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quinta-feira, dezembro 05, 2019

Mídia não dá nomes aos bois em Paraisópolis e reforça amnésia social


Um fantasma ronda o País: a desconexão entre as palavras e as coisas. Aquilo que no começo desse século a coluna de humor de José Simão na “Folha” chamava de “tucanês” (inspirado na linguagem prolixa de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB) se hipertrofiou como discurso jornalístico e da própria mediação da realidade em um arco de vai das corporações a ONGs: eufemismos, neologismo, discursos indiretos, etc. O resultado é uma espécie de “amnésia social” na qual são denegados os três traumas que fundam essa nação: a escravidão, o golpe militar que instaurou a República e a ditadura militar de 1964 a 1985. As mortes na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, pela ação repressiva policial em outro estigmatizado “pancadão”, são recorrências do retorno do reprimido do inconsciente coletivo nacional. Para a mídia não há extrema direita, ditadura e reprodução da desigualdade. Há “conservadores”, “governo polêmico” e “desafios” a serem superados por “boas práticas”. Sem dar nomes aos bois, a grande mídia e o País estão condenados a viver no ciclo vicioso de depressões e crises de euforia. 


Ela é de família holandesa e morou muito tempo na Tanzânia. É amiga da minha esposa e trabalham na produção de uma panificadora orgânica. Outro dia, estavam limpando a cozinha ao final de mais uma fornada. Então, ela pegou uma embalagem de álcool e olhou para a marca que se chamava “Zulu”. Como uma pessoa que morou muito tempo no continente africano, o que chamou a atenção não foi só o nome, como também o ícone da marca: um desenho estilizado de uma negra africana.
Perplexa observou: “produto de limpeza... uma negra... africana! Como assim?”, tentando imaginar quais as relações de sentido entre álcool-produto de limpeza-negra africana. Ficou assustada com o racismo latente nessas conexões semióticas.

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Certa vez, quando meu filho tinha tão somente cinco anos, passávamos por um bairro nobre de São Paulo quando vimos a fachada de um restaurante cujo nome era “Senzala”. Também perplexo, ele observou: “Como pode um restaurante ter o nome de um lugar tão triste onde os escravos eram acorrentados e morriam?...”. 

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Na tarde de segunda-feira no canal fechado Globo News são apresentadas imagens gravadas por celulares de moradores da comunidade de Paraisópolis sobre a catastrófica ação policial em um baile funk na qual morreram nove jovens, segundo a polícia “pisoteados”. Todas as imagens e depoimentos indicavam uma deliberada ação letal da repressão policial. 



Entra ao vivo a opinião de uma dirigente do Instituto Sou da Paz (ONG especializada em pesquisas e estatísticas sobre políticas públicas de segurança e prevenção da violência). Um discurso que exigia fazer uma análise “técnica” sobre a tragédia, destacando a necessidade de a polícia seguir “protocolos” de abordagem e com policiais “melhor preparados”.

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Um fantasma ronda esse País: a desconexão entre as palavras e as coisas. Há um grave problema semiótico de produção de sentido, de intransitividade entre signos e acontecimentos, discurso e História, cuja consequência é o esvaziamento de sentido, esquecimento. Ou, no sentido freudiano, denegação – mecanismo de defesa de negação da realidade contra algo que possa gerar dor ou sofrimento.
Um ícone de um produto de limpeza em “black face”, o nome fantasia de uma lanchonete remetendo à escravidão e morte de negros (imagina se o nome fosse “Auchwitz”...) e uma opinião anódina sobre o assassinato de jovens pobres da periferia que se divertiam em um baile funk, com um viés “técnico” que remete a “protocolos”: são sintomas de um sério problema coletivo do qual o País não consegue escapar. 
Incapaz de fazer um acerto de contas com o sua própria História devido a uma reprodução deliberada da amnésia social: a midiatização da realidade através dos grandes meios de comunicação que simplesmente não se interessam em dar nome aos bois ou ligar as palavras às coisas. Por meio de eufemismos, ilações, neologismos, discursos indiretos, neutralizações etc. denega uma realidade explosiva e dolorosa.

Michel Foucault (1926-1984)

As Palavras e as Coisas

O leitor deve estar percebendo que este humilde blogueiro está parafraseando um livro clássico de Michel Foucault chamado “As Palavras e as Coisas”. Para o filósofo francês, o poder se exerce sobre as palavras e as coisas – ele não é exercido apenas através de aparelhos repressores (polícia, exércitos, censura etc.) que exercitam a coação do corpo. 
O poder também é exercido por meio de discursos, os “discursos de poder” – “o maior poder é aquele que é exercido sobre os ânimos”, dizia Espinosa
Principalmente nos regimes formalmente democráticos, as palavras e seus sentidos passam a ocupar lugar de destaque porque, através dos meios de comunicação, a linguagem se torna um meio comum. As usurpações de poder passam então a não se limitar somente na esfera institucional mais imediata – ocupam, pelo menos num primeiro momento antes de golpes políticos, as palavras e os termos numa espécie de higienização da língua. Tornando os signos intransitivos com os acontecimentos e a própria História.
Essa natureza linguística do Poder leva àquilo que o crítico social norte-americano Russell Jacoby chamava de “amnésia social”: a tendência das sociedades denegarem a memória, o passado da própria sociedade. Um “discurso de poder” que não se limita apenas à grande mídia, mas se esgueira entre as pesquisas acadêmicas nas ciências sociais – leia: JACOBY, Russell, Amnésia Social, Zahar, 1977.

Não é por menos que a extrema direita tem nas chamadas "guerras culturais" revisionistas seu locus privilegiado.


Escravidão, República e Ditadura

 Três acontecimentos históricos marcaram indelevelmente o Brasil como Nação: a escravidão, a República instaurada por meio de um golpe militar em 1889 e a própria conquista do Estado por uma ditadura militar (1964-1985) após golpe sobre um governo civil. São cenas traumáticas que o País revive neuroticamente porque não consegue nomeá-las, assumi-las, simboliza-las para serem finalmente elaboradas e superadas. Assim como numa clássica sessão de psicanálise.
O resultado é um transtorno ciclotímico, condenado a viver entre momentos de depressão e crises de euforia, enquanto a cena do trauma não for redimida. Enquanto não houver um acerto de contas psíquico.
O trágico episódio dos jovens mortos em ação da polícia militar de São Paulo em um baile funk na comunidade de Paraisópolis (encravado no meio do bairro nobre do Morumbi), é uma dessas crises ciclotímicas nas quais estão lá, pulsando como o retorno do reprimido, as três cenas citadas acimas que historicamente jamais foram resolvidas – uma política de extermínio para manter a bugrada em seu devido lugar, como fosse a senzala na escravidão, através do braço forte da Polícia Militar:  invenção da ditadura com militarização das polícias criada por decreto-lei em 1969.

A desconexão de cada dia

Os exemplos dessa amnésia social decorrente dessa desconexão entre palavras e coisas são diários. 
Hoje o jornal Folha de São Paulo recorre ao STF e Legislativo para que contenham uma eventual ditadura de Bolsonaro, no momento em que o presidente incita os anunciantes a boicotarem o jornal e exclui os veículos da lista de assinaturas do Planalto. 

Danti Mantovani, Rock e satanismo: para a mídia, apenas "muito conservador"...

Mas a Folha sempre denegou, por exemplo, quando o ombudsman do jornal dizia que não havia “candidato de extrema direita” nas eleições de 2018, mesmo com todo o discurso de incitação ao ódio, racismo e intolerância do atual presidente.
Aliás, ainda para a grande mídia, seu discurso é “conservador” e “polêmico”. E quanto aos napoleões de hospício que ocupam ministérios e autarquias (o último, o maestro Dante Mantovani, que assumiu recentemente a presidência da Funarte disparando que o rock produz abortos e pactos com o demônio), são apenas “mais conservadores”.
 Claro, esses discursos cheios de dedos da grande imprensa têm a ver com apoio incondicional ao ultraliberalismo do ministro Paulo Guedes – tiveram que comprar o combo extrema direita + neoliberalismo.
Mas a realidade deve ser negada. Por isso o discurso fleumático da mídia em relação à incipiente ditadura Bolsonaro. Para o jornal, Bolsonaro é uma figura “autoritária”, “leviana”, que “não compreende a impessoalidade da administração pública” e toda uma série de palavras elencadas em um editorial que parece ser de um New York Times num País onde instituições republicanas funcionariam normalmente como pesos e contrapesos.

Patriot Act

Como encarar a vitória por 9 a 2 no STF pela autorização da quebra de sigilo financeiro pelo Ministério Público sem autorização judicial? E sobre os decretos editados por Bolsonaro que significam ataques diretos à privacidade dos dados do cidadão sob o pretexto de combate ao terrorismo? – decretos 10.046/2009 e 10.047/2019, “Patriot Act Tabajara” como chama o blog Duplo Expresso – clique aqui
E o que dizer do Projeto de Lei 2418/2019 que legaliza o monitoramento de troca instantânea de mensagens, cujo controle será dado aos militares?

"compartilhamento de informações" ou AI-5 digital?

Ora, para a grande mídia tudo é meramente “compartilhamento de informações” para “combater prática de ilícitos”.  
Enquanto o Estado vai se organizando ditatorialmente sob a tolerância linguística da grande mídia, o crime também se organiza. Mas a grande mídia teme em nomeá-lo: são “facções que comandam o crime dentro e fora do presídio”, expressão mecanicamente repetida em telejornais – PCC ou Comando Vermelho são nomes excessivamente transitivos para representar as coisas.
Como designar a reprodução perversa da desigualdade que fomenta tragédias como a de Paraisópolis? São “desafios” que devem ser enfrentados divulgando “as melhores práticas”... assim como faz a ONG “Sou da Paz”. A contabilidade de “boas práticas” substitui qualquer consciência dos mecanismos políticos e econômicos de reprodução social.
Aliás, tragédias cujos telejornais rotulam eufemisticamente como “Confusão dos bailes funks”. Modus operandi no qual quaisquer conflitos ou confrontos com forças policiais são designados pela palavra “confusão”.
E para finalizar, todo esse gigantesco aparato de denegação linguística reduz a desigualdade racial e o apartheid social brasileiros ao termo moral “preconceito”.
Para mais uma vez a realidade da luta de classes e racial ser negada: o fato de que essa luta está presente tanto no plano da cultura (tanto nos fenômenos de “blackfishing” em que influenciadoras digitais brancas tentam se passar por negras enquanto negros retintos são excluídos) quanto no plano social cuja repressão policial em Paraisópolis é a realidade eufemisticamente representada naquela embalagem de álcool ou no nome de um restaurante em um bairro nobre.

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