós-apocalipse. Eli deve transportar o livro que produziu o apocalipse (a Bíblia) a um lugar seguro, a Oeste. Deve mantê-lo longe de pessoas como Carnagie que apenas repetiriam os terríveis afeitos do passado.

Ao final temos o restabelecimento da ordem, embora Carnagie consiga roubar a Bíblia de Eli: tendo se dedicado a leitura da Bíblia por anos, conseguiu memorizar palavra por palavra. Ao chegar numa São Francisco em ruínas e se dirigir à Ilha de Alcatraz é recebido por membros de uma iniciativa que procura reunir todo o legado artístico da humanidade em uma espécie de museu. Eli passa a ditar todo o conteúdo da Bíblia que é manuscrito para, posteriormente, ser impresso numa nova edição.

A nova versão da Bíblia é, então, colocada em uma estante, confortavelmente ao lado da Thora, Alcorão, Bhagavad Vita etc. É o restabelecimento da ordem. O final é ao mesmo tempo irônico e emblemático: o museu onde todo acervo artístico e cultural da humanidade é reunido fica na Ilha de Alcatraz, legendária penitenciária desativada (muitos blogs ironicamente afirmam que o filme deveria se chamar “Fuga para Alcatraz”).

Esse é o destino conservador da religião e do Sagrado: como um livro repousando numa estante, diante do olhar desinteressado que confina o sagrado a mera estética ou diletantismo. Hebert Marcuse uma vez chamou isso de “tolerância repressiva”: sob a aparência de um sistema liberal que permite que todas as ideologias e religiões sejam publicadas, divulgadas ou expostas, tudo acaba se resumindo a meras oposições binárias, reduzindo-as a “olhares desinteressados” ou “pontos de vista”.

Da religião, apenas uma coisa vai subsistir: a ética marcial da auto-disciplina, ascetismo e renúncia: Eli faz uma discípula, Solara (Mila Kunis), que, em trajes militares, escopeta na mochila e um rayban de fazer inveja a Rambo, sai da ilha de Alcatraz com espírito de vigança, pensando em retornar à cidade do vilão Carnaggie e fazer justiça.

Ou seja, O Livro de Eli, em consonância com a ideologia neoconservadora pós 11 de setembro, foca a religião no aspecto da repressão do indivíduo diante das missões divinas elevadas. A religião é confinada na Grande Livraria de Alcatraz (afinal, provocou grandes desgraças no passado), neutralizada no seu poder do Sagrado (vira mais um livro estocado), restando apenas seu poder de anular qualquer desejo ou livre arbítrio individual em nome de uma moral e ética marciais, necessárias num mundo de lutas contra o “eixo do mal”.


Ficha Técnica:
  • Título Original: The Book of Eli.
  • Origem: Estados Unidos, 2010.
  • Direção: Albert Hughes e Allen Hughes.
  • Roteiro: Gary Whitta.
  • Produção: Broderick Johnson, Andrew A. Kosove, Joel Silver, David Valdes e Denzel Washington.
  • Fotografia: Don Burgess.
  • Edição: Cindy Mollo.
  • Música: Atticus Ross.
  • Elenco: Denzel Washington, Gary Oldman, Mila Kunis

Trailer do Livro de Eli

domingo, março 28, 2010

"Alice no País das Maravilhas" e Sophia: a Viagem do Herói Gnóstico

"Talvez Alice e Sophia sejam simplesmente as principais personagens da história arquetípica da viagem do herói que parte da segurança do lar em direção de terras estrangeiras que fazem pouco sentido, mas eventualmente oferecem grandes lições. A diferença é que Carroll e os gnósticos se atreveram a usar mulheres como protagonistas."

Reproduzimos e traduzimos abaixo o post de Miguel Conner para o blog Aeon Byte Gnostic Radio onde o autor (apressentador do programa radiofônico semanal em Chicago "Radioshow on Gnosticism") faz não apenas uma leitura gnóstica do clássico "Alice no País das Maravilhas" como, também, as conexões do autor Lewis Carroll com o Ocultismo e com todo o fluxo esotérico que invadiu as sociedades conservadoras vitorianas no século XIX. Essas conexões explicariam os profundos simbolismos míticos de Alice associado ao arquétipo de Sophia, a recorrente jornada do herói gnóstico que da Plenitude e Queda alcança,ao final, a Ressurreição e Renovação.


"Alice no País das Maravilhas" e o Ocultismo
Miguel Conner


O sucesso da adaptação de Tim Burton de “Alice no País das Maravilhas” não deve surpreender ninguém. "Alice no País das Maravilhas" (e sua sequência "Através do Espelho”) tem fascinado crianças e adultos há mais de um século e meio, merecendo sucessivas edições impressas e remakes em diferentes formas de mídias.

Muito tem sido escrito sobre as peripécias da Alice, mas muito pouco sobre as inspirações ocultistas da estória e do seu criador, Lewis Carroll (nome real de Charles Dodgson). Isto é surpreedente, considerando que “Alice no País das Maravilhas” é uma das obras mais mística e surreais de toda a literatura. Para além do seu impacto na cultura e arte contemporânea, o livro influenciou o ocultismo (Aleister Crowley exigia que seus discípulos lessem tanto "Alice no País das Maravilhas" como "Através do Espelho").

Além da estória se constituir numa vibrante metáfora sobre uma criança no mundo estranho e, muitas vezes ilógico, dos adultos, Carroll poderia ter escondido idéias ocultas em seu clássico?

É documentado que Carroll era um membro da Sociedade de Pesquisas Psíquicas, uma organização fundada por um pastor anglicano para o estudo do Espiritismo, Percepção Extra-Sensorial (PES), clarividência e todo o tipo de atividade paranormal (entre os membros da sua filial americana estavam William e Henry James).

Martin Gardner afirma em "The Annotated Alice ' que Carroll era um forte defensor da PES e psicocinese. O próprio Carroll escreveu que a mente poderia romper os reinos sobrenaturais:

"Tudo parece apontar a existência de uma força natural, aliada à eletricidade e à força nervosa, através do cérebro, e que pode atuar sobre o cérebro. Acho que vai chegar o dia em classificaremos isso entre as forças naturais conhecidas, e as suas leis tabuladas e, quanto aos cientistas céticos que sempre fecham os olhos até o último momento para todas as provas que aponta para além do materialismo, terão de aceitá-la como um fato comprovado na natureza" (p.53).
Isto claramente ecoou em 'Alice no País das Maravilhas ", onde a lagarta possui o poder de ler a mente de Alice.

Em "Através do Espelho", de repente, Alice pega uma caneta e começa a escrever palavras ininteligíveis em um livro antes do rei branco. Gardner afirma que essa cena foi incluída porque Carroll acreditava na “Escrita Automática” (quando um espírito desencarnado utiliza-se da mão de um médium) (p. 147).

Este poderia ser o segredo do enigma esotérico famoso de Carroll: "Por que um corvo é como uma escrivaninha?" Afinal, os corvos são mensageiros simbólicos dos mortos, enquanto a Escrita Automática (realizada em uma mesa) é também uma forma de comunicação com os mortos.

Por último, relata-se que Carroll era possuidor de uma grande coleção de livros sobre o ocultismo (pág. 53).

É surpreendente a quantidade de provas sobre o seu interesse místico e como isso influenciou seus escritos. Carroll era diácono da Igreja Anglicana, assim como um homem muito privado, que não concedia entrevistas. E aí está o mistério sobre o desaparecimento dos seus extensos diários.
Aparentemente nada parece ser abertamente gnóstico em “Alice no País das Maravilhas” até reconhecermos alguns dos principais temas em torno da heroína.

A saga do Alice tem impressionantes paralelos ao mito da queda de Sophia, tal como descrito em alguns contos gnósticos:

. Ambas, de tédio, curiosidade e desobediência, são jogados em uma dimensão existencial (Alice - Sophia – O Chaos).
. Ambas, frequentemente, perdem a sua direção e os seus sentidos, e até ao auxiliadas por seres maliciosos (Alice - O Gato de Cheshire / Sophia - O Cristo Cósmico).
. Ambas parecem criar bizarras criaturas que elas têm de superar (Alice entidades diferentes, mas o dragão Jabberwocky-como é o exemplo mais famoso / Sophia-Jehovah, que aparece para ela sob a forma de um dragão)
. Ambas devem passar por testes emocionais para que possam retornar ao seu lar primordial (Alice-Inglaterra; Sophia-O Pleroma).
. Ambas representam a busca gnóstica da alma caída em busca do autoconhecimento, que trará restauração e liberação da matéria corrompida (Alice deve resolver diversas adivinhações e, muitas vezes, refletir sobre sua própria natureza / Sophia deve descobrir e pronunciar as preces corretas para compreender a si mesma e seu lugar dentro do reino eterno que ajudou a criar).
. Ambas percebem que eles são parte do sonho vívido de um Ultra-Ser Supremo (Alice - O Rei Vermelho / Sophia - O Espírito Virgem/Bythos).
. Ambas têm nomes que representam grandes virtudes humano (“Alice” significa Verdade/ “Sophia” significa Sabedoria).

Mesmo o maior evangelho gnóstico dos últimos tempos, o filme Matrix, faz alusão a “Alice no País das Maravilhas”. Isso acontece quando Morpheus (o deus dos sonhos) ensina Neo (Jesus gnóstico) que ele deve despertar não só acima de todas as realidades falsas, mas também confrontá-las:

"Imagino que agora você está se sentindo um pouco como a Alice. Hein!? Caindo no buraco do coelho!?

'Esta é a sua última chance. Depois disso, não há como voltar atrás. Você toma a pílula azul - A história acaba, e você acorda em seu quarto e acreditar no que quiser acreditar. Se tomar a pílula vermelha vai permanecer no País das Maravilhas e eu te mostrarei o quão profundo é buraco do coelho. "

Talvez Alice e Sophia sejam simplesmente os principais personagens da história arquetípica da viagem do herói que parte da segurança do lar em direção de terras estrangeiras que fazem pouco sentido, mas eventualmente oferecem grandes lições. A diferença é que Carroll e os gnósticos se atreveram a usar mulheres como protagonistas.

Em que medida Carroll usou seu conhecimento sobre ocultismo, isso nunca será plenamente conhecido. É simplesmente aceito que o diácono anglicano e matemático escreveu histórias para impressionar uma garota que o inspirou.

O que se sabe é que Carroll se junta a uma lista de artistas de prestígio que, a despeito de viver em sociedades conservadoras, mergulhou no fluxo do esoterismo e tirou das águas intemporais a criatividade mística. Pouco importa se 'Alice no País das Maravilhas' foi conscientemente influenciada pelo Gnosticismo. Como o Bispo Stephan Hoeller disse certa vez: "Qualquer artista sério já é um meio Gnóstico”.

Essas idéias podem realmente adicionar novas interpretações de leitura sobre os textos gnósticos, que nunca Lewis Carroll viveu para ver. É uma pena, porque tanto Carroll como os gnósticos apreciam trocadilhos, as interpretações selvagens, paisagens fantasiosas ricas em significados que não têm sentido a menos que possua a Sabedoria (Sophia) de uma criança ou a sagacidade de um filósofo-poeta. E aí é que reside a eterna ligação entre aqueles que mergulham no fluxo de esoterismo e as águas intemporais da criatividade mística.

Um exemplo divertido que Carroll pôde apreciar pode ser encontrada no Evangelho de Filipe, onde afirma que “a Verdade (Alice) não veio ao mundo (País das Maravilhas / A Matrix) nua, mas ele (ela) veio por meio de letras e imagens. O mundo (País das Maravilhas / A Matrix) não receberá a verdade (Alice) de qualquer outra maneira.”

Ou poderia seria Carroll acreditar, tal como Alice e Sophia, que os gnósticos tenham simplesmente despencado num buraco de coelho?

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domingo, março 14, 2010

Quero Ser John Malkovich: Reencarnação e Identidade pelo ponto de vista Gnóstico

Um filme estranho, bizarro e esquisito. A partir de um argumento absolutamente nonsense ( Um homem consegue um novo emprego. Lá encontra uma porta, escondida, que leva até a mente do ator John Malkovich, onde pode permanecer durante 15 minutos, até ser cuspido numa estrada. Impressionado com a descoberta, resolve alugar a passagem para outras pessoas, dentre elas o próprio John Malkovich) o filme aborda profundos simbolismos em torno da Identidade e Reencarnação.

Diferente da maioria das religiões ocidentais, o objetivo final gnosticismo não é encontrado na vida após a morte. Os gnósticos procuraram se tornar “Cristos vivos”, ou seja, buscar vencer a ignorância e a morte. Neste estado, os mistérios da criação e não só iriam se manifestar, o tempo e o espaço se dissolveriam diante da consciência, e todas as ilusões da realidade entrariam em colapso. Como podemos perceber nessas duas passagens dos evangelhos apócrifos de Felipe e Tomé:

“Se você viu Cristo, tornou-se Cristo
Essa pessoa não será mais um cristão, mas o próprio Cristo
Se alguém consegue conquistar a ressurreição, jamais morrerá”
(Evangelho de Felipe)

“Jesus disse: Quem beber da minha boca se tornará como eu, eu mesmo passarei a ser essa pessoa,
e as coisas ocultas serão reveladas a ele”
(Evangelho de Tomé)

O Gnosticismo vê na reencarnação uma perversa estratégia do Demiurgo (Yaldabaoth, o falso deus, criador do cosmos material que, inebriado pelo poder, acredita ser a única divindade reinante no universo) para nos manter presos nesse mundo através do esquecimento. Condenados a recomeçar sempre do zero, não somamos conhecimentos, esquecemos por subtração.
Para muitos gnósticos, a falha em alcançar esse objetivo simbolicamente significava ficar aprisionado dentro do círculo infinito do dragão cósmico que come o seu próprio rabo, o Ouroboros (veja figura abaixo).

“Mas o que é aparente é que o Gnosticismo despreza a reencarnação, tanto quanto a condenação eterna ou a extinção.A razão óbvia é que ser preso dentro do Ouroboros implica no veneno do esquecimento contínuo e ignorância, opostos ao antídoto libertador da Gnose. Uma vida ou mil é tão inútil, a menos que um indivíduo possa acender a centelha divina e tornar-se como Cristo. Apesar da imagem dos gnósticos ser a de smísticos tranqüilo, a verdade é que o gnosticismo tem subjacente um sentido de urgência que, como a reencarnação, também está ausente da maioria das religiões ocidentais.” (CONNER, Miguel. “Do Gnostics Believe in Reincarnation?” In: Aeon Byte, disponível em http://aeonbyte.blogspot.com/2010/03/examiner-article-do-gnostics-believe-in.html)


Reencarnação é esquecimento, a condenação de recomeçar sempre do zero. Isso significaria a perda da identidade. Um filme que magistralmente faz uma parábola dessa questão é o enigmático e surreal filme Quero Ser John Malkovich

A marionete é o símbolo principal desse filme. Além do simbolismo óbvio presente na narrativa (Craig - John Cusack - utiliza-se da sua habilidade de titereiro para manipular identidades e a marionete como paralelo à condição manipulada de John Malkovich), há um significado mais profundo: as marionetes são descendentes diretos dos antigos ídolos divinos, adorados e animados pelos seus sacerdotes.

Victoria Nelson no livro The Secret Life of Puppets demonstrou como na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus . Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs, ciborgues, andróides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano. Só que, agora, com um ingrediente a mais: a criação de uma mediação para a qual a consciência humana se transfira e transcenda a prisão da carne. O anseio humano em migrar para mediações idealmente modeladas.

O filme simboliza esse anseio pelas mediações em diversos momentos. Podemos observar isso em dois diálogos. Após Maxine transar com Malkovich sabendo que Lotte estava na sua cabeça, provocativamente comenta com Craig:

Craig: Você me tortura de propósito?
Maxine: Eu me apaixonei.
Craig: Acho que não. Eu me apaixonei, e pessoas apaixonadas ficam assim.
Maxine: Escolheu o tipo não correspondido. Isso faz mal para a pele!
Craig: Você é má Maxine!
Maxine: Sabe como é ter duas pessoas olhando para você, com total luxúria e devoção através do mesmo par de olhos?

Pessoas apaixonadas umas pelas outras, mas que necessitam de mediações para consolidarem os relacionamentos. Uma espécie de sexo platônico onde o objeto da paixão é visto através de olhos ideais, despertando impulsos exibicionistas em Maxine. Ou a aspiração pelas mediações decorre da negação da condição física atual:

Primeiro cliente da JM Inc.: Quando dizem que posso ser outro o que querem dizer?
Craig: É exatamente o que dissemos. Podemos colocá-lo no corpo de
outra pessoa por 15 minutos.
Primeiro cliente da JM Inc.: Posso ser quem eu quiser?
Craig: Bem, você pode ser John Malkovich.
Primeiro cliente da JM Inc.: Perfeito! É minha segunda escolha, mas é maravilhoso. Sou um homem gordo. Sou triste e gordo.”
A Reencarnação e a Mediação

Esta discussão liga-se ao tema da Identidade, associada, também, à questão da Mediação e da Reencarnação: ser através do Outro (pessoa, marionete etc.). E também a revolta e o desejo de se libertar das cordas que controlam a identidade: quem o manipula, quem está, na verdade, dentro de você controlando-o?

A primeira seqüência do filme sintetiza esta dupla dimensão do tema da Identidade. Vemos Craig manipulando uma marionete e fazendo o que ele denomina de “Dança do Desespero e da Desilusão”. Craig manipula a marionete como uma mediação para si mesmo, como ele diz a certa altura do filme (na voz de uma marionete): “Craig, por que você gosta tanto de marionetes”, pergunta Maxine. “Maxine, não tenho certeza. Talvez seja a idéia de ser outra pessoa por um instante. Estar em outra pele, pensar e mover-se diferentemente, sentir de outra maneira”, diz a marionete de Craig. Ao mesmo tempo, o boneco olha para cima, descobre que não passa de uma marionete, revolta-se e começa a quebrar o quarto em miniatura no pequeno palco da oficina de Craig. O boneco revolta-se com a sua condição e quer libertar-se do manipulador. Será a condição de John Malkovich mais à frente na estória.

O que temos aqui é o tema da crise de identidade no mundo contemporâneo. Craig é um titereiro que, embora talentoso, está desempregado. Sua esposa Lotte fala que ele deveria arrumar um pequeno emprego. “Quem vai querer contratar um titereiro numa economia invernal como a de hoje”.

Craig passa de titereiro talentoso a arquivista na Lestercorp (por ter mãos rápidas) e, após o trabalho, explora o “bico” de ganhar dinheiro com o portal que conduz à cabeça de John Malkovich. Mas, nessas três situações, há uma coisa que as une: a busca de uma mediação que o faça transcender a sua vida frustrada e melancólica: no começo, as marionetes e, no final, a cabeça de John Malkovich.

No primeiro caso, a transferência é simbólica, no segundo é literal: transferir sua consciência para a Mediação. A narrativa associa esta transferência a um aspecto religioso ou místico: a reencarnação.

Todos os personagens centrais do filme, e os clientes da JM Inc., querem viver os 15 minutos na cabeça de John Malkovich. Procuram transferir-se para uma mediação como forma de transcenderem das suas existências infelizes. É uma parábola do espírito de final de século, onde as novas tecnologias do virtual vão oferecer através de avatares, perfis criados em blogs, orkuts, twitters etc. a possibilidade de viverem outras ou múltiplas identidades. No filme os personagens perceberão que é uma falsa gnose.

Ao contrário, o grupo do Dr. Lester procura a verdadeira gnose. Pretende alcançar a vida eterna pregando um “pequeno” golpe no Demiurgo: driblar a lei da Reencarnação. A mitologia gnóstica vê na reencarnação uma perversa estratégia do Demiurgo para nos manter presos nesse mundo através do esquecimento. Condenados a recomeçar sempre do zero, não somamos conhecimentos, esquecemos por subtração. O grupo de Lester alcança a imortalidade não mais reencarnando, mas transferindo a consciência para um “corpo recipiente” na sua fase mais madura em termos de consciência e formação mental. Eles têm até a meia-noite do dia designado para transferirem-se, pois, caso contrário, “seriam absorvidos, presos, enjaulados no cérebro do anfitrião, impossibilitado de controlar qualquer coisa, sentenciados a ver o mundo através dos olhos de outra pessoa”, como afirma Dr. Lester. Ou seja, a prisão da Reencarnação, tal qual denunciada pelo Gnosticismo. Enquanto Craig, Maxine e Lotte querem transferir-se para a mediação pelo desejo de ver o mundo através dos olhos de outras pessoas, o grupo de Lester quer mais do que isso: mantendo intacto o núcleo da consciência, pular de um corpo para o outro alcançando a imortalidade e mantendo a identidade.

Ficha Técnica:
  • título original:Being John Malkovich
  • duração:01 hs 52 min
  • ano de lançamento:1999
  • estúdio:Propaganda Films
  • distribuidora:USA Films / UIP
  • direção: Spike Jonze
  • roteiro:Charlie Kaufman
  • produção:Steve Golin, Vincent Landay, Sandy Stern e Michael Stipe

sábado, março 13, 2010

Porões, Metrôs e Becos: a simbologia da caverna no cinema

A simbologia da caverna tem uma longa história que envolve não só a filosofia e o desenvolvimento da racionalidade ocidental mas, inclusive, o destino da experiência do sagrado na atualidade. Isso vai se refletir numa variada simbologia e iconografia presentes em filmes dos mais variados gêneros. (Foto: sequência de Cloverfield - 2008)

A tradição das cavernas como ante-câmera de um mundo subterrâneo, terra dos mortos, o meio do caminho para o contato com deuses em uma realidade separada da humana, está presente desde tempos arcaicos. Filósofos gregos pré-socráticos, por exemplo, estavam fundamentados numa tradição da busca da sabedoria na escuridão, e não na luz, através da incubação de sonhos em cavernas. Aqueles que se iniciavam nesses lugares sagrados participavam de uma jornada no reino dos mortos na esperança de encontrar uma divindade que se tornaria seu amigo ou mentor. Tais cultos apresentavam a caverna como lugar de cura e conexão com o transcendental mundo para além dos nossos sentidos.

A partir de Platão e Sócrates temos uma virada: a caverna será apresentada como uma parábola da limitação da percepção derivada da experiência sensorial, portanto, um lugar de onde devemos escapar para encontrar a verdade. Essa parábola mostra a visão de mundo do ignorante, que vive no senso comum, e do filósofo na eterna busca da verdade. Aprisionado no interior de uma caverna, limita-se a ver sombras nas paredes projetadas do mundo exterior (o Mundo das Idéias, oposto ao mundo das coisas sensíveis).

Seis séculos depois, a crença em um mundo superior escondido por trás das formas transitórias dos sentidos continua presente nos antigos cultos helenísticos, escolas filosóficas e novas religiões, mais notadamente o Cristianismo. Esse abandono da tradição das cavernas, corresponderá a uma oposição entre as formas da busca da Verdade: espisteme versus gnosis, fé versus mística, razão versus intuição. O mundus subterraneus, local dos mistérios, sonhos e da morte, canal de conexão com o transcendente, é recalcado pela simbologia da Luz que desvenda todos os mistérios e ilumina a ignorância.

Este modelo de um cosmos construído em dois níveis (o mundo superior onde reside o criador e um mundo inferior, cópia deteriorada das instâncias superioras) é secularizado pelo racionalismo científico e pelo protestantismo. A decretação do fim dos milagres pelo protestantismo (ou o fim do contato direto com os reinos espirituais) e a redução do mundo a um único nível pela ciência (o mundo empírico) nada mais faz do que secularizar a antiga dualidade helenística em uma moderna dualidade: sujeito e objeto, ego e id, cultura e natureza etc.

Mas a luz da episteme cria sombras. O mundo subterrâneo não está realmente morto. Uma espécie de "sub-zeitgeist" surgirá na cultura popular onde o sobrenatural somente se manifestará em reinos escuros, demonizados.
“Pense na mais profunda garagem de veículos nos últimos dez filmes de ação que tenha assistido, sempre mostrado como lugar de perigo e discórdia, onde o herói ou a heroína é atacado pelo vilão, onde perseguições de carros terminam em destruição em massa. Ou as misteriosas regiões em metros onde almas mortas se manifestam como hordas de sem-tetos. Ou os labirintos desses filmes sempre localizados sob ficcionais Chinatowns. Ou os numerosos mundos alternados ou secundários dos filmes de ficção-científica, incluindo as cavernas de misteriosos planetas como no filme Alien (1979) repletos de sinistros ovos que infectam a tripulação da nave Nostromo com um destrutivo e agressivo organismo que mata cada organismo que o hospeda. Ou a idéia, repetida de uma maneira ou outra em quase toda ficção em realidade virtual ou filme de que o que vemos em torno de nós é uma ilusão criada para mascarar uma outra realidade que reside abaixo ou acima de nós.” (NELSON. Victoria. The Secret Life of Puppets. Havard University Press, 2001, p.6)
Com a revolução científica do século XVII acompanhado pelas primeiras expedições polares, o mundus subterraneus passou a não ser mais aceito como uma real locação e foi transformado em um fictício local transcendental e psicológico na literatura e nos filmes. A tradição das cavernas como o local para o impulso da busca pelo sagrado na escuridão e nos sonhos é demonizado na moderna cultura como locais perigosos onde habita o Mal. E o mago ou mentor desse reino (dos zoroastras padres da antiga Persia aos medievais alquimistas) é transformado no estereótipo do cientista louco cujas energias que tenta manipular provém das trevas subterrâneas.

O Fascínio pela “experiência religiosa imediata”


Esse simbolismo e iconografia da caverna nos filmes é o que fascina o público. Lá está o vilão, o mal, aquele que quebra a ordem da Luz, a episteme, do mundo lógico e científico do cotidiano. Nos oferece aquilo que Jung definiu como “experiência religiosa imediata”, à experiência numinosa, nos termos colocados por Rudolf Otto traduzido pela frase mysterium tremendum fascinans et augustum. O numinoso é um efeito que apodera e domina o sujeito, mais sua vítima do que criador. Condição do sujeito e independente da sua vontade, a percepção da presença do numen suscita o sentimento de grandeza, de maravilhamento, de respeito. É a percepção do misterioso, do inteiramente outro que ultrapassa a esfera do usual, do inteligível e do familiar. O mysterium representaria o das ganze Andere (o totalmente outro), o qualitativamente diferente, que apresenta dois conteúdos: o tremendum, elemento repulsivo, que causa medo ou terror, e o fascinans, o que atrai, fascina. É esta experiência religiosa imediata, a experiência numinosa (fascinante por ser uma manifestação do magma reprimido do inconsciente e repulsivo por ser a erupção do Estranho, ou seja, daquilo que é potencialmente desestabilizador) que necessita ser controlada pelos sistemas simbólicos religiosos para que a natureza ambígua e perturbadora do numen seja diluída.

Com o enfraquecimento da gnosis e o “fim dos milagres” decretado pelo cristianismo protestante, assim como a influência da chamada ilustração científica que afasta inclusive homens religiosos que não conseguem conciliar a religiosidade com a ciência, novas formas de mediação devem ser criadas. Surgem formas secularizadas de, simbolicamente, lidar com a “experiência religiosa imediata”, isto é, com o fluxo do psiquismo humano que vem à tona na vida cotidiana. O cinema seria uma delas.

Sagrado como “quebra da ordem”


A tradição da caverna busca o inteiramente outro, a transcendência, a ruptura como uma totalidade instaurada. A mitologia da caverna tal qual interpretada por Platão e Sócrates é o ato inaugural da liquidação do indivíduo, reduzido à condição de ignorância diante da Verdade (Logus, episteme etc.).

Ver a ordem sendo quebrada pelo cientista louco, pelo serial killer, pelo terrorista ou por vilões egressos dos reinos subterrâneos (cavernas, laboratórios em porões, metrôs – no filme Advogado do Diabo (1999) o diabo somente se desloca por metrô em Nova York) fascina o espectador por trazer essa experiência religiosa arcaica e arquetípica.

Porém, o perigo da experiência sagrada é racionalizada e colocada sob controle na narrativa fílmica: os vilões são punidos, a “caverna” é destruída ou enterrada para sempre e a Episteme e a Razão se impõe como único destino possível.


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Da Jornada do Herói de Vogler à Jornada do Herói do Filme Gnóstico

segunda-feira, março 08, 2010

Da Jornada do Herói de Vogler à Jornada do Herói do Filme Gnóstico

A mítica Jornada do Herói descrita por Vogler como a base universal de todo roteiro parece se assemelhar à jornada da narrativa do protagonista do filme gnóstico (Queda, Ascensão, Plenitude). Porém, há uma diferença essencial: a Teologia Negativa

Na semana passada, durante a aula da disciplina Estrutura de Roteiro ministrada por mim no curso de Comunicação (Publicidade e Propaganda) da Universidade Anhembi Morumbi (UAM), discutíamos o personagem mítico do Herói, tal qual descrito por Christopher Vogler no livro Jornada do Escritor. Baseado nas idéias do historiador e pesquisador em Mitologias Joseph Campbell, a Jornada do Herói com toda a galeria de personagens (o Pícaro, a Sombra, o Arauto, o Camaleão etc.) seria, para Voegler, a estrutura narrativa básica de todo ou qualquer roteiro cinema por se basear em um modelo de narrativa mítica presente em todas as culturas e épocas.
O que chama a atenção na descrição de Vogler é o motivo que impulsiona o herói a iniciar a jornada mítica:

“O estímulo para esta jornada é a mudança de algo em seu mundo comum, e ele parte para buscar a restauração deste mundo, ou ele está insatisfeito em seu mundo e parte para provocar uma mudança. Em ambos os casos o motivo da jornada é a falta de alguma coisa. O herói se sente incompleto e vai em busca de sua plenitude. O resultado é a transformação do próprio herói. Mesmo que o ambiente não se altere o herói não o enxerga mais da mesma forma.” VOGLER, Christofer. A Jornada do Escritor)

Para muitos leitores desse Blog ou que acompanham as discussões sobre o filme gnóstico, essa descrição feita por Vogler parece se assemelhar em muito com o protagonista do filme gnóstico. Os estados alterados de consciência dos protagonistas gnósticos (a suspensão do Viajante, a paranóia do Detetive e a melancolia do Estrangeiro) partem também de insatisfações e incompletudes. Todos buscam a plenitude.
Porém, com uma diferença fundamental: a Teologia Negativa. Ou, em termos fílmicos, a ruptura com a ordem ou totalidade. O protagonista gnóstico não só se transforma interiormente como essa renovação implica a ruptura, in totum, com uma percepção ontológica do real.

Uma pequena história da "quebra da ordem"

A história da “quebra da ordem” no cinema é interessante. No chamado “cinema slapstick” (os filmes mudos “de pastelão”), a trajetória do herói o conduz ao clássico happy end anárquico: os heróis vencem os desafios e limitações impostos pelo sistema (social, policial, econômico etc).

Como, por exemplo, no antológico final do filme de Harold Loyd O Homem Mosca (The Safety Last, 1923) onde, após escalar um prédio com as próprias mãos em busca de emprego e casamento, apesar de atrapalhado seguidamente por um policial, vence todos os percalços, chega ao topo e encontra sua noiva para o beijo final.

Aliás a figura do representante da ordem, o policial, é ridicularizada. Desde o grupo The Keystone Cops (um ajuntamento de policiais desajeitados que cada missão se reverte em catástrofes que pervertem a ordem), a figura do policial é ridicularizada e nunca consegue prender ninguém. Os personagens de Chaplin, o Gordo e o Magro, Harold Loyd e, mesmo na fase sonorizada, os Três Patetas, sempre escapam da polícia, denunciando a hipocrisia da Lei a inutilidade em aderir ao sistema.

Com a depressão econômica pós crash da Bolsa de Nova York em 1929 o proletário se retira do cinema para dar lugar às classes médias, exigindo um enquadramento moral e político na produção cinematográfica. Principalmente a partir dos filmes musicais, o esquema passa a ser quebra e retorno da ordem constante nas narrativas. Por exemplo, nos musicais todos começam a cantar e dançar e, de repente, retornam aos seus papéis sociais como se nada tivesse acontecido. Essa autêntica fantasia-clichê se desenvolve, varia e se atualiza ao longo das décadas e gêneros cinematográficos.

Desde os filmes de terror (onde o monstro ou serial killer assassina primeiro jovens que fazem sexo, consomem drogas ou, simplesmente, desobedecem os pais), passando por road movies (como em Sem Destino - Easy Rider, 1969 - ou Thelma e Louise - Thelma e Louise, 1991 - onde os protagonistas morrem após romperem a ordem) até os filmes policiais ou de ação (onde o happy end, diferente dos filmes slapstick, é moralista com o herói restabelecendo a ordem política e social), temos diversas variantes dessa fantasia clichê.

Já os filmes gnósticos apresentam uma peculiar forma de ruptura com a “ordem”: a gnose. Mas essa ruptura não é apenas uma ruptura com a ordem política ou social, mas a ruptura com a própria noção ontológica de realidade. A ruptura com a Totalidade e com racionalizações confortantes que abrigam o indivíduo dentro de um “sentido” ou “propósito”.

Vejamos dois filmes que trabalham com um tema potencialmente gnóstico: o simbolismo do controle remoto como um aparelho que altera ou interfere não apenas na TV mas na própria realidade presentes em A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998) e Click (Click, 2006).
Em Click um arquiteto workholic ganha um estranho controle remoto universal que lhe permitirá acelerar ou retroceder as situações de diferentes partes da sua vida. O que poderia dar margens a questionamentos ou, no mínimo, ao medo ou êxtase metafísico ou filosófico, ao contrário, reverte-se num imediato interesse instrumental: acelerar as partes “chatas” da vida (jantar com a família, levar o cão para passear, carícias preliminares com a esposa antes do sexo etc.) para que ele possa se concentrar no trabalho.

A narrativa se desloca do potencial interesse metafísico ou gnóstico (a realidade como um constructu, uma artificial sucessão de imagens holográficas) para um viés moralista, onde o protagonista será punido por romper com os valores familiares.
Ao contrário, em A Vida em Preto e Branco, outro estranho controle remoto ganho de um não menos estranho técnico de TV, fará dois jovens serem tragados para o interior de uma série televisiva dos anos 50. Essa jornada fará os jovens heróis questionar não só os valores do mundo em preto e branco da década de 50, como os valores da atualidade deles (os anos 90). Os seus questionamentos serão marcados por uma forte simbologia e iconografia de origem bíblica do Velho Testamento (Paraíso, maçã, dilúvio, arbustos incandescentes etc.).

É a partir desse estado alterado de consciência iniciado pelo controle remoto, que os heróis vislumbram uma outra realidade que transcende aquela da tela de TV ou da realidade dos jovens da década de 90 dominado pelas imagens da MTV.

Assim como a mítica jornada do herói descrita por Voegler, os protagonistas realizam uma transformação íntima. Porém, isso implica em ruptura e transcendência (ou “quebrada ordem”, em termos fílmicos). A totalidade seja social ou divina/cósmica é negada: nem a ilusão e muito menos a ilusão de realidade, mas a busca de um terceiro elemento para além das oposições ou dualidades que esse cosmos nos impõe.

Tal qual a Teologia Negativa que revela a existência de Deus a partir da sua negação (ou da impossibilidade da linguagem expressar a sua existência) e, como pretende Theodor Adorno com a sua dialética negativa ("Dialética Negativa é Teologia Negativa", afirmava), revelar a falsidade do Todo buscando a transcendência no particular ou individual, o filme gnóstico busca a partir da negação (ás vezes niilista) da ordem de uma totalidade (social, divina, religiosa) a plenitude última que seria a superação dos termos do cosmos material presente.

A "transformação" do herói ao final da jornada mítica como descrita por Vogler é ainda marcada pela positividade: é muito menos uma transformação e muito mais uma adaptação íntima a uma totalidade que o envolve. A penalidade seria a da morte trágica, como ao final do filme Thelma e Louise.

domingo, março 07, 2010

Grupo de Pesquisas da UAM discute filmes de Mel Gibson

Filmes dirigidos por Mel Gibson, principalmente o polêmico A Paixão de Cristo, buscam uma transcendência religiosa ou filosófica ou são meros reflexos do neo-conservadorismo político e cultural da passada era Bush?
O Grupo de Pesquisas sobre Religião e o Sagrado no Cinema e Audiovisual, formado no ano passado na Universidade Anhembi Morumbi (UAM), deu início ao ciclo de seminários avançados. O primeiro componente do grupo a expor suas pesquisas foi Cléver Cardoso T. de Oliveira (estudante de Rádio e TV da UAM e estudante de Filosofia da USP) onde apresentou as conexões entre dois filmes de Mel Gibson (Paixão de Cristo - The Passion of Christ, 2004 e Apocalypto - Apocalypto, 2006) com conceitos do filósofo político teuto-americano Leo Strauss (1899 - 1973).

Autor do livro "Direito Natural e História" é tido por muitos como o pai intelectual de todo o neo-conservadorismo norte-americano e da cúpula de dirigentes do governo Bush e das suas políticas neo-liberais. Sua obra procura combater o relativismo do olhar multiculturalista da antropologia, isto é, através da Razão e do Direito Natural, tenta encontrar um ponto de referência filosófico que permita o estabelecimento de juízos sobre culturas diversas no tempo e no espaço.

Através desse referente, por assim dizer, fixo que pairaria sobre todos os relativismos culturais, poderíamos entrar no interior de uma cultura e participar dela, ao contrário do olhar antropológico ocidental que se distância por meio de uma espécie de “olhar de sobrevôo”.

Para Cléver, os filmes de Mel Gibson A Paixão de Cristo e Apocalypto procuram exatamente isso ao utilizar-se de recursos fílmicos que permitam ao espectador, muito mais do que uma identificação, entrar no corpo do próprio protagonista e personagens.

Recursos como o da linguagem falada nos filmes ser a da própria época retratada (aramaico em Paixão de Cristo e a linguagem maia Yucateco em Apocalypto), um áudio “hiperreal” (sons exageradamente audíveis como a dos instrumentos de flagelo de Cristo utilizados pelos soldados romanos, o ranger da madeira da Cruz sob o peso de Cristo, as flechas que cortam o ar em Apocalypto etc.), os planos de câmera em ponto de vista (como de Cristo que cai quase sem sentidos após ser torturado e vê a todos ao redor de um plano invertido, o ponto de vista das cabeças decepadas que rolam pela escadaria da pirâmide maia, entre outros exemplos analisados por Cleverson.

A discussão ficou em torno dessa questão: será que essa transcendência que Mel Gibson procura no sentido de que nos despojemos do ponto de vista da cultura da atualidade e entremos na cultura daquela época retratada para que possamos fazer um juízo racional (será que os judeus foram os verdadeiros assassinos de Cristo? Será que a vingança do protagonista em Apocalypto foi justa ao defender sua família a fúria sanguinária dos maias) é muito menos religiosa ou filosófica e muito mais reflexo do conservadorismo político da era Bush? Afinal, esse esforço em buscar um D

ireito Natural para além do Direito Positivo que nos permitiria julgar ações no interior de uma dada cultura não seria um discurso que cairia como uma luva para a política internacional de luta contra o “eixo do mal” do governo Bush Jr.? Como, por exemplo, impor a democracia, mesmo que seja à força através do sacrifício de milhares de civis inocentes, a países distantes geográfica e culturalmente.

Em Apocalypto, por exemplo, a cena final do filme (os maias avistando a chegada das caravelas dos conquistadores espanhóis) vai de encontro ao ponto de vista da xenofobia do neo-conservadorismo: a força dos estrangeiros é proporcional ao enfraquecimento moral interno da cultura ocidental (vítima do relativismo e do niilismo). A epígrafe que abre o próprio filme (“Uma grande civilização não é conquistada de fora, até que tenha destruído a si mesma por dentro”) é uma pista para podermos considerar esse filme uma fábula neo-conservadora sobre a política internacional.

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