sábado, dezembro 14, 2019

Lula joga um balde de água fria na guerra da comunicação


“Acho que o PT não tem que fazer o jogo rasteiro que eles fazem. Contra a raiva deles, precisamos vender sorrisos...”. Dessa maneira, Lula jogou um balde de água fria nas pretensões de que a esquerda poderia pensar em uma virada na guerra da comunicação. A entrevista concedida ao blog “Nocaute”, do jornalista Fernando Moraes, foi sintomática por expor dois erros fundamentais em como a esquerda avalia a questão da Comunicação: (a) o poço de lama em que se transformaram as redes sociais seria intrínseco à militância digital – a única maneira de fazer politica digital seria por meio de baixarias, porque rende mais cliques e audiência do que a “verdade”; (b) o que ocorreu nas eleições de 2018 teria sido uma novidade tecnológica, cara e bancada ilegalmente. A questão é que não há nada de novo sob o Sol, a não ser a tecnologia digital que turbinou uma descoberta de 70 anos atrás nas pesquisas em Comunicação e que a esquerda insiste em ignorar: apesar de todo poder hegemônico, as mídias não têm o poder em massificar conteúdos – as informações somente circulam na sociedade quando líderes de opinião sancionam conteúdos em suas redes de influência social. Enquanto a esquerda continua na ilusão da massificação a direita domina o campo viral dos líderes de opinião, sejam eles analógicos ou digitais. 


Muito tem se falado do fenômeno global da ascensão do populismo de direita (Brexit, Trump, Bolsonaro, Zelenski etc.) através do domínio tecnológico das estratégias digitais – mineração de Big Data, fabricas de memes, fake news, deep fake etc. 
E, mais preocupante, o quanto os seus concorrentes à esquerda ou de centro insistem em se manterem analógicos, sem perceberem como as plataformas de mídias digitais se tornaram o novo espaço público da sociedade. Porém, dominado por ideias anti-iluministas ou anti-humanistas, pelo nacionalismo mais tosco, intolerante, alimentando um total desprezo até pela Ciência e o conhecimento.
A avaliação que a esquerda parece fazer de tudo isso lembra aquela estória do rei que matou o mensageiro que veio de uma terra distante com uma má notícia. Em outras palavras, ainda a simples menção da necessidade estratégica da esquerda compreender o que aconteceu nas redes sociais durante a eleição de 2018 para utiliza-las como meio efetivo para a transmissão de conteúdos progressistas, significaria “fazer o mesmo jogo rasteiro da direita”.



Porém, esta “novidade” na estratégia de comunicação do populismo de direita não é tão nova assim. Na verdade, essa suposta novidade já tem quase 70 anos. 
                  Todo o atual hype em torno da instrumentalização política das mídias digitais, redes sociais e mineração de big data como fosse uma grande novidade, nada mais faz do que amplificar tecnologicamente uma descoberta da sociologia da comunicação no pós-guerra do século XX: a revelação de que na circulação de informações na sociedade a influência social é mais decisiva do que a manipulação direta da propaganda transmitida pelos meios de comunicação de massas.


Paul Lazarsfeld e a influência social na comunicação

Divisor de águas na Comunicação

Esse verdadeiro divisor de águas no campo da Ciência da Comunicação veio através das pesquisas do sociólogo com especialização em matemática e métodos quantitativos, Paul Lazarsfeld (1901-1976).
Talvez a questão da comunicação para a esquerda seja um problema ainda mais sério: não se trata apenas de não ter compreendido um fenômeno supostamente novo e inesperado. Na verdade, há no mínimo 70 anos a esquerda vem ignorando aquele divisor de águas proposto por Lazarsfeld que mudou toda a compreensão da comunicação social. Desde a utilização revolucionária do rádio e do cinema pela propaganda nazifascista que culminou com a Segunda Guerra Mundial – voltaremos a esse ponto adiante.    
Toda essa reflexão que esse humilde blogueiro começa aqui a fazer foi originada por um verdadeiro balde de água fria jogado pela resposta de Lula dada em uma entrevista feita na redação do blog Nocaute, do jornalista Fernando Moraes – clique aqui.
Uma das participantes, Ana Roxo, perguntou se Lula e PT haviam entendido o que aconteceu nas redes sociais no Brasil durante as eleições de 2018. A resposta não poderia ter sido mais inquietante para um pesquisador em Comunicação: “Acho que o PT não tem que fazer o jogo rasteiro que eles fazem. Contra a raiva deles, precisamos vender sorrisos...”. 
E que a batalha da comunicação será vencida com a “democratização dos meios” e com o “apoio aos blogs sujos”.
                  E parece que está levando a sério essa tese de “vender sorrisos”: em vídeos aparece de chapéu Panamá, bronzeado e camiseta com gola em “V”, semblante feliz, conclamando: “em vez de nos escondermos em casa, temos que ir às ruas!” – semioticamente, há um incômoda dissonância entre a urgência da mensagem transmitida por um protagonista que inspira uma impressão inversa: tranquilidade, estabilidade e felicidade – clique aqui.



Enquanto, ao mesmo tempo, lança o livro organizado por Mauro Lopes “Lula e a Espiritualidade: oração, meditação e militância” com o mote de que “no coração de Lula pulsa a espiritualidade do povo brasileiro”.
Claro, um discurso de espiritualidade ecumênica ao gosto de convertidos (principalmente da “esquerda namastê”) e também motivadora para elevar o moral da militância – perdida desde que Lula foi levado preso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC como prêmio pela Polícia Federal para, mais tarde, Bolsonaro reencarnar o fantasma da ditadura militar.

Onde direita e esquerda se encontram

Nesse ponto, o jornalista Ricardo Kotscho concorda: “num ponto direita e esquerda se encontram (...) em entrevistas e discursos, sem novidades, esquerda e direita se equivalem na mesmice de mensagens, falando para os já convertidos”.
Porém, se cada lado corresponde a um terço do eleitorado, segundo Kotscho, os outros 40% estão esquecidos e nem prestam mais a atenção. É a “maioria silenciosa que decide as eleições que bestificada assiste a esse diálogo de surdos”.
Mas Kotscho cai na mesma cilada de Lula ao falar que o problema de comunicação é de “conteúdo”: para se tornar digital, a esquerda teria que abrir mão de seus princípios e “partir para a baixaria, que é o que rende cliques e audiência na selva da Internet”. Para ele, seria impossível concorrer com o mesmo nível de baixaria de um Bolsonaro Salles, Damares, Weintraub e congêneres.
Depois de um ano da vitória de Bolsonaro por meio das falcatruas digitais já bem conhecidas e alvos de uma CPMI no Congresso, a esquerda continua ou negligenciando a questão da comunicação política ou recitando os velhos mantras conteudistas, sempre pensando como alvo da conquista de corações e mentes entidades abstratas como “povo”, “ruas”, etc., para as quais deve ser levada “alegria”  para se contrapor ao discurso de ódio da Internet.
                  A esquerda incorre em dois erros fundamentais:




(a) Matando o mensageiro: mídia digital é baixaria

Acreditar que as baixarias, atrocidades e o ódio incitado por memes, fakes news e deep fakes são intrínsecas às mídias digitais de convergência. Como se não fosse possível domar os algoritmos e fazê-los trabalharem a favor de outros valores ou ideologias. 
Exemplos vão desde os aplicativos desenhados exclusivamente para a campanha presidencial de Barack Obama em 2008 (em que a “usabilidade” – imediaticidade visual, controle intuitivo, simplificação de tarefas e clara definição de objetivos – passa a ser o principal quesito de um novo tipo de ativismo político – clique aqui) ou a proposta de um aplicativo de relacionamento para usuários de esquerda, o PTinder – ferramenta importante quando o próprio Lula admite naquela mesma entrevista ao Nocaute que “o PT não tem controle nem dos números de celular de seus milhões de afiliados e apoiadores”.
Esse Cinegnose vem há anos insistindo na ideia de que a esquerda deve lutar no mesmo campo simbólico da sociedade na qual a direita ganha por WO: o campo da produção simbólica digital.

(b) Tudo é novidade!

Mas há uma falácia de base na avaliação da esquerda sobre a comunicação e as mídias: a de que tudo o que aconteceu nas últimas eleições foram fatos absolutamente novos, decorrentes das sombrias aplicações dos insondáveis algoritmos que estão destruindo a democracia e a própria sociabilidade.
Na realidade, as atuais ferramentas de convergência midiática (dispositivos móveis, redes sociais, plataformas digitais etc.) apenas turbinam tecnologicamente uma descoberta no âmbito das ciências da comunicação que alterou definitivamente as estratégias de comunicação social – e é a base da atual engenharia social baseada em guerras híbridas: a descoberta do papel decisivo da influência social como fator que sanciona o conteúdo das mídias nas massas.
                 Os resultados das pesquisas empíricas sobre a recepção de rádio nos anos 1940-50 levaram Paul Lazarsfeld a romper com o paradigma da propaganda na comunicação – um suposto poder das mídias em doutrinar, manipular ou inculcar conteúdos pela mera exposição e repetição de conteúdos para os receptores dos meios de comunicação.



A maior contribuição de Lazarsfeld foi a descoberta do papel dos líderes de opinião na sociedade e suas influências junto as suas redes de relacionamentos: o conteúdo das mídias circularia pela sociedade em DUAS ETAPAS (“two-step-flow”): da mídia aos líderes e dos líderes a ampla maioria silenciosa e desatenta. À espera de que suas percepções sejam ativadas pela influência do líder para se tornar, então, opinião.
Em outras palavras: a mera exposição à propaganda não massifica conteúdos. É necessária a sanção dos líderes de opinião para que percepções se tornem opiniões e, mais tarde, decisões.

Por que viralização é diferente de massificação?

O que vemos hoje nas redes sociais e na mineração de big data é a potencialização dessa antiga descoberta – a diferença crucial entre massificação e viralização: enquanto a massificação implica em panfletagem, doutrinação ou irradiação de conteúdos de forma generalizada para toda a sociedade, a viralização significa modular os discursos para perfis definidos (os líderes de opinião ou “influenciadores digitais”) que certamente farão todo o trabalho do emissor – compartilhar na sua rede de relações.
                  E o que tudo isso significa para a esquerda? No balde de água fria jogado por Lula no blog Nocaute, parece estar implícita ainda a fé na massificação: da alegria, do otimismo, da espiritualidade, da militância e assim por diante, como meio para se contrapor ao discurso de ódio.



Discursos de ódio são virais. Não se combatem apenas com estratégias de massificação – chamar o povo às ruas, por exemplo.
Aliás, essas mobilizações só ocorrem pela decisiva influência social. Antes do PT e as esquerdas abandonarem as periferias para deixa-las sob a influência dos novos líderes de opiniões (os pastores neopentecostais), as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica despenhavam esse papel decisivo durante o período da ditadura militar. 
Líderes comunitários sancionavam ou criticavam os conteúdos das mídias através das suas redes de influência. O que se tornou decisivo no papel de resistência e contrainformação diante da mídia hegemônica. 
Um exemplo prático disso está no documentário Esquinas Calientes: Geopolítica do Bairro Venezuelano (2019) realizado por Nacho Lemus, no qual é mostrada a chave de resistência do apoio popular ao governo de Maduro, apesar de tantos ataques da direita, crise de desabastecimento e fome. O que chama a atenção é o papel das CLAPs – Comitês Locais de Abastecimento e Produção – não só como canais alternativos de distribuição de alimentos e anti-bloqueios econômicos, mas também como canais de contrainformação – assista abaixo ao documentário.
O apoio ao governo não se deve a um culto ao presidente (massificação), mas um intenso trabalho de base na articulação de líderes sociais que influenciam suas redes de contatos - viralização.
Em síntese, por trás de todo esse fetichismo tecnológico (o hype do “novo” pelos insondáveis algoritmos), por trás da atual estratégia da extrema-direita em redes sociais jaz um simples e velho conceito que a esquerda jamais entendeu (ou não quer entender): o fator da influência social na comunicação. 
Se a esquerda estiver realmente disposta de deixar de ser apenas jurídica-parlamentar e abandonar essa cantilena de “luta e resistência” que unicamente panfleta a bolha de convertidos, deverá articular toda a guerra semiótica em torno do conceito de “influência social” – seja pelas vias analógicas e ou digitais.
Reconquistar as redes sociais de influências, ora dominada pelos líderes comunitários neopentecostais nas periferias das grandes cidades. Que junto ao Estado policial rapidamente gestado por Moro e o Judiciário, nos faz caminhar céleres para a “República de Gileade” da série The Handmaid’s Tale (2017-) – o Estado teocrático cristão-militar fundamentalista.


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