Pages

quinta-feira, maio 11, 2023

Hiperliberalismo, pós-morte e Cinetanatologia na série 'Amanhã'


As representações no cinema e audiovisual sobre o Além e a vida após a morte são um verdadeiro sismógrafo do que ocorre aqui entre os vivos. É o que este Cinegnose chama de “Cinetanatologia”: o estudo das diferentes representações da morte e do além-túmulo no cinema e audiovisual. Um bom exemplo é a série Netflix sul-coreana “Amanhã” (Tomorrow, 2022- ) que revela como a representação do além-túmulo daquele país reflete o mal-estar entre os vivos: a crescente onda de suicídios, bullying e violência escolar. Um Céu corporativo preocupa-se com a ameaça da falência decorrente da superpopulação de almas de suicidas que chegam. Por isso, cria uma equipe de “Gestão de Riscos” para convencer depressivos, desempregados e perdedores em geral do país para não se matarem. “Amanhã” é uma série de comédia dramática que revela como o céu ficcional reflete o hiperliberalismo sul-coreano: a religião secularizada da meritocracia.

Cinetanatologia: o estudo das diferentes representações da morte e do além-túmulo no cinema e audiovisual. Em cada período histórico, ou mesmo em cada década (cinema e audiovisual estão no acelerado tempo midiático), mudam as representações do morrer e do pós-vida: como morrer, para onde vai a alma e qual a natureza do além para onde vamos – ou de que maneira irá nos receber.

Grosso modo, os céus e infernos no pós-morte nas telinhas e telonas variam entre representações objetivas (espaços clássicos que vão de anjos, nuvens ou grandes prisões infernais a cidades ou organizações burocráticas) ou solipsistas (haveria inúmeros céus e infernos pessoais, espaços etéricos moldados de acordo com nossas vontades, sonhos, fantasias ou culpas, ressentimentos, medos e ansiedades). 

Em postagem anterior acompanhamos como essas representações mudam de acordo com mudanças políticas e socioeconômicas do capitalismo – no começo do século, filmes sobre experimentos científicos que dão errado (Frankenstein, por exemplo; passando para a preocupação com os mortos da II Guerra Mundial (para onde vão e como serão recompensados pelo esforço e sacrifício); e a partir dos anos1980 o boom de filmes sobre o pós-morte solipsista: os céus são criados por projeções psicológicas dos personagens a partir dos seus sonhos, desejos e sentimentos. Amor Além da Vida (1998) é o filme emblemático – clique aqui.

A produção fílmica sul-coreana recente é um bom exemplo dessa tese do cinema e audiovisual como sismógrafos do seu tempo. 

Em postagem anterior sobre a série Netflix A Lição vimos como tema da vingança não só refletia um ressentimento geopolítico (Coreia do Sul como um país espremido entre as potências China e Japão) como associado ao tema da luta de classes, marcante num país cujo desenvolvimento socioeconômico desigual produz o fenômeno endêmico do bullying e violência escolar – clique aqui.

Também a série Netflix Amanhã (Tomorrow, 2022- ) é outra produção audiovisual que conecta diretamente com o espírito do seu tempo, dessa vez dentro do campo da Cinetanatologia – uma comédia dramática baseada em webtoon homônima na qual o protagonista transforma-se em meio humano-espírito e acaba contratado por uma empresa do Além especializada em missões especiais como escoltar almas de recém-falecidos e preparar novas reencarnações.

Como alerta os espectadores nos créditos iniciais, a série trata de temas sensíveis e potenciais gatilhos para aqueles mais sensíveis: suicídio, bullying, depressão, desemprego, alcoolismo, distúrbios alimentares, estupro, transtornos de stress pós-traumático etc. e, como não poderia deixar de ser na produção atual (desde o sucesso de Parasita), luta de classes.  




Em Amanhã o morrer está atrelado diretamente ao suicídio como a resultante de todas as mazelas atuais da Coreia do Sul – segundo a Organização Mundial de Saúde, o país tem a segunda maior taxa de suicídio do planeta, assim como a maior taxa de suicídio de um Estado membro da OCDE. É o “preço do desenvolvimento” como justificam cinicamente os defensores do modelo neoliberal de crescimento acelerado do país, gerando essa fixação da produção fílmica daquele país em “temas sensíveis”.

É sintomático que os primeiros dos 16 episódios da primeira temporada ocupem o tema do suicídio. Mas, principalmente, como essa patologia social coloque em risco o negócio de uma empresa do Além, a Jumadeung Inc., cuja diretora é a Imperatriz de Jade – sim! A mitologia coreana foi privatizada num imaginário ficcional que reflete o espírito corporativo que impregna a cultura pop nacional.

Uma empresa cuja principal divisão é a dos “Ceifadores” – funcionários que resgatam e acompanham a alma dos recém-falecidos. O problema, é que os números de óbitos crescem, colocando em risco a sobrevivência da própria empresa: uma superpopulação de almas precisando voltar à existência. Mas como nascerem de novo se faltam lugares que façam jus ao merecimento após tanto sofrimento? Como detalha a Diretora:

Por que é que os nossos funcionários trabalham tanto? Para as pessoas poderem renascer em berço de ouro! Dinheiro, honra, saúde. Pela vantagem de nascerem com o que quiserem. Porém, como será se não tiverem um lugar na Terra. Onde renascerão? Sim… metade sucesso e metade fracasso. Nem uma coisa, nem outra.

Questões metafísicas tornam-se demandas corporativo-financeiras na série Amanhã. 



A Série

Choi Jun-Woong é um cidadão coreano desempregado que faz entrevistas para conseguir um emprego, mas sem sucesso. Ele fez todos os cursos, tem todas as qualificações, mas, mesmo assim, não consegue emprego. Envergonhado, não sabe como contará para sua mãe mais um fracasso: foi preterido em mais um processo seletivo.

Frustrado, tenta esquecer os problemas se embriagando. Na volta para casa encontra um homem querendo se matar pulando de uma ponte. Quando ele tenta salvá-lo, aparecem os ceifadores da Jumadeung Lim Ryung-Gu e Koo Ryeon. Mas são ceifadores especiais: estão em uma missão para salvar o homem. Tentam afastá-lo para eles lidarem coma situação. Mas a personalidade prestativa de Choi o impede. Tenta ajudar, mas acidentalmente cai da ponte junto com o suicida.

Em estado de coma no hospital, a alma de Choi é enviada para a empresa dos ceifeiros, onde conhece a Diretora (Kim Hae Sook). Que lhe propõe uma barganha: se aceitar trabalhar na nova divisão da empresa conhecida como “Gestão de Risco” (na verdade um eufemismo para o combate ao crescente número de suicídios no país) por seis meses, voltará ao seu corpo; caso contrário, passará anos prisioneiro em seu próprio corpo vegetativo. 

A série acompanha a sua jornada na nova divisão de Jumadeung Inc., além de conhecermos o seu passado. 

Cada episódio é centrado em um personagem que por diversas razões quer dar cabo da própria vida. E os esforços da “Gestão de Risco” para evitar o suicídio, munidos de um aplicativo que mensura a “energia negativa” dos alvos para alertá-los de quão próximo do suicídio está a vítima. E Choi Jung-Woong transforma-se no alívio cômico da série: iniciante e atrapalhado, cria uma série de cenas que coloca todos sempre à beira do fracasso da operação. 



Ironias

A série revela uma série de ironias cinetanatológicas e socioeconômicas sobre a situação sul-coreana. Primeira, o protagonista, que vivia um trabalho de Sísifo para encontrar um emprego, só foi encontrar um trabalho numa corporação do Além – ética religiosa secularizada? Assim como as almas boas ganhavam a vida eterna, também aqueles que se resignaram a nunca desistir na concorrência meritocrática serão recompensados depois da morte?

Outra ironia: num país que segue tão estritamente as regras do hiperliberalismo, até a mitologia nacional é ressignificada: Jumadeung (deusa do céu) vira uma corporação voltada ao lucro que vê na crescente onda de suicídios uma ameaça de falência: se a taxa de natalidade está caindo enquanto a de mortalidade aumenta, os negócios estão sob sério risco, como a diretora explicou acima.

Pessoas que sofreram tanto (e presumivelmente queimaram seus carmas) terão que renascer mais abastados e com uma sorte melhor. Mas lugares assim, numa sociedade de classes, são poucos. Porém a fila está crescendo com a onda de suicídios decorrentes das mazelas da própria luta de classes: bullying, violência escolar, desemprego, desigualdade, problemas familiares devido à falência de empresas (na série fala-se da “crise do FMI”) etc.

Uma terceira ironia é a forma como a Gestão de Riscos tenta dissuadir os potenciais suicidas. Ou tentam doutriná-los com frases feitas de manuais de autoajuda (“se perder, tente de novo até conseguir”) ou, ad extremum (contrariando as próprias regras corporativas da Jumadeung Inc.), voltar no tempo para consertar memórias seletivas,  tornando-as instrumentos motivacionais – como no episódio do frango frito: diante da falsa memória criada inventada por um suicida para idealizar uma infância sofrida (a família que faliu com a “crise do FMI”), os ceifadores retornam ao passado para torna-la real. E, assim, virar uma memória motivadora para curar a vítima.



Ou seja, a maneira de combater uma patologia social decorrente de uma Coreia do Sul hiperliberal e corporativa é a partir dos seus próprios termos: técnicas motivacionais e de autoajuda a partir de uma falácia que inclusive é a apresentada em um dos episódios: apesar de todo esforço nos estudos e cursos, um personagem é sempre reprovado nos vestibulares em universidades. Em seu delírio depressivo, acredita que todos estão se dando bem na vida, menos ele – falsa percepção meritocrática criada pela mídia e publicidade: na verdade uma minoria é vencedora, enquanto a maioria sempre perde.

 Além do alívio cômico do protagonista “meio morto” Choi Jun-Woong, a graça na série está em como a equipe de Gestão de Riscos enfrenta o menosprezo e boicote pelos outros setores da empresa, mas também como é obrigada a burlar as regras internas para poder salvar os suicidas – sob a proteção da Diretora Imperatriz de Jade que esconde as irregularidades da nova equipe. Para ela, o sucesso da Gestão de Crises é fundamental para não só a Jumadeung Inc. como para o próprio país. 

De todas as produções sul-coreanas recentes discutidas pelo Cinegnose, a série Amanhã é a que melhor faz a radiografia socioeconômica e psíquica daquele país: cada episódio investiga a luta de suicidas e depressivos para tentar superar a pressão meritocrática e os vários fatores que levaram aos pontos de ruptura e queda. 

Se compararmos a série sul-coreana Amanhã com uma série brasileira também com o tema do pós-morte Ninguém Está Olhando (2019), veremos a comprovação da tese central da Cinetanatologia: As representações no cinema e audiovisual sobre o Céu, anjos e vida após a morte são um verdadeiro sismógrafo do que ocorre aqui embaixo, na vida dos vivos.

Na série brasileira, o Céu como uma repartição pública e os anjos como burocratas entediados de alguma estatal - num país no qual o discurso neoliberal do Estado Mínimo, em que as estatais são a fonte de todos os males políticos e econômicos, domina a narrativa política dominante, a série faz todo o sentido.

E na Coreia do Sul, cujo hiperliberalismo foi consolidado através de subsídios públicos e baixa tributação para gigantes como Sansung, LG Group, Hyundai etc., o Céu vira também uma corporação como vemos na série Amanhã.

Jumadeung Inc.: o Céu da religião secularizada da meritocracia.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Amanhã (série)

 

Direção: Tae-Yun Kim, Sung Chi-wook

Roteiro: Park Ran

Elenco:  Kim Hee-seon, Kim Ro Woon, Lee Soon-hyuk, Kim Hae-sook

Produção: M

Distribuição: Netflix

Ano: 2022

País: Coreia do Sul

 


Postagens Relacionadas

 

Série 'A Lição': só há glória na vingança indo além do bem e do mal

 

 

 

A Luta de classes no Capitalismo Cognitivo em "Parasita", vencedor do Oscar

 

 

Gameficação da luta de classes na série 'Round 6'

 

 

Deus está morto no país do Estado Mínimo na série 'Ninguém Tá Olhando'