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sexta-feira, agosto 30, 2024

O obscuro objeto da sexualidade em 'Sexo, Mentiras e Videotape'



Sexo, Mentiras e Videotape” (1989), o filme de estreia de Steven Sorderbergh e ganhador da Palma de Ouro em Cannes, era, na época, um filme otimista: a esperança de que as novas tecnologias de vídeo resgatassem a materialidade e o espontâneo num mundo dominado pelos simulacros. Mal se sabia o que viria no próximo século: a democratização dos simulacros através das selfies e redes sociais. O filme conta a história de quatro pessoas cujas vidas sexuais estão seriamente confusas em torno de mentira. Até que a chegada de um forasteiro com um fetiche incomum (colecionar VTs com entrevistas nas quais mulheres confessam suas fantasias sexuais) muda tudo. Ele procura ir para além das mentiras e jogos de aparências da sedução, tentando encontrar a verdade da sexualidade nos vídeos. Estamos na pós-sexualidade: o reino das palavras que tentam suturar feridas psíquicas.

Depois de anos um homem volta para a sua cidade. Um homem que vive viajando e que prefere viver no seu carro por tudo do que precisa está lá. Mas, principalmente, porque para ele a vida fica mais fácil andando com apenas uma chave no bolso.

Esse personagem, o Estrangeiro, praticamente se confunde com a mitologia norte-americana. Desde o “forasteiro” no gênero western, passando pelos viajantes dos road movies hollywoodianos, encontramos o mesmo personagem em busca da verdade, fugindo de mentiras e hipocrisias que deixou para trás. Deixou as cidades decadentes para buscar as estradas, os desertos, as planícies, os horizontes e os pontos de fuga para tentar encontrar algo que foi perdido.

Em Sexo, Mentiras e Videotape (1989) encontramos esse mesmo herói recorrente: Graham (James Spader) vive no seu carro e volta para sua cidade, depois de anos. Tudo o que deseja é não mais mentir. Para começar, andando apenas com uma chave no bolso – para Graham, com quanto mais chaves andar, mais complicada se torna a vida. Portanto, sujeita a mentiras.

Ele se orienta por um insólito princípio de não mais mentir. Mais do que isso: quer a transparência. E Graham tem a tecnologia ao seu lado: o videotape.

E onde as mentiras e jogos de aparências e sedução mais se manifestam? No sexo. Graham desde o início se declara impotente. Não faz mais sexo, propositalmente, há anos. Para não mais mentir, para não passar mais o tempo inteiro fingindo.

As únicas coisas que carrega é uma coleção de videotapes e uma filmadora. Graham define como o seu “projeto”: entrevistar mulheres sobre a sua vida sexual. Para assistir depois sozinho.

Sexo, Mentiras e Videotape apresenta uma abordagem otimista numa sociedade cuja estrutura mostrava na época uma crescente imbricação entre imagem e realidade: a possibilidade de a verdade ser revelada através das imagens trêmulas e pixeladas num monitor de tubo catódico – mulheres que revelam seus desejos mais inconscientes para a lente de câmera e jamais para seus parceiros. 



Utopia maquínica: a utopia da máquina fazer a mediação neutra das relações humanas. Revelar a verdade por um meio tecnológico. Jamais o diretor estreante Steve Sorderbergh poderia imaginar o que viria no próximo século: selfies e redes sociais, o império da mentira e simulações. 

Sexo, Mentiras e Videotape foi uma espécie de divisor de águas da indústria hollywoodiana: um filme com baixíssimo orçamento de pouco mais de um milhão de dólares e que arrecadou 24 milhões de dólares nas bilheterias, com um diretor de 26 anos que estreava nos longas-metragem, cuja lenda informa que o roteiro foi escrito numa viagem aérea de Los Angeles. Um filme que deu a Palma de Ouro de Cannes a Sorderbergh e a benção da velha escola ao cinema independente que estava nascendo.

Sexo, Mentiras e Videotape é um filme de princípios. Uma luta dos personagens serem fiéis a si mesmos. Mesmo no ambíguo e perigoso campo da sexualidade. 

Através das imagens, Graham parece querer suturar a ferida aberta do simbólico lacaniano. “Não existe relação sexual, mas desarranjo essencial”, afirmava o psicanalista francês ecoando os insights freudianos dos desencontros entre homem e mulher no complexo de castração e a matriz fálica – de um lado o homem que tenta curar a ferida narcísica com a potência sexual ameaçado pelo fantasma da impotência; e do outro, a mulher e a “inveja do falo”, tentando capturar o falo masculino para si na penetração sexual.

O Filme

O filme conta a história de quatro pessoas de 30 e poucos anos cujas vidas sexuais estão seriamente confusas. Um é um advogado arrivista e promíscuo chamado John (Peter Gallagher), que é casado com Ann (Andie MacDowell), mas não faz sexo mais com ela – Ann ficou frígida e indiferente. 

No início do filme, a ouvimos dizendo ao seu psiquiatra que isso não é um grande problema; o sexo é realmente superestimado, ela pensa, em comparação com questões maiores, como, por exemplo, a Terra está ficando sem lugares para descartar seu lixo. 



Seu marido, no entanto, não acha que o sexo é superestimado e está levando um caso apaixonado com a irmã de sua esposa, Cynthia (Laura San Giacomo), que sempre se ressentiu de Ann – sempre foi considerada a “queridinha” da família.

Um velho amigo aparece na cidade. O nome dele é Graham. Era colega de quarto de John na universidade. Não parece muito claro o que ele fez nos últimos anos desde então, mas ele é um daqueles tipos que você não faz perguntas sobre coisas assim, porque você tem a sensação de que não quer dar respostas. 

Ele é perigoso, não de forma física, mas através de sua inteligência insinuante, que parece ver através das pessoas. Isso parece seduzir Ann e Cynthia.

Ele encontra uma casa para ficar temporariamente. Não tem chave na porta (lembre-se, a única chave que ele tem é a do carro). Um dia Graham almoça com Ann, e eles começam a flertar com sua conversa, excitando um ao outro com palavras cuidadosamente escolhidas para ocupar o terreno traiçoeiro entre o erotismo e uma proposta. Ela diz que não pensa muito em sexo. Ele confessa que é impotente. 



Incapaz de se satisfazer da maneira usual, ele grava em VT as confissões sobre fantasias sexuais das mulheres e depois assiste aos vídeos, sozinho. Graham quer ir além do teatro da sedução e mentiras. Quer se distanciar e observar as confissões íntimas das mulheres.

Mas, por outro lado, podemos entender que basicamente Graham vivencia a perversão sexual do voyeurismo: ter o poder não sobre seus corpos, mas sobre suas mentes, sobre seus segredos. E suspeito que a frase mais erótica em seu vocabulário é “Ela está realmente me dizendo essas coisas!” 

Ann fica horrorizada com o hobby de Graham – mas, ao mesmo tempo, fascinada - e em pouco tempo, os dois estarão na frente de sua câmera, em uma cena de notável sutileza e poder, ambos descobrindo que, para eles, o sexo é apenas o começo de seus próprios mistérios. 

Em 1989 fazia todo sentido essa profissão de fé em torno da tecnologia videotape e as filmadoras portáteis VHS: videomakers independentes que furariam a hegemonia do mainstream midiático e produziriam finalmente imagens verdadeiras, espontâneas, reais.



Naquele momento artistas como os fotógrafos David Hockney e Cindy Sherman ou o videomaker novaiorquino Robert Longo acreditavam em imagens que resgatariam a materialidade num mundo dominado pelos simulacros.

Eles não sabiam o que estava por vir: o século XXI e a ascensão do narcisismo nas redes sociais impulsionado pela democratização da produção de imagens através dos smartphones.

O que apenas comprovou as teses de Freud e Lacan: a produção simbólica como forma de sutura da ferida psíquica fundamental: o vazio do desejo resultante da separação da Natureza.

Alimentação, excreção e reprodução são as nossas funções corporais fundamentais como em qualquer organismo da natureza. Mas as sobrecodificamos por meio de fantasias – em Freud, as fantasias orais, anais e genitais. E sobrecodificamos ainda mais na sociedade de consumo e na publicidade.

O resultado é o abandono do narcisismo primário da “sensação oceânica de prazer” da integração primitiva com a Natureza, antes de sermos pinçados para o mundo do simbólico: a sociedade, a racionalidade e o progresso.

O que resta é o vazio do desejo como falta de alguma coisa que não sabemos o quê. O resultado de todas essas sobrecodificações é a mentira, jogos de aparência e sedução.  


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Sexo, Mentiras e Videotape

Diretor:  Steven Sorderbergh

Roteiro: Steven Sorderbergh

Elenco: James Spader, Andy McDowell, Peter Gallagher, Laura San Giacomo

Produção: Outlaw Productions

Distribuição: Columbia Pictures Home Video

Ano: 1989

País: EUA

 

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