quinta-feira, agosto 26, 2010

O Gnosticismo Alquímico de Nikola Tesla

Em O Grande Truque (The Prestige, 2006), Christopher Nolan rende homenagem ao misterioso e controvertido cientista Nikola Tesla com uma performance memorável do gnóstico pop David Bowie. Tesla talvez tenha sido o último dos cientistas alquímicos, cuja tecno-utopia era redimir a matéria ao criar uma tecnologia fundamentada em princípios holísticos e alquímicos que conduziria a uma forma de energia livre e gratuita para a humanidade. Pagou o preço disso ao ter seu nome banido da história da Física e morrido no esquecimento.

Em postagem anterior sobre o filme “A Origem”, falávamos da surpresa de o diretor Chistopher Nolan , após filmes críticos e com sabor gnóstico como “Amnésia” e “O Grande Truque”, cair sob o fascínio das neurociências. Discutíamos que o protagonista Cobb não está interessado em iluminação ou qualquer tipo de reforma íntima.

Ele apenas procura deletar sua culpa, materializada nas insistentes projeções do seu subconsciente que atrapalham a sua missão corporativa e pessoal (voltar para seus filhos). Daí a surpreendente postura acrítica de Nolan diante das tecnociências contemporâneas.

Essa discussão fez-me lembrar de outro filme dirigido por Christopher Nolan, “O Grande Truque” (The Prestige, 2006) e, principalmente, do personagem histórico e misterioso cientista e físico Nikola Tesla, performado pelo gnóstico pop David Bowie nesse filme.

A figura controvertida e polêmica de Tesla é lembrada por um grande arco de discussões que vai desde as Teorias Conspiratórias (as aplicações militares das suas invenções e experiências pelo governo dos EUA e sua misteriosa morte quando seu arquivo com suas anotações e projetos estranhamente desapareceram) até as discussões sobre as possíveis relações entre tecnologia e motivações místicas (no auge da sua carreira, Tesla começou a lidar com noções teosóficas da ciência védica).

Mas, acompanhar sua trajetória (muitos afirmam que suas descobertas teriam sido mais importantes que as de Einstein) é perceber o desparecimento de um tipo de concepção da ciência e tecnologia de cunho alquímico, que progressivamente, no século XX, deu lugar à tecnognose cabalística, identificada com códigos de controle e exclusão.

Uma Física Alquímica
“Através do século XIX, símbolos e práticas em torno da eletricidade mantiveram acesa a chama da velha Alquimia. O vitalismo elétrico e os transes magnéticos mantiveram vivo o espírito do animismo em plena era do mecanismo. Comunicação elétrica, a fotográfica captura das ondas de luz, e a descoberta do espectro eletromagnético ajudaram a dissolver o mundo do materialismo atomista no interior de um universo de vibrações incorpóreas. Mas a eletricidade e o espectro eletromagnético também materializaram a mais prometéica e tecno-utópica dimensão da mentalidade alquímica.”(DAVIS, Erik. Techgnosis. London: Serpents Tail, 2004, p. 84.

Em pleno século do paradigma do mecanismo, a descoberta dos fenômenos da eletricidade e do eletromagnetismo acenderam a imaginação científica prometéica e alquímica. Esses fenômenos de natureza etéria e imprevisível ameaçaram quebrar o paradigma cabalístico da ciência mecanicista, marcada pelas ideias de confinamento, especialização, abstração, controle e segregação. Em outras palavras, uma certa visão de que a matéria seria algo disforme, necessitando de uma codificação abstrata fornecida pela ciência (números, cálculos etc.) para criar ordem, hierarquia, direcionamento, tudo sob o controle de uma elite esclarecida.

O sérvio Nikola Tesla (nascido em 1856 na Croácia) talvez tenha sido o mais prometéico dos cientistas que lidaram com esses fenômenos que fascinaram a imaginação popular na virada de século. Tesla chegou à América em 1884, sem um tostão no bolso e com uma ideia na cabeça: duas bobinas, posicionadas em ângulo reto e alimentadas com uma corrente alternada com noventa graus de fase entre sí fazendo um campo magnético girar, sem a necessidade do comutador utilizado em motores de corrente contínua. Era a descoberta da Corrente Alternada (AC), superior tecnologicamente a Corrente Contínua de Thomas Edison. A vantagem era a possibilidade de transportar a eletricidade a longas distâncias.

Na verdade, essa “ideia” de Tesla surgiu como uma imagem completa na sua cabeça na juventude. Tesla era avesso a papéis e arquivos, evitava-os o máximo possível. Seu raciocínio científico era analógico e intuitivo. Era contrário aos métodos dedutivos ou indutivos: "No momento em que uma pessoa constrói um aparelho para levar a cabo uma idéia crua, ela se encontra inevitavelmente envolvida com os detalhes deste aparelho", Tesla escreveu em sua autobiografia. "Conforme ele procede em tentar melhorar e reconstruir o aparelho, sua força de concentração diminui e ele perde de vista o Grande Propósito".

Esse ponto de partida alquímico estruturou toda sua visão sobre o propósito da ciência e tecnologia. Da ideia da AC, Tesla partiu para intensas pesquisas no laboratório de Colorado Springs, financiado por George Westinghouse. Mas Tesla queria ir além dos interesses econômicos monopolistas dos seus financiadores. Ele vislumbrava não mais a eletricidade confinada em fios e ordenada por sistemas de distribuição, mas livre para todos, a eletricidade sem fios, transmitida por ressonância através da atmosfera e do próprio planeta! Energia de graça para todos!

Ressonância e mutação. Dois princípios analógicos, alquímicos. Uma pequena quantidade de energia seria capaz de exponencialmente expandir em escala e frequência, ampliando a potência até cobrir toda a atmosfera e atravessar todo o planeta. Tesla tinha em seu poder a pedra filosofal: uma energia poderosa a partir de princípios holísticos simples, assim como era simples a “bobina Tesla”, simples o bastante para qualquer interessado construir, e totalmente funcional em modelos caseiros. Uma inovação impressionante, que foi a base para o rádio, televisão, e meios modernos de comunicação sem fio.

A Maior Descarga Elétrica da História

O relato da experiência em ressonância com eletricidade posta em prática em uma noite em Colorado Springs, em 1899, é impressionante:
“Certa noite em 1899, Tesla acionou sua máquina em força total, na esperança de produzir um fenômeno que ele chamou de "crescente ressonante". Sua torre descarregou na Terra dez milhões de volts. A corrente atravessou o planeta na velocidade da luz, forte o bastante para não morrer antes do final. Quando ela chegou ao lado oposto do planeta, ela foi rebatida de volta, como círculos de água voltando à sua origem. Ao voltarem, a corrente estava em muito enfraquecida, mas Tesla estava emitindo uma série de pulsos que se reforçavam um ao outro, resultando em um tremendo efeito cumulativo.
No ponto focal, aonde Tesla e seus assistentes assistiam, a crescente ressonante manifestou-se como uma demonstração alienígena de raios que ainda estão até hoje catalogados como a maior descarga elétrica da história. A corrente de retorno formou um arco voltaico que elevou-se até o céu por dezenove metros. Trovões apocalípticos foram ouvidos a trinta e três quilômetros de distância. Tesla, anteriormente, estava preocupado com a possibilidade de haver um limite para a geração de descargas ressonantes, mas, naquele evento, ele passou a crer que o potencial era ilimitado. A demonstração teve um fim inesperado, quando as descargas fizeram com que o gerador de força de Colorado Springs se incendiasse. Tesla não mais recebeu energia grátis dos donos da companhia desde então.” TRULL, D. Tesla: The Eletric Magician. Disponível em http://www.parascope.com/en/1096/tesindex.htm).

Após descobrirem o seu tecno-utópico propósito, seus financiadores como JP Morgan e Westinghouse o abandonaram. Tesla ainda tentou ludibriar Morgan ao dizer que a torre que construía era para construir um equipamento de transmissão de rádio intercontinental que lhe garantiria o monopólio das comunicações mundiais. Mas o propósito era outro: a transmissão de energia grátis para o planeta.

Aos poucos Tesla aproximou-se da Teosofia através dos ensinamentos de Swami Vivenkanada, na época (1891) em visita aos EUA. Tesla passou a descrever os fenômenos que manipulava em termos sânscritos como Akasha, Prana e o conceito de “Éter Luminífero” para descrever a fonte, existência e construção da matéria.

Mas se Tesla com seus princípios alquímicos pretendia a mutação da matéria em termos de ondas, ressonância, éter etc., enquanto isso o mainstream científico apenas queria a transcodificação da matéria, isto é, confiná-la, represá-la para direcioná-la por meio de uma linguagem codificada e hermética (isto é, acessível somente a uma elite esclarecida) para fins de dominação econômica e política. O digital, a linguagem, a tecnologia sobrepondo o analógico, o sensual, a ciência.

Por isso Tesla, como um dos últimos cientistas alquímicos, pagou seu preço: morreu em 1943, solitário em um quarto de um hotel onde morava em Nova York. Financeiramente quebrado e na companhia de um bando de pássaros, que considerava seus únicos amigos. E seu nome jogado na obscuridade e banido da história da Física, apesar da sua mais de 700 patentes registradas em equipamentos diversos que foram surgindo como decorrência das pesquisas sobre o maior propósito: a energia livre para todos.

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sábado, agosto 21, 2010

Filme "A Origem": Nolan cai sob o fascínio das neurociências

Apesar da embalagem gnóstica (questionamentos sobre a natureza do real, os sonhos como um mundo paralelo, e personagem feminino que exorta o protagonista a despertar do sono da realidade) "A Origem" (Inception, 2010) de Christopher Nolan é extremamente reacionário ao fazer a apologia da engenharia do espírito das neurociências. O simbolismo dos sonhos substituído pela cartografia invasiva da mente.

É sabido que nos EUA a Psicanálise freudiana não goza de credibilidade científica. Conceitos como psiquismo e inconsciente são ignorados por não serem científicos, sem comprovação empírica. Discutir os sonhos e desejos humanos a partir da sexualidade e das relações infantis com a boca e excrementos é bizarro demais para o puritanismo norte-americano.

A cultura norte-americana é mais prática: se Freud pretendia analisar o simbolismo dos sonhos, o imaginário tecnológico atual pretende fazer uma cartografia e topologia dos sonhos. Muito mais prático, como bem comprovam as neurociências e o neuromarketing. Símbolos são filosóficos demais, enquanto uma cartografia e uma topologia é muito mais eficaz para apontar caminhos para inserir ideias nas mentes.

“A Origem” (Inception, 2010) comprova essa agenda tecnológica. Embora a narrativa do filme ocorra nos sonhos, nenhuma vez ouvimos a palavra inconsciente. Ela é substituída pelo genérico conceito de subconsciente, expondo essa matriz do pragmatismo neurocientífico.

Embora a princípio "A Origem" pareça ser um filme gnóstico, esotérico ou “filosófico”, tal como “Matrix”, ele tem um profundo sentido pragmático: a exploração do último refúgio do indivíduo (a mente, os sonhos) no invasivo mundo atual dos interesses corporativos (marketing, publicidade, fusões, aquisições etc.).

Embalagem Gnóstica

A narrativa de “A Origem” utiliza muitos elementos e tiradas dos filmes gnósticos, atribuindo uma roupagem “séria” à estória, dando a entender ao público que estamos diante de profundos insigths filosóficos. Por exemplo, quando os protagonistas vão para Mombasa recrutar um farmacêutico especialista em drogas pesadas para auxilia-los na missão, encontram em um porão dezenas de pessoas adormecidas. Elas vão para lá diariamente para viverem seus sonhos como uma realidade paralela. “Elas vêm aqui não para dormir, mas para despertar”, diz o responsável pelo local. Evidente tirada gnóstica que lembra as questões do personagem Morpheus no filme “Matrix”. Mas os protagonistas estão naquela farmácia de manipulação menos para discutir a natureza filosófica ou místicas dos sonhos, mas para usar pragmaticamente as drogas para resolver os problemas corporativos do cliente de Cobb (Leonardo Di Caprio).

Ou ainda a personagem Mal, a falecida esposa de Cobb. Aparentemente ela representa o personagem mítico gnóstico de Sophia, ao alertar Cobb sobre a natureza fictícia da realidade, apelando para que seu marido desperte. No sonho está a realidade e a realidade é uma ilusão! Ela constantemente fala para Cobb “retornar para casa” com ela, ou seja, retornar a uma origem idílica perdida durante o sono da realidade. Ela fala para Cobb: “você não se sente atormentado, perseguido pelo mundo por empresas anônimas?” Uau! Parece até que estamos diante das tramas gnósticas de Philip K. Dick! A personagem feminina que vai conduzir o protagonista para o despertar, como no filme O Pagamento (Paycheck, 2003).

Puro engano. Mal não passa de projeção do subconsciente de Cobb, originado pelo sentimento de culpa pela morte da esposa. Tal como nas terapias baseadas em neurociências (PNL, Cientologia etc), ele apenas quer deletar a culpa da sua consciência. Toda a aventura dos protagonistas nos diversos níveis dos sonhos em inserir (inception) a semente de uma ideia na mente de uma pessoa por interesses corporativos, servirá apenas para resolver os problemas de Cobb com sua consciência: deletar a projeção subconsciente da culpa.

O Reacionarismo de "A Origem"

Por isso, “A Origem” é um filme extremamente reacionário. Comparado com filmes como “Brilho Eterno de uma Mente Sem lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), O Pagamento (Paychek, 2003) e Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), “A Origem” glorifica as tecnologias neurocientíficas que querem basear a felicidade no esquecimento. Se nos filmes gnósticos há a denúncia da secreta aliança da tecnologia servir aos interesses que nos aprisionam a uma realidade por meio do esquecimento, em “A Origem” temos a apologia da eficácia das tecnociências.

Se em “Brilho Eterno”, “O Pagamento” e “Vanilla Sky”, os personagens femininos Clementine, Rachel e Sofia são peças-chave para o despertar (a gnose) do protagonista, em “A Origem” a parsonagem Mal é a mera projeção subconsciente da culpa. Com a mesma tecnologia que serve os interesses corporativos, ele “cura” a si mesmo eliminando a culpa dos seus sonhos.

Isso é surpreendente, já que Christopher Nolan vem de autênticos filmes de questionamentos gnósticos da realidade como “Amnésia” (Memento, 2000) e “O Grande Truque” (The Prestige, 2006 com a participação do gnóstico pop David Bowie como o misterioso cientista NiKolas Tesla).

Se em "Brilho Eterno" toda a tecnologia que quer manipular os sonhos e memórias cai diante da irrupção do insconsciente como a única resistência que o indivíduo ainda possui para enfrentar os interesses corporativos, em “A Origem” isso desaparece para dar lugar a um subconsciente que aparece como mera disfunção ou obstáculo para a aventura dos protagonistas.

Se em “Vanilla Sky” e “Brilho Eterno” as tecnologias da engenharia do espírito (neurociências) são tematizadas criticamente ao ponto da ironia e ridicularização, em “A Origem” elas são enaltecidas (as engenhosas descrições da utilização das arquiteturas impossíveis de Escher nos sonhos – paradoxos, loopings etc.) e vendidas ao espectador como instrumentos para a felicidade de uma vida sem culpas.

Para a psicanálise freudiana a questão sonho é simbólica, isto é, o conhecimento das chaves que abrem as portas para resgatarmos aquilo que nos foi esquecido pelos mecanismos represssivos da realidade. Mas para as neurociência o sonho é uma simples questão de cartografia e topografia: um mapa de associações mentais para mais facilmente deletarmos as disfunções que nos incomodam.

Assim como no neuromarketing onde colocam-se eletrodos na cabeça de um consumidor prototípico para mapearmos as reações mentais diante de peças publicitárias.

Por que esse retrocesso em Christopher Nolan? Em “Amnésia” ele nos apresentou brilhantes e gnósticos insigths sobre a natureza da percepção, memória e realidade e em “O Grande Truque” um brilhante cenário das origens da tecnologia moderna num ambiente histórico (virada de séculos XIX-XX) onde ciência, misticismo e magia se confundiam. Talvez Nolan tenha se rendido ao fascínio pelas neurociências que, afinal, oferecem um modelo simplificado, visual (cinematográfico) e muito mais pragmático do que as complicadas interpretações simbólicas. Projeções subconscientes com armas na mão e o inconsciente traduzido como cofres dentro do qual guardamos nossos segredos e depois jogamos fora a combinação são imagens muito mais convincentes e compreensíveis. “A Origem”, assim como as neurociências, não quer descobrir a combinção, mas apenas destruir o cofre.

Portanto, o filme apresenta uma aparência gnóstica por supostamente ter profundos questionamentos filosóficos ou existenciais sobre a natureza da realidade. A brilhante e complexa narrativa (marca dos filmes de Nolan) de sonhos dentro de sonhos e o final ambíguo (que leva o espectador a questionar o próprio ponto de partida do filme – onde termina o sonho e começa a realidade?), marca da ironia narrativa dos filmes gnósticos, estão em “A Origem” como uma embalagem atraente para seduzir públicos “cabeças”. Mas o seu interior é extremamente reacionário e sintonizado com a agenda tecnognóstica da glorificação das engenharias do espírito.

Ficha Técnica:
  • Título: A Origem (Inception)
  • Diretor: Christopher Nolan
  • Roteiro: Christopher Nolan
  • Ano: 2010
  • Elenco: Leonardo Di Caprio, Joseph Gordon-Levitt, Ellen Page, Tom Hardy.
  • Produção e Distribuição: Warner Bros.
  • País: EUA
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domingo, agosto 08, 2010

Cães e Arquétipos: a Ad-Gnose em Ação

Por serem registros mnemônicos da espiritualidade e da Luz da espécie, os arquétipos naturalmente aspiram à transcendência. Mas a Ad-Gnose (Advertising+Gnose), como toda a indústria do entretenimento, as captura e as confina dentro da instrumentalidade comercial. Um exemplo prosaico da ação da Ad-Gnose é o novo vídeo publicitário de uma marca de ração para cães.

Em posts anteriores abordamos o conceito de Ad-Gnose para indicar a nova fase que a Publicidade está entrando onde, paradoxalmente, o produto tende a desaparecer dos anúncios, transformando-o muito menos em algo para ser adquirido do que ser experimentado como evento, jornada, descoberta ou renovação pessoal.

Vimos que as técnicas de convencimento e persuasão em Publicidade passaram por diversas fases (táticas psicológicas, comportamentais, motivacionais, subliminares, psicanalíticas etc.), mas, em todas elas, estava implícito um imperativo: “Aqui está o produto. Agora compre-o!” Com a Ad-Gnose, toda essa verdadeira engenharia espiritual tem um salto qualitativo: separação entre o desejo e a aquisição imediata do produto, para transformar o ato do consumo, per si, num evento de autoconhecimento e renovação espiritual ao instrumentalizar todo um repertório de arquétipos do inconsciente coletivo da espécie humana.

Claro que estamos sendo irônicos ao usar nesse conceito a palavra “Gnose”, já que a suposta renovação espiritual proposta pelo consumo é a tradução das experiências do sagrado, do religioso e da transcendência dentro paradigma da Auto-Ajuda.

A engenharia espiritual da Ad-Gnose vai além das várias camadas existenciais do indivíduo (percepção, comportamento, subconsciente, psiquismo e inconsciente) para atingir a última dimensão: o próprio espírito com a instrumentalização dos arquétipos.

Em Jung os arquétipos são símbolos do inconsciente coletivo, símbolos atualizados por diversos meios (misticismo, religião, lendas, mitos até chegar à forma mais mística da publicidade contemporânea) onde são aglutinadas aspirações, desejos e grandes questões metafísicas e existenciais da espécie humana.

Como já apontou Victoria Nelson (veja The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard UP, 2001), arquétipos são como instrumentos mnemônicos da suprema arte da memória. Em sociedades antigas, pré-literárias, toda uma série de técnicas orais (lendas, fábulas, ritmo, rimas, repetição etc.) serviam como um repositório do conhecimento humano. Os arquétipos pertencem à sagrada arte da mnemotécnica, guardando na biblioteca do inconsciente coletivo as questões mais profundas da espécie. Num sentido gnóstico, símbolos das reminiscências sobre nossas origens e nosso exílio nesse cosmos.

O funcionamento da Ad-Gnose

Mas na prática qual o mecanismo de funcionamento da Ad-Gnose? Vamos nesse post fazer um rascunho de um método de análise do discurso publicitário dentro da Ad-Gnose. Se por um ponto de vista gnóstico a indústria do entretenimento necessita extrair dos indivíduos sua “espontaneidade” (Partículas de luz ou a energia espiritual vital, reminiscência das nossas verdadeiras origens) para por em funcionamento as estruturas-clichês ocas e sem vida, esse rascunho de método que traçaremos aqui tem como objetivo descrever o momento em que essas estruturas-clichês capturam e confinam esses elementos espirituais, representados nos arquétipos.

Podemos considerar os diversos níveis semióticos das técnicas de convencimento e persuasão do discurso publicitário como formas-pensamento vazias, sem espírito ou energia própria. No nível perceptivo ou comportamental imediato elas até podem sensibilizar o indivíduo, motivando nele respostas imediatas, subliminares ou comportamentais. Mas são de curta duração. Não há sensibilização, fixação ou elaboração.

Partindo para um didatismo semiótico podemos subdividir estas técnicas da seguinte maneira:

a) Nível das estruturas-clichê: Recursos gráficos, psicodinâmica das cores, fotogenia, packshot, lettering, roteirização. Ou seja, todo um aspecto da sinalização pura, recursos que atingem os aspectos mais instintivos ou comportamentais.

b) Nível Retórico: a utilização do repertório das figuras de retórica clássicas, aristotélicas (metáforas, hipérboles, oximoros etc.). É o nível da persuasão pura através da estética da argumentação do discurso. Depois da sinalização imediata (chamar a atenção), transforma-se em informação, discurso, argumentação.

Vamos pegar um exemplo bem prosaico, como o novo comercial da ração para cachorros Pedigree (título "Vida" da Agência Lara/TBWA e da produtora Paranoid BR). Nesse simples vídeo publicitário podemos encontrar todos os elementos da Ad-Gnose em funcionamento, principalmente o aspecto arquetípico.

De imediato, vemos os aspectos clássicos da fotogenia ou videogenia publicitária: um cão (golden retriever) correndo em slow motion, cores em tons pastéis, trilha acústica em tom folk, os longos pelos do animal em movimento ao vento. São aspectos clichês (o tom pastel associado ao primaveril, matinal, a raça do cão retriever etc.). Sobreposto a esse nível, temos o discurso retórico. A comparação entre a motivação de correr para o humano e para o cachorro segue o modelo da figura de retórica chamada de Sístrofe, técnica de suspensão do sentido onde uma série de características é enumerada sem sabermos com precisão sobre do que se trata o discurso.

Embora sejam recursos engenhosos, esteticamente bonitos, envolventes e emocionantes, são, por curto prazo, vazios. Seu efeito se esgota logo depois de encerrado o filme publicitário porque ainda falta um elemento do espírito que ainda não consideramos: o arquétipo.

Vejamos o que diz o áudio desse vídeo publicitário:
“Tem gente que corre por esporte, para superar os adversários. Ou para não se atrasar. Mas nós temos mais sorte. Somos cachorros. Não precisamos de um motivo para correr. Seu cão tem muita vida pela frente. Só falta dar qualidade para ela.”

Esse discurso instrumentaliza o arquétipo do Inocente: um desejo por pureza, simplicidade. A aspiração pelo lúdico e idílico, quebrar a ordem do princípio do desempenho (eficácia, eficiência e performance) que governa nossas vidas. Injeta nas formas-clichês vazias do discurso publicitário a reminiscência da aspiração pela transcendência das inautênticas normas sociais que aprisionam o espírito.

Mas se esse é o momento de verdade desse filme publicitário, essa reminiscência deve ser confinada nos estritos objetivos comerciais. Duas técnicas são usadas para confinar o arquétipo: primeiro, a resignação: os cães têm “sorte” de correr sem motivos. Implicitamente quer dizer que os humanos não têm tal sorte. Resignamo-nos a correr por desempenho, por metas, sem o prazer lúdico dos cães.

Segundo, a inversão fetichista. Projetamos nos cães a humanidade perdida (qualidade de vida, ludismo, pureza, inocência etc.). O arquétipo é vivenciado por delegação, através da vida do cachorro. Nele projetamos as aspirações por uma vida que, resignadamente, desistimos de buscar. O cão se torna progressivamente mais humano do que o seu próprio dono.

O filme Marley e Eu (Marley & Me, 2008), é o exemplo flagrante dessa resignação e inversão fetichista. O filme termina com a lição de que o cão é o melhor amigo do homem por, paradoxalmente, ser mais humano do que seus donos (“um cão não se importa se você é rico ou pobre, um cão não vê utilidades em casarões, roupas de grife... um graveto serve para ele”, conclui o protagonista no final do filme). Resignação pela humanidade perdida e projeção da aspiração representada no arquétipo do Inocente em um animal: esses são os dois momentos em que a “espontaneidade”, o arquétipo ou a energia espiritual são capturados e confinados na instrumentalidade publicitária.

Por serem registros mnemônicos da espiritualidade e da Luz da espécie, o arquétipo naturalmente aspira à transcendência. Mas a Ad-Gnose, como toda a indústria do entretenimento, as captura e as confina dentro da razão instrumental que, para nosso azar (o cachorro tem mais sorte!), não podemos escapar: continuamos a correr para superar os adversários e para não chegar atrasados.

Vídeo "Vida"



Ficha Técnica:
  • Título: "Vida"
  • Agência: Lew, Lara\TBWA Publicidade Ltda.
  • Cliente: Másterfoods Brasil Alimentos Ltda.
  • Produto: Pedigree
  • Criação: Pedro Rosa e Roberto Kilciauskas
  • Direção de Criação: Jaques Lewkowicz, André Laurentino, Manir Fadel e Luciano Lincoln
  • Produção: Paranoid Br
  • Direção do Filme: Luis Carone
  • Locutor: Hilton Raw
  • Ano: 2010
  • País: Brasil

terça-feira, agosto 03, 2010

Morte e Ressurreição em "Riverworld"

Apesar dos evidentes problemas de produção e roteiro, ao lidar com clássicos elementos da simbologia gnóstica Riverworld (piloto de uma possível série) torna-se um candidato a sucessor da série Lost. Morte/ressurreição é o tema central, acompanhado do simbolismo gnóstico de Sophia e na cisão cabala/alquimia na busca pela saída do pesadelo que representa o mundo de Riverworld.

Exibido pelo SciFi Channel, Riverworld é a adaptação, por Robert Hewitt Wolfe (Star Trek: Deep Space 9, Andromeda e The Dresden Files) de uma série de livros de ficção científica escritos por Phillip José Farmer. A história gira em torno de um jornalista fotográfico, Matt, e sua namorada Jessie. Após morrerem em um atentado terrorista numa casa noturna são transportados para o mundo misterioso de Riverworld, local para o qual as pessoas que já viveram na Terra são levados, em uma espécie de ressurreição.

Em Riverworld as pessoas acordam mais jovens e livres de qualquer doença ou problemas genéticos. Sem envelhecer, elas são capazes de se regenerar. Lá estão as almas de todos aqueles que um dia já passaram pela Terra em toda a História. Um lugar que é uma espécie de segunda chance ou talvez uma espécie de purgatório.

Em Riverworld encontramos desde anônimos até grandes personagens históricos que cruzam o caminho do protagonista Matt, tais como o escritor e romancista norte-americano Mark Twain ou o conquistador e explorador espanhol Francisco Pizarro. Ao despartarem nesse mundo (as pessoas acordam submersas e desorientadas num rio para emergirem e nadarem até às margens), veem-se, involuntariamente, no meio de uma guerra travada por dois grupos de seres: os chamados “Salvacionistas” que querem destruir aquele mundo e libertar todas as almas, e o outro grupo que quer manter o status quo. Com seus poderes, esses seres (com rostos azuis em trajes de monge) interferem no curso dos acontecimentos, criando uma espécie de jogo de xadrez.

Como afirma Jeff Kripal (professor de Estudos da Religião da Rice University, Houston Texas), os comic books e livros de ficção científica se tornaram os evangelhos pós-modernos do Gnosticismo (sobre isso clique aqui e leia "The Postmodern Gnosticism & Gnosis" do Aeon Byte Gnostic Radio).

Descontando os flagrantes problemas de roteiro e produção (produção de baixo orçamento, muitos diálogos clichês e desnecessários, narração em vários momentos arrastada etc.), a estória de Riverworld é repleta de clássicos elementos míticos do Gnosticismo.

Para começar, a natureza ambígua do local onde acontece a narrativa (Riverworld) é ambígua: será um purgatório de almas? Um outro planeta? Almas humanas aprisionadas por ETs? Ou um simples pesadelo coletivo? Essa ambiguidade dá à estória um caráter de fábula, uma fábula gnóstica sobre o homem aprisionado num cosmos, servindo de joguete numa batalha entre deuses que não o amam. Onde nem a morte é saída. Após morrer, quase que imediatamente é ressuscitado para retornar ao jogo.

Vemos, então, após a morte ou um suicídio desesperado de alguém (falam em “suicídio express”), uma vasta região onde corpos em estado de dormência são mantidos como que depositados (visual que lembra Matrix) para serem despertados pelos seres que governam Riverworld, de acordo com suas conveniências táticas no jogo.

Talvez esse seja o tema mítico gnóstico principal explorado pelo filme: a visão desesperançada da morte e da reencarnação. Como já discutimos em postagem anterior, o Gnosticismo vê a reencarnação como uma perversa estratégia do Demiurgo para manter a humanidade aprisionada num círculo infinito. Na morte/reencarnação não há evolução, aprendizado. Há esquecimento, condenado a recomeçar sempre do zero.

Mas em Riverworld, esse mito gnóstico da reencarnação como prisão é levado ao paroxismo e desespero. Sthephen King em um dos seus livros de suspense e terror dizia que o inferno é a repetição. Pois bem, é exatamente isso que temos no filme: não há, pelo menos, a ilusão de recomeçar, a esperança de um novo dia. Todos são ressuscitados para recomeçarem do ponto em que morreram. O jogo não tem fim.

No gnóstico filme de Alex Proyas, Cidade das Sombras (Dark City), esse mesmo tema foi explorado: ETs que aprisionam seres humanos em uma cidade fake para, a cada meia-noite, serem colocados em estado de dormência para que as identidades sejam trocadas, com o objetivo de encontrar a essência humana no transitório.

Na mitologia gnóstica, um personagem feminino é de vital importância na trajetória humana no cosmos hostil: Sophia. Um dos mais importantes aeons na mitologia gnóstica essa personagem é explorada nos filmes gnósticos em três aspectos: como aquela que decaiu sob o jugo do Demiurgo, como aquela que desperta no protagonista a necessidade da gnose e como aquela que, secretamente, doa seu amor e sabedoria aos homens ao contribuir com importantes padrões arquetípicos à Criação.

Em Riverworld a personagem Jessie é aquela que motiva Matt a seguir em frente e lutar naquele mundo estranho. A personagem cumpre os dois primeiros aspectos enumerados acima: ela cai sob o jugo do “vilão” Burton (torna-se sua namorada, após perder as esperanças de encontrar Matt), que quer, a todo custo, mandar pelos ares aquele mundo através de uma bomba com potencia nuclear. Mas a busca de Matt por Jessie é a chave para a compreensão da natureza daquele mundo. Simbolicamente, fará o protagonista ir ao encontro da “nascente” do rio cujas almas vivem aprisionadas às suas margens.

Por fim, a ambiguidade do personagem Burton. Aparentemente é o “vilão” (utiliza-se de métodos violentos para conseguir seu objetivo), mas, no final, ele pretende destruir aquele mundo para libertar todas as almas humanas aprisionadas. Explodir tudo por meio de uma espécie de bomba atômica não parece ser a melhor das soluções: ele, na verdade, pretende um “suicídio express” final, sem volta, rompendo com o inferno da repetição. É a proposta de um gnosticismo cabalístico: transcender a alma pela aniquilação da matéria, sem redimi-la.

Todo gnosticismo nutre um ódio pela matéria, ao vê-la como uma prisão criada pelo Demiurgo para aprisionar a Luz. Porém, a forma de trasncendê-la é controversa: de um lado o gnosticismo cabalístico (um atalho rápido para a fuga do espírito) e, do outro, o gnosticismo alquímico (a transcendência somente é possível após redimir a matéria, isto é, resgatar nela os elementos sagrados que auxiliem a gnose).

Riverworld, ao lidar com todos esses simbolismos gnósticos, lembra essa dicotomia cabala/alquimia ao opor os personagens Matt/Burton: o primeiro quer resgatar Jessie/Sophia daquele cosmos. O segundo, só quer mandar tudo pelos ares.

Ficha Técnica:
  • Filme: Riverworld
  • Diretor: Stuart Gillard
  • Escritor: Phillip Jose farmer (livro) e Robert Wolfe e Randall Badat (roteiro)
  • Gênero: Drama/Sci-Fi
  • Elenco: Tahmoh Penikett, Mark Deklin, Peter Wingfield, Jeananne Goossen.
  • Ano: 2010
  • Produção: Reunion Pictures, Riverworld Productions
  • Distribuição: SyFy TV
  • País: EUA

Trailer Riverworld


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sexta-feira, julho 30, 2010

Autor do Blog "Cinema Secreto" lançará dois livros: "O Caos Semiótico" e "Cinegnose"

Já está no prelo da Giz Editorial dois livros que lançarei no próximo mês: “O Caos Semiótico – Ensaios Críticos de Estudos da Comunicação” e “Cinegnose: a recorrência de elementos gnósticos na recente produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005)”.

O primeiro é um relançamento, atualizado e ampliado. Lançado em 1996 teve duas edições pela Editora Terra. Esgotado o livro, não houve tempo para uma terceira edição com o fechamento da Editora Terra lá pelos idos de começo desse novo século.

Bem conhecido entre meus alunos da Universidade Anhembi Morumbi, passou, então, a frequentar sebos reais e virtuais na Internet e diversas cópias digitais em PDF.

Pois bem, finalmente teremos um relançamento com uma versão atualizada e ampliada. . Composto por seis capítulos, o livro é estruturado em duas partes distintas: a primeira parte a “Psicanálise da Comunicação” e, a segunda, “Da Semiótica ao Pós-Moderno”.

A novidade é o último ensaio do livro: “Tecnognose: do Vale do Silício à Hollywood”. Foi um artigo apresentado no II Simpósio Nacional da ABCIBER – Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura realizado em outubro de 2008 na PUC/SP. Esse trabalho foi o ponto de partida de um projeto desenvolvido no Mestrado em Cinema da Universidade Anhembi Morumbi sobre como o imaginário místico (ou gnóstico) por trás novas tecnologias computacionais vão contaminar a produção cinematográfica da recente produção norte-americana nos aspectos temáticos, narrativos, iconográfico e simbólico.


Cinegnose

O segundo livro, como dá para perceber pelo extenso título, só pode ser uma dissertação ou tese de pós-graduação. Trata-se do primeiro caso: "Cinegnose" é uma dissertação de Mestrado defendida na Pós em Comunicação Contemporânea (Análise de Imagem e Som) da Universidade Anhembi Morumbi-São Paulo no ano passado.

Nesse trabalho analiso a produção cinematográfica norte-americana recente (1995 a 2005) onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados em narrativas míticas do Gnosticismo (conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã).

Temos a frequência de temas como conspirações cósmicas, universos paralelos, amnésia e paranóia, além da ambivalente relação entre o sujeito e a realidade, consciência (especialmente alterada por estados de consciência iluminados) e revolta contra sistemas autoritários de controle. Filmes como Cidade das Sombras (Dark City, 1998), a Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Show de Truman (Truman Show, 1998), Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), entre outros, apresentam uma idéia geral de que o mundo que percebemos é uma ilusão criada por alguém que não nos ama e que a chave para revelar a ilusão e descobrir a realidade reside numa forma de autoconhecimento ou iluminação. Uma pista para descobrirmos essa conexão entre gnosticismo e cinema passa pela discussão entre misticismo e imaginário tecnológico. Esse período da produção cinematográfica norte-americana refletiria um imaginário tecnológico que alguns autores definem como “gnosticismo tecnológico” ou “tecnognose”.

Aguarde nesse Blog mais notícias sobre datas de lançamentos.

quarta-feira, julho 28, 2010

Fórmula 1: a Transparência do Mal transmitida ao Vivo

Para além das críticas moralistas contra Felipe Massa e o "jogo de Equipe" da Ferrari, o que assistimos ao vivo pela TV no último GP é a parte mais transparente na natureza do desenvolvimento tecnológico: a Hipertelia, o momento em que a tecnologia, de tão obesa pelo desenvolvimento hipertrofiado, volta-se contra si mesma. É o princípio gnóstico do Mal, da ironica inversão de cada ação humana.

“Sem Vergonha”. Essa foi a síntese da reação da mídia em relação às ordens implícitas enviadas por rádio dos boxes da Ferrari para que Felipe Massa deixasse o piloto espanhol e companheiro de equipe Fernando Alonso ultrapassá-lo na 48o volta do GP da Alemanha de Fórmula 1. As críticas limitam-se ao moralismo, ou condenando Felipe Massa por se curvar contratualmente a exigência de ser o piloto “número 2” da equipe (e muito bem remunerado para isso!) ou acusando a Ferrari de atitude anti-esportiva e manipulação de resultado (já multada pela FIA em US$ 100 mil após o último GP).

E já não é a primeira vez que manipulações de resultados ocorrem na categoria de elite do automobilismo. É ainda recente na lembrança o acidente propositalmente provocado por Nelsinho Piquet no GP de Cingapura em 2008 para favorecer o então companheiro de equipe da Renault, Fernando Alonso.
Uma das características da crítica moralista é culpar unicamente a ação individual, como resultante de um mau juízo ou de valores condenáveis. Essa crítica esquece das tendências estruturais ou conjunturais que envolvem os indivíduos e de onde partem as motivações das ações.

Há algo de mais profundo na categoria mais tecnologizada do automobilismo, algo que envolve o sentido de uma tecnologia que hipertrofiada volta-se contra si mesmo. Desde à época de Alain Prost, assistimos ao fim de uma era onde o resultado das corridas eram resolvidos pelo “braço” e perícia do piloto. Telemetria, suspensão ativa, câmbio automático etc, fizeram, em meados dos anos 90, a categoria entrar em crise. De tão cara, a alta tecnologia ficou concentrada em uma ou duas equipes, acabando a competitividade. Ironicamente, a F1 teve que regredir tecnologicamente para subsistir alguma competitividade, mas o cenário pouco mudou. Os caríssimos investimentos exigem um campeonato “dirigido” com manipulações pontuais, seja nas mudanças de regras ou em atitudes desesperadas como essa do GP da Alemanha.

Partindo de reflexões gnósticas sobre a essência do Mal, o pensador Jean Baudrillard conseguiu localizar na tecnologia o princípio da “reversibilidade simbólica”, a irônica presença do Mal que torna esse cosmos imperfeito. Baudrillard propôs uma hipótese perturbadora: e se os sistemas tecnológicos estiverem caminhando para um vanish point, um ponto de inversão e entropia, ou seja, se eles estiverem num estágio de inversão da finalidade inicial (a do valor de uso da tecnologia, sua utilidade e funcionalidade), tendendo a um ponto de inércia, a um ponto zero? Esta é a tese é igualmente partilhada por Ciro Marcondes Filho .
"Acredita se que todos os processos desenvolvam-se¬ até um certo ponto e que, sendo este ultrapassado, perdem sua eficácia e tomam¬-se absolutamente disfuncionais. O desenvolvimento da ciência, que até um certo momento foi impulsionado por toda a sociedade, recebeu fortes investimentos da indústria, dos governos e instituições sociais, esse mesmo desenvolvimento passou, a partir desse ponto de disfunção, a ser prejudicial à sociedade, na medida em que pôs em risco sua estabilidade e mesmo sua existência”. (MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo, Scipione, 1995. p.58 9.)

Os sistemas tecnológicos tenderiam a um estado de obesidade, de excesso generalizado, até inviabilizar a finalidade original que os fez surgir. É aquilo que Baudrillard chama de hipertelia. A sofisticadíssima tecnologia automobilística da Fórmula 1 chega a um ponto que inviabiliza a competitividade e a sobrevivência da própria categoria esportiva. Poucas escuderias poderiam ter a tecnologia de ponta disponível para, no mínimo, serem competitivas. Resultado: foi obrigada a regredir sua tecnologia para os anos 70.
“Exxon: o governo americano pede à multinacional um informe global sobre todas as suas atividades no mundo. Resutado: doze volumes de mil páginas, cuja leitura, para não dizer a análise, ocuparia vários anos de trabalho. Onde está a informação? Aqui cão começa uma patafísica dos sistemas. Esta culminação lógica, esta escalada não se limita, por outro lado, a oferecer inconvenientes, ainda que seja uma catástrofe em câmera lenta” (BAUDRILLARD, Jean.Estrategias Fatales. Barcelona, Editorial Anagrama, 1984, p.11-2)

Esta reversibilidade irônica, patafísica (absurda) está por todos os setores cuja tecnologia se hipertrofia.

Na Guerra do Golfo em 1991, o mesmo pode se e dizer do avião invisível aos radares que, de tão sofisticado e caro aos cofres públicos dos EUA, poucas vezes levantou vôo. Ou os automóveis atuais, sofisticados, estáveis e velozes, vivem presos em congestionamentos. Resultado: os acessórios tomam conta das inovações tecnológicas, para que o motorista se sinta cada vez mais confortável nos engarrafamentos.

Ou ainda a infecção hospitalar que surge, ironicamente, no ambiente mais asséptico e controlado possível: a hipertrofia asséptica resulta no oposto, isto é, um ecossistema tão limpo que um vírus pode se propagar catastroficamente pela inexistência de barreira biológicas como, por exemplo, predadores.

O grau zero da informação televisiva: a expansão do número de canais em um aparelho de TV volta-se contra o próprio conteúdo. Diante de 300 canais, é impossível escolher qual assistir. Resultado: o efeito zapping, onde o divertido não assistir ao conteúdo, mas trocar compulsivamente de canais. A tecnologia televisiva volta-se contra o próprio valor de uso da informação.

A obsessão da tecnologia em expandir-se para alcançar funcionalidades e utilidades cada vez mais precisas, eficazes e de alto desempenho, resulta, ironicamente, na absoluta inutilidade. É a “transparência do Mal”. Tal como um acidente catastrófico de um trem-bala, a tecnologia bate de frente, em alta velocidade, com o princípio do Mal que governa o cosmos.

Voltando às críticas moralistas da mídia sobre a F1, não devemos esquecer que o sacrifício público de Felipe Massa é a parte mais visível da hipertelia de uma categoria que, de tão obesa tecnologicamente, aniquila qualquer possibilidade de jogo ou competição.

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quinta-feira, julho 22, 2010

"Bezerra de Menezes" surpreende ao romper com o Ciclo Vicioso do Sagrado e do Religioso na Mídia


"Bezerra de Menezes - Diário de um Espírito" (2008), produção cearense de Glauber Filho e Joe Pimentel, surpreende por ter sido um sucesso de público, mesmo distoando do chamado "padrão Globo Filmes". Em consequência o filme conseguiu romper com o ciclo vicioso onde, em nome do chamado "grande público", traduz-se temas do espiritismo e da religiosidade dentro dos clichês do ecumenismo da Auto-ajuda.  

Depois de assistir ao filme “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” é impossível não ser tentado a fazer uma comparação com o filme “Chico Xavier” (2010). Primeiro vejamos as semelhanças: ambos os filmes tratam o tema Espiritismo e acabaram de tornando sucesso de público. E as semelhanças param por aí.

São dois filmes com o tema Espiritismo, mas com estéticas, condições de produção e, acima de tudo, diferenças brutais no tratamento do tema da religiosidade, sagrado e transcendência.


Para começar, o filme “Bezerra de Menezes” foi muito mal recebido pela crítica. A produção cearense de Glauber Filho e José Pimentel foi criticada por ter um “roteiro tosco”, narrativa “verborrágica”, de possuir uma estética que lembrava “as novelas da TV Bandeirantes nos anos 80”, de não “cativar” ou produzir “identificação” com o espectador e de simplesmente ignorar as recentes técnicas cinematográficas de edição, decupagem e montagem dos últimos 40 anos etc.

Ao contrário, "Chico Xavier" se vale plenamente desse apuro técnico, com uma narrativa “esperta”, clipada, com movimentos de grua, travellings e narrativa de criar suspense e identificação. Como discutimos em postagem anterior, a opção estética por um “padrão Globo de qualidade” (produção, atores e estética) determinou uma abordagem do fenômeno espírita de forma genérica e abstrata para atingir um grande público (fossem espíritas, ateus ou católicos). O resultado foi a redução da religiosidade e do sagrado ao mínimo denominador comum da religiosidade midiática: o ecumenismo pós-moderno, ou seja, uma religiosidade traçada pelo ideário da auto-ajuda e do autoconhecimento, aplicável a qualquer credo ou público.

Muito diferente disso, “Bezerra de Menezes” mantém a dignidade da doutrina espírita. Aborda os temas da reforma íntima e do afinco de Bezerra de Menezes na luta interior pela conversão ao Espiritismo sem despencar nos clichês do otimismo empreendedor da auto-ajuda. Pelo contrário, aborda conceitos mais especializados à doutrina como Lei de Ação e Reação, Animismo, concepção teológica do Kardecismo etc., particularizando a religiosidade Espírita, evitando cair no ecumenismo pós-moderno e generalizante de “Chico Xavier”. E, apesar dessa particularização, marcando as diferenças teológicas e doutrinárias do Espiritismo diante de outras formas de religiosidade, mesmo assim o filme foi um sucesso de público (Sim, há salvação fora do “padrão Globo de qualidade”!).

segunda-feira, julho 19, 2010

Iconolatria e Ecumenismo Pós-Moderno em "Chico Xavier"


Mais do que um filme que evita tratar o tema Espiritismo para um nicho de público especializado, "Chico Xavier" de Daniel Filho apresenta um sintoma do destino da religisiosidade e do sagrado na atualidade. Ao tratar o tema de forma comercial, para o grande público (ateus, católicos ou espíritas), reduz o Espiritismo ao mínimo denominador comum de toda religiosidade na indústria do entretenimento: iconolatria e um, por assim dizer, ecumenismo pós-moderno.

Depois da comédia de costumes, os olhos do cinema de massa do chamado período de “retomada” do cinema brasileiro volta-se para o Espiritismo e religiosidade. Depois do sucesso de “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” de Glauber Filho e José Pimentel, Daniel Filho (no esteio de sucessos de bilheterias como “Se Eu Fosse Você”) explora esse recente filão temático do cinema brasileiro.

A primeira coisa que chama a atenção no filme “Chico Xavier” é o apuro técnico com muitos travellings e movimentos de grua com câmera, a decupagem “clipada” e inquieta, a narrativa marcada por sucessivos flash backs (o eixo da narrativa – o “tempo presente” – é a noite da histórica participação do protagonista no Programa “Pinga Fogo” da TV Tupi em 1971 que, de uma hora programada, acabou se estendendo para três). O resultado visual é a da fluidez e suavidade, ainda evidenciado na escolha da trilha com músicas atonais de Egberto Gismonti. Somada ao cast de atores da TV Globo, temos um filme com o chamado “padrão Globo de qualidade” em que a linguagem cinematográfica é absorvida pela televisiva: profusão de planos médios e fechados, evitar contrastes fortes e a fotografia em tons pastéis e muito iluminado. E, principalmente, a personalização da narrativa, sublinhada pelo predomínio dos primeiros planos.

É aqui que reside no filme Chico Xavier o sintoma de como a religiosidade e o sagrado são abordados na indústria do entretenimento: na iconificação do sagrado, e na dispersão da religiosidade numa espécie de, por assim dizer, “ecumenismo pós-moderno” onde o sentimento religioso e a filosofia doutrinária são retiradas do contexto original para ser filtrado pelo ideário do auto-conhecimento e da auto-ajuda.

Além disso, dois fatores adicionais devem ser considerados para entendermos a visão do espiritismo e da religiosidade passada pelo filme: o ateísmo do diretor Daniel Filho e o agnosticismo do ator Nelson Xavier (que representou Chico Xavier na velhice). Somada a proposta de um filme para todos os públicos, temos como resultado o seguinte: em vez de colocar em primeiro plano o espiritismo, o filme posiciona Chico Xavier como uma grande personalidade brasileira, que sofreu abusos de uma madrinha malvada e lutou para sobreviver à descrença, deixando um legado de paz e conforto para famílias que perderam entes queridos.

Uma “lição de vida” que representa o pragmatismo que é a base de todo ideário da auto-ajuda: pouco importa se Deus existe ou não. Se acreditar Nele lhe trás felicidade, então Ele existe. O filme filtra a vida de Chico Xavier pelo ideário da auto-ajuda ao reduzir toda doutrina e filosofia a conservadoras lições de vida que, no final, justificam a crueza do cotidiano. Mais do que estratégia comercial para buscar grandes bilheterias, é um sintoma do destino do sagrado e da religiosidade na indústria do entretenimento.

“Disciplina, Disciplina, Disciplina!”

Nas relações do indivíduo com a experiência do sagrado (do indivíduo com o abstrato ou o Todo), a iconolatria (adoração de imagens, estátuas etc.) é o aspecto regressivo da religiosidade. Ao reduzir a expressão da religiosidade a um ícone, passamos a ter uma relação fetichista com a imagem, reduzindo toda a expressividade ou doutrina a um personagem ou entidade aparentemente física e tangível.


Por exemplo, ao invés de entendermos o evangelho idolatramos compulsivamente a figura de Cristo na Cruz.

Indo para outro extremo, da mesma forma, toda a filosofia do comunismo é reduzida à idolatria da imagem de Che Guevara. O resultado da idolatria é a massificação do ícone: pessoas colocam aplicam a imagem de Che Guevara em camisas, pára-brisas de carros e baús de motos sem jamais terem lido uma linha sobre suas idéias. Apenas sabem que Che foi “um cara que lutou pelo que acreditava, assim como eu!”.

Esse mesmo processo de iconificação encontramos no filme “Chico Xavier”. Duas frases, uma dita pelo personagem Chico Xavier e outra pelo seu guia espiritual Emannuel (frases retiradas de contextos doutrinários e filosóficos da literatura espírita) demonstram isso: “Ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas qualquer um pode recomeçar e fazer um novo fim”, diz Chico Xavier; e “Disciplina, Disciplina, Disciplina!”, os três mandamentos proferidos por Emannuel para orientar a missão que Chico Xavier assumiria na sua vida.

Dessa forma o protagonista é transformado no campeão do ascetismo, da ética marcial da autodisciplina e da renúncia. A doutrina e filosofia espírita é reduzida, dessa maneira, ao mínimo denominador comum de toda a religiosidade. O sentido particular dessas frases é eliminado em nome de uma moral ecumênica de auto-ajuda: lute, pense positivo, acredite em você mesmo, seja forte e lute pelos seus ideais.

Teologia Secularizada em Chico Xavier

O filme coloca em confronto três personagens: os padres católicos, os ateus e os espíritas. Com isso, o filme contempla todos os públicos ao expor todos os pontos de vista em relação ao fenômeno mediúnico: Fraude? Simples manifestação do Demônio? Prova da existência da vida após a morte? Todos os pontos de vista são pragmaticamente sintetizados numa espécie de ecumenismo pós-moderno: não importa a crença, filosofia, doutrina ou ponto de vista. Todos devem se curvar aos fatos da vida onde, acima de tudo, rege a disciplina, o ascetismo e crer em si mesmo.

Como um ícone, Chico Xavier é transformado em “lição de vida” para todos: ateus, católicos e espíritas. Esse é o novo ecumenismo, aquele que reduz ou neutraliza a experiência do sagrado e da religiosidade à teologia secularizada da Auto-ajuda onde, tal como na Teologia Positiva, o indivíduo é liquidado em nome da Totalidade e da crueza da vida.

Ficha Técnica:
  • Diretor: Daniel Filho
  • Elenco: Nelson Xavier, Angelo Antonio, Tony Ramos, Letícia Sabatella
  • Gênero: Drama
  • Duração: 124 min
  • Ano: 2010
  • Distribuidora: Sony Pictures

sexta-feira, julho 16, 2010

"Para o Infinito e Além": a Gnose de Buzz Lightyear


A trilogia Toy Story explora uma rica simbologia sagrada cujas origens estão na antiguidade com a Teurgia e Alquimia que envolve a gnóstica relação com os simulacros humanos (bonecos e fantoches e, na modernidade, autômatos, replicantes e andróides). Porém, de forma ambígua onde a Gnosis é dominada pela Episteme.

Certa vez o Prof. Marcelo Tassara, em uma das aulas do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, falou sobre a habilidade das animações norte-americanas, voltadas para o público infantil, de tornar divertidos temas trágicos, pesados e adultos.

Desde Bambi (onde o protagonista perde a mãe de forma cruel) até Wall-E (ficção científica cínica e dark) as animações dos estúdios norte-americanos exercitam essa capacidade de fazer crianças rirem do cruel e do trágico.

A trilogia Toy Story não é diferente. Brinquedos desesperados em não perder o amor e a atenção do seu dono Andy (o mítico plot freudiano da relação da criança com a mãe na primeira infância), crianças sádicas que destroçam cruelmente brinquedos (outro plot freudiano, a crueldade infantil do drama edipiano ainda não resolvido) e um personagem, Buzz Lyghtyear, que acredita plenamente no script inserido nos seus chips pela indústria fabricante, a identidade de herói intergalático. Buzz não se acha um brinquedo, mas um herói dentro de uma narrativa espacial épica.

Até que, numa sequência rica em simbologias, Buzz vê a si mesmo (ou para mais um exemplar da sua série) numa propaganda na televisão, onde o fabricante anuncia o produto Buzz Lightyear com suas especificações, embalagem e as falas pré-programadas que Buzz repete como suas. Em destaque no comercial uma frase que decisivamente desconstrói Buzz: “esse produto não voa”. Perplexo, desiludido e impotente, mesmo assim Buzz tenta voar saltando do alto de uma escada para se esburrachar em seguida. Uma sequência triste, assim como a perda da inocência da infância, uma metalinguagem forçosa que toda criança terá que fazer ao descobrir que os scripts de seus jogos infantis estão contidos num mundo ainda maior e incompreensível.

Toy Story explora uma simbologia arquetípica dos bonecos e fantoches, isto é, a simbologia mística e sagrada dos simulacros humanos onde, na atualidade, temos a continuação com Replicantes, Ciborgues e personagens humanos híbridos. Uma simbologia essencialmente gnóstica onde o homem projeta, no seu simulacro, a sua própria condição de prisioneiro na realidade física criada por um Demiurgo ou Titereiro. Na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus. Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil.

Teurgia e Alquimia

O fascínio humano por bonecos, fantoches (que, mais tarde, se tornariam brinquedos infantis) e demais simulacros humanos têm sua origem nos filósofos e sacerdotes Helenísticos. Platão falava em um ser chamado Demiurgo, criador do mundo visível, personagem largamente usado na antiguidade para explicar a origem da alma humana a partir de uma forma Divina e Original: Anthropos. Do Mundo das Formas Anthropos desceu ao mundo material, originando o homem.

Apesar de ser uma forma inferior, o ser humano teria dentro de si fagulhas divinas da sua origem (Anthropos). Portanto, objetivo da sua existência seria galgar os degraus que o façam retornar às suas origens divinas. Nós, humanos, não passaríamos de simulacros do Humano Primal, assim como o mundo dos nossos sentidos é um simulacro do Mundo das Formas. Através do autoconhecimento ou gnose poderíamos então retornar à Luz é à vida eterna possuída por Antropos, esse humano essencial.

A Teurgia surge no mundo helenístico como a primeira forma de alcançar isso através da manipulação da matéria onde, assim como o Demiurgo, podemos dar vida e alma a uma forma material e inferior. Se temos dentro de nós uma parte desse Anthropos, podemos retornar a ele exercendo as mesmas habilidades reservada aos deuses: imitatio dei por generatio animae, imitar Deus criando vida.


Para Victoria Nelson (“The Secret Life of Puppets”) essa é a origem secreta do fascínio atemporal por bonecos e fantoches ao longo da história. Para a autora, é na Alquimia que temos esse encontro decisisivo entre gnosis e epistemis, entre a ciência experimental e a prática religiosa através de sucessivas operações que reproduzem as etapas da criação do cosmos físico pelo Demiurgo até a redenção da matéria representado pela criação da “Pedra Filosofal” ou da “criança/homunculus” (“pequeno homem”, também chamado como “mannikin”).

Na modernidade, essas origens sagradas são relegadas ao mundo da infância e, na literatura e cinema, ao gênero do terror: Frankenstein, bonecos assassinos e fantoches que ganham vida própria e dominam seu criador, bonecos de vudu etc.

Na infantil fusão entre brinquedo e criança, onde a alma do objeto absorve as melhores qualidades do seu dono (ternura, bondade, coragem etc.) temos esse simbolismo atemporal da dimensão sagrada dos simulacros humanos. Se no mundo adulto a espisteme reprime a gnosis (a racionalidade supera o Sagrado), será na infância o último e transitório reduto dessa dimensão perdida.

Como vimos em postagem anterior, são nos jogos infantis que a criança ri do Mal (acaso, aleatório, acidente) presente no cosmos físico. Da mesma forma, a atualização da manipulação dos simulacros humanos na infância é a sobrevivência desses mitos teúrgicos e alquímicos da antiguidade. A fusão boneco/criança (a projeção na matéria inanimada das manifestações das partículas de Luz divina presentes em cada um de nós) repete, para a visão do adulto, de forma pueril e inconsequente, todo o drama mítico dos passos a serem galgados para a gnose.

Simulacros Humanos na Indústria do Entretenimento

Voltando à sequência em que Buzz Lightyear descobre-se como um briquedo, Toy Story explora e atualiza este fascínio gnóstico pelos simulacros humanos: assim como no Gnosticismo o ponto de partida da gnose é a descoberta que o mundo real não passa de um véu de ilusões, Buzz descobre que toda a sua existência não passava de um programa pré-fabricado pela indústria de brinquedos.

Mas há uma ambigüidade nessa gnose de Buzz Lightyear.

Sabemos que, desde Toy Story de 1995, os roteiros das animações dos Studios Wall Disney são orientados pelo chamado “Memorando de Vogler”: um memorando corporativo escrito por Christopher Vogler propondo uma estrutura de formulas para um roteiro de sucesso baseado nas idéias do historiador de mitos Joseph Campbell como solução para o estúdio superar os sucessivos fracassos das animações do estúdio nos anos 80. A partir daí originou-se o bem sucedido “Paradigma Disney” de roteiro baseado na arquetípica “Jornada do Herói”.

Mas apenas isso não sustenta uma estrutura-clichê de um produto de entretenimento. É necessário mais: conteúdos arquetípicos que falem fundo para a alma humana. Assim como a gnose de Buzz que trás o fascínio atemporal pelo drama de fantoches e bonecos que lutam pela liberdade (veja, por exemplo, em Blade Runner – 1982 – e Quero ser John Malkovich – 1999).

Na verdade uma gnose governada pela episteme (toda a tecnologia de produção de imagens digitais e a estrutura-clichê dos roteiros). Se na Teurgia e Alquimia Gnose e Episteme buscam o encontro, aqui na indústria do entretenimento temos a submissão da Gnose, do Sagrado e de toda dimensão mística à Episteme: a busca por resultados financeiros do estúdio, o cálculo científico das reações emotivas do público etc. Brinquedos que não são mais manufaturados pela criança, mas pela indústria do entretenimento que, tal qual o Drama de Buzz, impõe um script à fantasia infantil.

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