Pages

terça-feira, fevereiro 12, 2019

Avise a esquerda: luta de classes existe, e está em Brumadinho e no CT do Flamengo

Cansada de tantas derrotas nos últimos tempos, a esquerda simplesmente comemora como fosse um gol a forma como a Globo detonou a ministra Damares Alves no quadro “Detetive Virtual” no Fantástico do último domingo. Uma detonação bem seletiva: enquanto a emissora demonstra toda sua indignação e furia investigativa nas questões identitárias e de costumes (vide a caça aos abuso sexuais de João de Deus), as tragédias de Brumadinho e do incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo são encaixadas na narrativa “tragédia-emoção-homenagens” – com direito a Galvão Bueno narrando os nomes dos jovens atletas mortos... Depois de colocar Lula na prisão perpétua e por os militares no Governo, agora o novo papel da Globo é varrer a luta de classes para debaixo do tapete – cônscia de que, a partir de agora, acidentes como esses e a tensão social tenderão a crescer sob o modelo econômico de extrativismo selvagem: vender commodities módicas como ferro, manganês e jovens jogadores. Tudo a baixo custo, no limite da irresponsabilidade. Enquanto isso, sem se ater à tática semiótica de dissonância posta em ação pela parceria Governo/Globo, a esquerda reage de forma reflexa a cada bravata “politicamente incorreta” e esquece da luta de classes.

Enquanto a esquerda vibra com o quadro do Fantástico chamado “Detetive Virtual”  que desmentiu as afirmações bizarras da ministra Damares Alves (“Estamos vivendo numa ditadura gay”, “Europa ensina a masturbar bebês”, entre outros delírios), a Globo continua com suas feitiçarias semióticas – depois da missão cumprida colocando Lula na prisão perpétua e entronar um governo militar, agora seu escopo é varrer a luta de classes para debaixo do tapete.
Afinal, os feiticeiros da emissora sabem: o acerto de contas neoliberal sem limites, prometido contra as garantias e direitos sociais (chamado de “reformas”), daqui em diante somente vai acirrar as tensões sociais, ao retroceder o País a um regime econômico extrativista colonial  - relegando à condição de país sub-industrial, mero exportador de commodities (produtos primários de baixo grau de transformação).
Mas a esquerda parece hipnotizada pela estratégia dissuasiva de criação sistemática de dissonâncias por parte do atual governo: colocar ministros falastrões e delirantes para desviar a atenção com seus ataques a questões culturais, identitárias e de costumes progressistas. Talvez por falta do que comemorar nos últimos tempos, quando vê uma emissora como a Globo apontar seus canhões contra essas figuras, a esquerda vê nesses eventos a oportunidade de revanche, raros momentos de prazer e comemoração como fosse um gol.
                 Porém, a mesma fúria investigativa demonstrada pela emissora, por exemplo, na caça a João de Deus, seus assédios e abusos sexuais da pedofilia a agressões físicas, até aqui não foi demonstrada nas duas últimas tragédias em um país com uma atmosfera cada vez mais pesada, triste e soturna: o genocídio de Brumadinho e a negligência do Flamengo por trás do incêndio do alojamento e centro de treinamento chamado “Ninho do Urubu”, matando dez jovens atletas.


A seletiva fúria investigativa da Globo contra João de Deus

Fúria seletiva

Estrategicamente, o furor investigativo e indignação do jornalismo global é muito bem seletivo: enquanto os ataques aos temas identitários e agendas de costumes progressistas do atual governo de ultradireita merecem indignação e caras de espécie de jornalistas e apresentadores, os acidentes criminosos de Minas Gerais e Rio de Janeiro apenas merecem a velha narrativa da tragédia-emoção-homenagens.
Enquanto a cobertura da catástrofe de Brumadinho vai ampliando espaço para as “boas notícias” e “homenagens” (doações em dinheiro da Vale para as famílias, as aulas que voltam depois da tragédia, tudo no tom lacrimoso de praxe), vemos no Fantástico familiares dos jovens atletas mortos no gramado do Maracanã de mãos dadas em volta das quatro linhas, enquanto no telão aparecem, um a um, as fotos da vítimas e a indefectível voz de Galvão Bueno dizendo o nome dos atletas – afinal, o onipresente locutor já havia narrado o velório do time da Chapecoense...

O “sanduíche” semiótico

                A “pegadinha” semiótica foi a narrativa, por assim dizer, “sanduíche”: para começar, as emotivas imagens do Maracanã narrado por Galvão Bueno. Em seguida uma reportagem comprometedora sobre a negligência do Flamengo (um grande container, com apenas uma porta, sem rota de fuga, janelas gradeadas e parede recheada com isolante térmico/acústico do mesmo material tóxico da trágica Boate Kiss). E para finalizar, mais matérias de cunho passional: homenagens, aplausos e relatos emocionados dos familiares sobre sonhos interrompidos. Espremida entre matérias de cunho passional, a matéria sobre a apuração das responsabilidades perde a força.


A narrativa tragédia-emoção-homenagem

Somente ontem o JN carregou nas denúncias de irregularidades (certamente pressionado por emissoras concorrentes como a ESPN, que apresentou em destaque os laudos recentes da prefeitura do RJ mostrando as gambiarras elétricas, deterioração e mofo nas instalações), mas sempre no “sanduíche” do “voice roll” lacrimejante – discurso vocal com ritmo para criar audição imersiva de sensações – clique aqui sobre o kit semiótico de manipulação das multidões.  
É evidente que a Globo participa deliberadamente nessa treinada tabelinha com os delirantes e falastrões ministros e generais do governo atual – enquanto o jornalismo é “contra” a regressão das pautas identitárias e de costumes, por outro lado fecha incondicionalmente com a agenda neoliberal que vai rifar todas as conquistas políticas, constitucionais e econômicas de décadas.

É a luta de classes, estúpido!

Por que? É a luta de classes, estúpido! Daqui em diante as tensões sociais serão crescentes. E Brumadinho, combinado com o incêndio no Ninho do Urubu, é apenas a ante-sala daquilo que nos aguarda.
Foram dois acontecimentos com a mesma matriz causal: a radical conversão do Brasil em uma economia extrativista, transformando as riquezas nacionais em commodities módicas, mas com alto custo social.
                Se não, vejamos. Em Minas, enquanto os trabalhadores da Vale morrem sob o tsunami de lama descendo a 80 km/h da barragem de rejeitos tóxicos, os únicos personagens responsabilizados e presos (com toda a pompa da meganhagem policial nas telas da TV) foram dois engenheiros de empresa terceirizada que concedeu laudo de segurança e três funcionários da Vale. Enquanto CEO e executivos da empresa seguem sem serem molestados, recebendo seus polpudos salários e bonificações, sob o beneplácito da grande mídia.

Classe trabalhadora morre, engenheiro classe média é punido e elite...

Deu para perceber a distribuição das consequências e responsabilidades? A divisão entre classe trabalhadora, classe média e elite?
E ao mesmo tempo em que o Flamengo paga salários da ordem de um milhão de reais para jogadores do elenco profissional, jovens são alojados num enorme container que mais parecia uma ratoeira mortal.

Exploração e extrativismo

As duas tragédias são amostras da calamidade social de um regime econômico de exploração e extrativismo – commodities baratas (minérios e garotos pobres cheios de sonhos) que serão vendidos como matéria-prima de baixo custo para serem beneficiados no mercado externo: ferro que ajudará a construir a infraestrutura chinesa e meninos-atletas que ganharão alto valor agregado no mercado europeu para dar lucros aos grandes clubes do continente. Enquanto o País vende esses insumos a preço de banana.
                Baixo custo: manganês e ferro extraídos sem os custos de proteção ambiental e trabalhista; e meninos pobres que surgem aos borbotões atrás de sonho de virar um Neymar ou um Messi – de resto, ídolos transformados em iscas para a atual geração, alimentando a máquina de vender matéria-prima barata, com baixo custo, para o mercado de futebol europeu.



Enquanto isso, o voice roll lacrimejante e passional da grande mídia narra imagens de jogadores com camisetas estampadas com uma rashtag corporativista, análoga ao notório corporativismo das associações de Medicina: #ForçaFlamengo – os clubes ajudam a estender o manto do sentimentalismo para proteger os seus pares e a integridade do negócio: continuar a explorar garotos, com empresários já a reboque.
O “descuido” de gestão do Flamengo (a sanha de querer reduzir drasticamente custos) foi apenas um pequeno ponto fora da curva dentro do espírito extrativista generalizado – a pobreza produz um insumo inesgotável, até mais do que ferro e manganês. A desigualdade social crescente, aliada ao script midiático padrão da “tragédia-emoção-homenagens”, mantem a máquina azeitada.
Os 300 mortos e desaparecidos e Brumadinho e os 10 garotos mortos no incêndio serão imediatamente repostos pelo desespero da pobreza e do desemprego.
Enquanto isso, a esquerda se comporta tal como na batida metáfora do cão que caiu do caminhão de mudança e perdeu o caminho: hipnotizada pelas bravatas identitárias das estratégias de dissonância da alt-right e comemorando a detonação da Globo em Damares Alves (afinal, depois de tantas derrotas, precisa minimamente comemorar alguma coisa), esquece da luta de classes.
Ou será que apenas está seguindo os passos da velha estratégia do “quanto pior, melhor”?
Se Bolsonaro ainda não desceu do palanque eleitoral para governar, também a esquerda ainda não foi à luta: continua hipnotizada pelas deliberadas provocações do “coiso”, sempre reagindo de forma reflexa, ajudando o trabalho da grande mídia de tirar da cara do distinto público o endurecimento da luta de classes.

Postagens Relacionadas